quinta-feira, abril 30, 2015

RELIGIÃO EM PART-TIME




A moldura social e política em que estamos encaixados criou um tecido vivencial de tal modo compartimentado que não permite transacções entre si. Há bem pouco tempo, até meados do séc. XX, ou um pouco mais, o indivíduo íntegro era aquele que, porque sem colisões, concentrava na mesma pessoa a harmonia do conjunto de saberes, ideais políticos e religiosos, os modos de estar na família e na sociedade. Era impensável defender no altar determinado propósito e comportar-se de modo oposto.
É certo que muitos houve que faziam desta multiplicidade uma máscara, ou por incompatibilidades de ordem política, ou religiosa, ou outras, nomeadamente sexuais. O casamento, por exemplo, era uma salvaguarda social para os que não queriam casar, por um deficitário relacionamento com o sexo oposto ou outras motivações. Por exemplo, os diferentes gostos sexuais ainda hoje são profundamente discriminatórios. Homossexualidade e heterossexxualidade ainda não estão resolvidas. No entanto, estas clivagens, por verniz ou por desajustes psicológicos, por tendências diferentes ou objectivaçãoes “fora da norma”, eram representativas, também, de uma sociedade pouco aberta, ou mesmo fechada, ao muito diferente.
Ora, o séc. XXI, pomposamente, tem-se esforçado por dar uma imagem contrária, defendendo liberdades e reforçando a importância do individualismo, nomeadamente nas áreas sexual e religiosa. A par disso, deu continuidade à tão importante laicização do Estado, procurando sedimentá-la.
Perante este quadro, aparentemente tão democrático, tudo isto poderia ser, efetivamente, constituinte de um código legislativo que colocassse em pé de igualdade os grupos religiosos. Mas o vil metal, porque quem paga tem direitos, e quem mais paga mais direitos tem, relega para níveis praticamente insignificantes grupos economicamente menos favoráveis. Como é que estes sobrevivem? As teologias ficam para segundo plano, o estudo e as exegeses são letra morta, remetidas para elites intelectuais, manipulando os textos ao interesse da massa anónima de fiéis. Assim, convertem o silêncio económico em promesssas de felicidade na terra, criam um universo de esperança nos desesperados da sorte, nos desherdados do espírito; incutem-lhes o sentimento de que são os preferidos de Deus, prometendo-lhes a felicidade eterna a troco de nada. E se com dor de cabeça ninguém estuda, com a vida às avesssas pensam que também não. Desta forma, não os fazem ver que é no estudo dedicado que parte dos problemas são esclarecidos e, quem sabe, até mesmo resolvidos, ou seja, o inverso do que lhes é incutido.
Posto isto, pergunta-se: O desenvolvimento civilizacional, que colora os discursos dos nossos políticos, faz com que a liberdade religiosa deixe de ser um problema? Houve/há, efectivamente, uma laicização do Estado? Por outras palavras, todos os grupos religiosos têm igual participação na vida pública dos Estados, são igualmente chamados às suas responsabilidades cívicas? Já vimos que não, o que legitima um grupo religioso impor normas que colidam com o que, democraticamente, é votado nos parlamentos. E o contrário também se coloca: Será legítimo saírem leis que não são cumpridas, apenas para ficarem registadas no papel, cujo propósito parece ser o de apenas dar uma imagem floreada de que é democrático um Estado mas, no fundo, subjaz um resíduo de preferencialismos com implicações sociais e políticas discriminatórias?
