CARTÃO DE POBREZA
Exercer caridade não é para toda a gente, se a entendermos como um acto reflexivo, inteligente, meditativo mesmo.
É facto que ela está ao alcance de todos, pois todos possuímos sempre algo que podemos partilhar. Não há dúvida. Mas a caridade cristã, aquela que não exclui, não conhece diferenças, nem fronteiras, que ultrapassa todos os obstáculos, essa já é mais complexa.
A caridade cristã não separa, mas une, não identifica quem dá nem quem recebe, mas ilumina a ambos na sua humildade, a qual é tão necessária para um como para outro, pois ambos partilham o mesmo momento; não escandaliza, pois aquele que dá não o faz porque lhe sobra, nem o que recebe porque está na miséria da ausência total uma vez que a caridade é uma ajuda baseada num acto pedagógico. A caridade cristã ensina ao que pede o caminho da libertação face ao que o torna dependente, ao que dá mostra o caminho da compreensão do que significa estar ao serviço da liberdade desprovida de rótulos como cidadania, gesto político mais enobrecido, fé, até mesmo caminho para Deus. A caridade cristã é gesto da alma, não espera qualquer pagamento, porque ela não tem preço, porque não há nada que a pague, porque é outra coisa tão subtil que até um simples “obrigado/a” já soa a deformação.
Mas a nossa vivência cristã está longe de feitos caridosos, ainda que muito apregoados. As sociedades ocidentais que apoiaram o cristianismo na caridade, mantendo os crentes na ignorância, conduziram as mesmas aos maiores níveis de pobreza a que jamais um cristão poderia descer. Não porque o cristão seja diferente dos demais homens e mulheres das outras confissões, mas porque, por serem cristãos, não compreenderam a mensagem do seu mestre, deturparam-na, fazendo dele um mestre da pobreza e não um mestre de uma doutrina libertadora.
Mais, separaram de tal forma a vida terrena da vida espiritual que entenderam por libertação o fim do jugo do pecado original, bastante tardio, sublinhe-se, e não um fim de tudo o que seja aprisionador. A liberdade espiritual e/ou doutrinária defendida por Jesus nunca poderia estar separada da vivência social. A libertação de uma conduz, inevitavelmente, à outra.
Matar a fome, só por si, não liberta ninguém. Ela tem que ser acompanhada de conhecimento, estudo, mudança interior. Por sua vez, a mudança interior não se consegue na fome.
Porém, não se confunda o jejum com a fome, como o fazem alguns. A fome é ausência, é querer e não ter, o jejum é presença de um objectivo, é ter e não querer. O primeiro impõe-se ao sujeito, no segundo é o sujeito que se lhe impõe de livre vontade. O primeiro é vazio e deplorável e conduz à revolta e à degradação do sujeito, o segundo tem um fim e é caminho para esse fim.
E nesta deturpação da vivência cristã, segregadora, a insegura vida laboral tem conduzido à degradação profissional, os actos de dar ao amesquinhar da caridade, de tal forma que os pobres passaram ao estatuto de gente a quem tudo falta. Por outras palavras, já não há pobres nem necessitados, há míseros. O desemprego das famílias, por exemplo, a isso as conduziu, com a agravante de que há quem tenha a opinião infeliz de que é porque gozaram e gastaram demais. Não generalizem um caso ou outro dando-lhe a abrangência de lei, nem se envolvam em perigosos juízos de valor tomando contornos não menos perigosos de tribunais populares. O conforto e o bem-estar devem estar ao serviço de todos e tem a dimensão das bolsas de cada um. Atenção que não estamos a falar de excentricidades ridículas e avaras tais como uma caneta de 50 000 € ou um gorro por 10 000.
Aquilo com que nós estamos em total desacordo é o facto de haver ficheiros onde estão identificados todos os que acorrem às instituições de caridade a fim de receberem ajuda. Essa base de dados, além de rotular, é um selo que cai no fundo da alma, que tem implicações psicológicas que podem conduzir inclusivamente ao suicídio pois envergonham, reduzindo o sujeito a um estatuto absolutamente degradante: “Quem és tu?”, “Eu sou o pobre n.º 2029.”
O ficheiro é um cartão de pobreza, mal disfarçado dentro do computador, uma espécie de “salvo-conduto” virtual, que dá acesso à despensa da instituição (muito social, muito cristã, muito caridosa, tudo muito).
Acrescente-se ainda que, mercê da onda de modernices e com o andamento que tudo está a levar, dentro em pouco serão acrescidos de um chip para que todos os aparelhos detectores de intrusos denunciem a presença de um pobrezinho. Com isso passará ao grandioso estatuto de pobre mundialmente conhecido, orgulhosamente universalizado, um pedinte à escala planetária. Assim, além do nº 2029, dentro do país, terá o 23 000 000, no continente, 325 000 000, no planeta. Ou então, e porque a língua portuguesa anda a aprimorar-se nas suas designações, “um cidadão indefinido”.
Este, quanto a nós, é o maior acto xenófobo, o mais terrífico, o mais medonho, o mais hediondo a que um ser humano pode estar sujeito. É a maior degradação que alguém pode atingir, a maior pobreza espiritual; anti tudo, todas as doutrinas, todas as crenças, toda e qualquer apresentação da fé, da cidadania, a maior anulação do conceito de pessoa.
É urgente reler os profetas, orar a Deus nas Alturas e modificar-se, antes que seja tarde demais. Os idiotas esquecem-se de que o mundo gira sem parar e que nestas mudanças o que está hoje em cima, amanhã poderá estar em baixo. Basta Deus querer.
Margarida Azevedo