SEDE PERFEITOS - (Mt 5:48)
Quem lê Mateus 5, versículo 48, é
confrontado com um estranho apelo. O versículo é o culminar do sermão da
montanha, e de um conjunto de antíteses que são desconcertantes e edificadoras
de uma nova lei.
Não anulando o que estava prescrito,
mas acrescentando nova interioridade, os versículos atingem o seu auge no v.
48. Neste, uma questão se impõe: É-nos possível
sermos perfeitos?
O ideal de perfeição é, de um
modo geral, castrador, opressor, desfasado, portanto; aquilo que se deseja e a
realidade vivencial não é coincidente, é o que parece. Ao reflectir o desejo
intrínseco de impor um ideal de superação de uma vivência que é problemática,
acaba-se por erguer barreiras que são tão ou mais dolorosas que aquelas que
motivaram tal desejo.
Isto significa que, não sabendo
sofrer, nem compreendendo a sua possível raiz, ou raízes, ignorando qual o
lugar natural do sofrimento, ao ceder-lhe lugar no pódio, o qual não parece que
lhe pertença, o ideal de perfeição deixa-se corromper tornando-se aprisionador.
Assim, querer ser perfeito não poderá ser nunca a partir de uma situação
sofredora, mas, pelo contrário, uma resultante da presença gratuita de Deus em
todos os homens e mulheres, isto é, a Graça incondicional.
Na nossa impossibilidade humana de
construir um ideal de perfeição, Mateus apela à maximização da Lei, quer no
sermão da montanha, quer nas antíteses, nos versículos anteriores.* Essa maximização,
contudo, não anula as nossas intenções de sermos perfeitos segundo os nossos
propósitos, mas acrescenta-lhes um ideal novo, o de sermos perfeitos como Deus
é perfeito, o que só é possível em inteira liberdade.
Os
tempos apocalípticos característicos da época de Jesus, e que Mateus pretende,
de alguma forma, retratar ao redigir o evangelho à sua comunidade, aludem a
este ideal de perfeição como uma escatologia. Por outras palavras, na nossa
impossibilidade humana de perfeição há a possibilidade de pensar a perfeição à
luz de Deus. Como? Não estamos condenados a uma luta vencida, mas somos tocados
por uma Presença que nos confere uma possibilidade: querer objectivar o ideal
de perfeição na gratuitidade de Deus, o que reduz o nosso experimentar humano-dramático
de impossibilidade de perfeição à possibilidade da mesma, porque Deus está em
nós.
Isto significa que a nossa
imperfeição transporta a perfeição de Deus. É por meio dela, e só dela, que a
nossa imperfeição se anula gradualmente. Aqui é introduzido o perdão como o seu
móbil natural. O ideal de perfeição deixa de ser opressor e torna-se fruto da
misericórdia de Deus.
Será a perfeição o objectivo máximo
do v.48? No culminar do capítulo, parece-nos que é sobretudo o ser capaz de reconciliação,
reconfiguração, de tomada de consciência da importância do outro, da vida no
seu sentido relacional – eu/tu – das metas que estabelecemos e que nos
esforçamos por cumprir. Não se trata do cumprimento do dever religioso, ou
mesmo de quaisquer outros. Cumprir chega a ser redutor, se for apenas o cumprir
por cumprir, porque é tradição, porque é herança, porque se está bem. O ideal
de perfeição não é um bem qualquer, é um bem que se sobrepõe ao melhor, é um
cumprir interiorizado, todo fé, todo vivência em Graça.
O versículo em epígrafe, ao apelar à
perfeição como Deus é perfeito, remete cada homem e cada mulher para a
reinterpretação da lei, para novas formas de olhar, tais como, de que modo é
que eu vejo outro, o que me rodeia e o mundo? Em 48 somos conduzidos à reflexão
sobre coisas como, o que é a perfeição, segundo que ideais nos movemos, que
rosto e que testemunho damos da presença de Deus em nós.
Sede perfeitos como o Pai implica
uma reformulação constante das nossas atitudes.
Margarida Azevedo
·
A
conj. adversativa “mas”, “porém”, que surge na maioria dos textos em português,
em versículos como, por exemplo, o 27, não é tradução da palavra grega “allá”,
que significa “mas” , é tradução de “dé”, que significa “e”: “…ego dé lego…” (“…eu, porém, digo …” ou
“…e eu digo…”. Se o texto reflecte
sobre a não intenção de anular o que foi dito anteriormente, o “mas/porém, “
português é aquilo a que se chama gramaticalmente uma conjunção
adversativa-copulativa, isto é, impõe mas não anula a ideia anterior.