O que herdámos do séc. XX, principalmente a partir do último quartel? A religião tenta sobreviver, parece-nos, sobre uma jangada frágil numa tempestade que está longe de passar. Confrontando-se com a sua história, as suas bases ideológicas de outrora, o universo de sentido que lhe conferiu identidade está hoje a desmoronar-se. O receio, o medo da perda de identidade, resultado de uma cada vez maior aproximação entre os crentes das várias congregações, está a conduzir a identidade religiosa para segundo plano. A religião tornou-se matéria de consumo como uma pizza: come-se rapidamente, até de pé se for preciso, e acompanha-se com um copo do mais saboroso veneno, uma gasosa cheia de açúcar.
O cidadão europeu e crente tornou-se nisto: Vai ao ginásio uma ou duas vezes por semana, vai ao cinema uma vez por outra, faz jogging aos Domingos, passa horas a navegar na internet, se sobrar tempo, e se lhe apetecer, vai à sua igreja. Se estiver de maré, é capaz de pertencer a um grupozeco lá dentro, principalmente se a vida, entretanto, estiver a dar para o avesso. Se lhe sobrar tempo, faz amor com o/a companheiro/a, mas isso não é importante.  Primeiro vê o futebol ou o ténis, faz às compras, enteira-se das marcas de roupa e das novas colecções, vai a um concerto que não quer perder, e só depois poderá haver, ou não, tempo para os amores.
Por mais que ele queira, ou nem isso lhe passa pela cabeça, o que aprendeu na igreja não transpira cá para fora. Se vai para o jogging é porque passa horas sentado, o que é prejudicial para a saúde, se vai a uma igreja é porque precisa de desabafar, o que, para alguns, sempre sai mais barato do que ir ao psicólogo ou ao psiquiatra. No fundo é tudo uma questão de opção: “Vou ao baile, ou vou ao culto?” Depende do que precisar no momento.
A religião já não compromete, não faz o indivíduo sentir-se mais e melhor empenhado na sociedade, não o implica na sua renovação. Quando o indivíduo aparece na igreja já vem modificado que chegue, embalsamado por uma ideologia globalizante e castradora que não lhe dá grande margem de manobra. Ele é um cibernético, cheio de megabits, programado, à procura de um discurso frente-a-frente, para variar. Crê nalguma coisa, tem fé. não duvidamos, mas não dispõe de liberdade mental para a viver. Está tremendamente ocupado. Mesmo que não esteja a trabalhar, tem que estar concentrado na sua actividade profissional, à mínima falha a porta da rua é serventia da casa, e há milhões atrás dele. Vive-se a infalibilidade do falível, o descartável, perdeu-se o rosto, a consideração, o reconhecimento, o valor do outro e o valor que ele é em si mesmo. Que diz a religião a isto? Por outro lado, é esta a laicização tão boa, tão livre e tão democrática?
Confundir a laicização com ausência de valores, com deshumanização, caindo num economicismo gerador de pobreza para transpor para a religião o papel, o tal papel residual, de casa de caridade, é castrador para a religião, é deshumano para a sociedade no seu todo.
Com isto, o laico e o religioso disputam o poder, e disputá-lo-ão ad infinitum, se entretanto as coisas não mudarem.
Que discurso sobra para a religião? Será esta um discurso que, de terrivelmente impositivo, passou a submisso? Estará a religião condenada a ser um discurso encerrado nas suas quatro paredes, vocacionado para os desgraçados, os infortunados, continuando com uma duplicidade do tipo: bem eterno no céu, para os pobres; graças efémeras na terra, para os ricos? Ora, os pobres não terão jamais direito à terra, na qual labutam, e os ricos, porque ricos, ao céu?  E onde fica o humano?




Margarida Azevedo

sexta-feira, abril 03, 2015

É TEMPO DE REFLECTIR !


A laicização do Estado talvez seja uma das maiores conquistas das democracias ocidentais da velha Europa. Pluralizou o tecido religioso-social, confrontou modos de perspectivar a Lei, refinou o conceito de justiça, desenvolveu direitos e deveres.
 A Revolução Francesa lançou o grande boom com a sua trilogia própria de Liberdade, Fraternidade, Igualdade, os pilares laicos nos quais assenta uma cabeça um voto, independentemente de sexo, raça, etnia, religião… Porque não foram as religiões a criá-lo, no universo complexo de trilogias em que se envolvem, bem como na multidão de profetas que as preencheram ao longo dos séculos, é uma outra questão; pensamos que nenhum profeta estaria contra princípios como os supramencionados, todavia não será descabido afirmar que a liberdade foi sempre algo assustador para o mundo religioso, e a igualdade mais ainda. A separação entre bons e maus, merecedores e imerecedores, levou à perdição da fé conduzindo-a pelos caminhos do medo e do temor, e não da alegria libertadora de quem se sente portador da Graça. No conjunto, infelizmente, a fraternidade amesquinhou-se junto dos pobrezinhos, que se tornaram o detergente para a limpeza das almas perturbadas.
Desta forma, podemos afirmar que o laico impôs ao religioso uma nova reflexão sobre Deus, o Seu “novo” papel na História, através da emergência de um igualmente novo sentido de mistério, a saber, os sublimes mistérios da Ciência. Por outras palavras, o misterioso cai do pedestal da religião e toma ares de laico também. Partilham-se conceitos, a Ciência objectiva o que até então era do âmbito exclusivo do sagrado, a saber, como é que o mundo foi criado e porquê?
Da primeira metade do séc. XIX, em França, emerge o Positivismo com Augusto Comte (1798-1857), defensor do poder do poder absoluto da razão, com a teoria dos três estados ou períodos da história humana: Teológico – Deus está em tudo; Metafísico – relações com os Espíritos, mercê da descrença num Deus todo-poderoso; Positivo – a procura de respostas científicas). A lei de causa e efeito, a rejeição de todos os factos que não forem comprovados, mergulhando a autenticidade do conhecimento em definições como soalhos estáveis e firmes, devemo-la a este período. A crença pisou novo terreno, aquele de que é dado ao Homem a possibilidade de conhecer as leis que governam o Universo, amarrando a fé ao templo, a razão aos laboratórios, ateliês, salões… Desafiando o invisível, na perseguição do infinitamente pequeno, Pasteur (1822-1895) avança com a primeira vacina contra a raiva e o método deconservação do leite e do vinho, a pasteurização, com Darwin, e a sua teoria da evolução das espécies, desmorona-se o criacionismo bíblico do Génesis, entra-se na discussão acesa entre Naturalistas e Racionalistas, entre os que persistiam nos valores herdados e os modernistas “emancipados”.
O campo religioso, para não ficar para trás, teria de acompanhar este ambiente de teses e sínteses, de superações. Mas como? A ideia de um idioma sagrado, o latim, perde o lugar no podium, impõe-se que todos saibam o que dizem as Escrituras. A religião e a fé não mais se voltam a confundir. O universo religioso reformulou-se, repensou-se, meditou sobre si mesmo, porque a isso foi obrigado. A importância do social para o universo do religioso ganha expressão, conduzindo-o ao alargar do campo teológico para novos temas, principalmente o conceito de evolução, levando as elites religiosas a abrirem-se às elites intelectuais positivistas, ainda que para as combaterem com veemência.
Porém, o Cristianismo saiu beneficiado: a fé ganha espaço, afirma-se na sua singularidade; o religioso discute-se nas suas bases teológicas; a ciência positivista relativiza-se pois os idealistas são acérrimos defensores de que não é dado ao homem conhecer os mistérios do universo, remetendo a discussão para o antigo pensamento helenista de que a verdadeira natureza das coisas gosta de ocultar-se; que vivemos num mundo em que tudo se nos esconde, outros afirmando o contrário, que tudo é mesmo assim; a fé e a razão enfrentam-se; a importância dos sentidos, a pré-determinação, o destino, etc,, constituem a moldura na qual se desencadeia a panóplia do debate rico de ideias.
Porém, fosse qual fosse o âmbito da discussão, o religioso estava e sempre esteve presente. Não era possível pensar o humano sem o religioso, a fé, Deus, os profetas. A relatividade das suas verdades conduziu a novas hermenêuticas. As revoluções culturais, resultantes das sociais e políticas, ou vice-versa, (esta causalidade é uma longa questão; talvez seja mais coerente afirmar que se implicam entre si e são simultâneas no tempo, uma vez que há contágios, impossível escapar-lhes) jamais excluíram o religioso.
Quanto ao positivismo, o seu universo epistemológico monista reduziu o conhecimento científico, porque, efectivamente, afirmar apenas aquilo de que conhecemos as causas é ver a ciência ao contrário. Já Aristóteles afirmava que a Metafísica é a ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios. Ora, nesta perspectiva, o que em verdade sabemos são causas causadas, meros  resultados, tal como a água que jorra da fonte, mas cujo princípio nos está vedado.
 Com isto, a religião ganha terreno. Deus é a fonte de todas as coisas, causa primeira, aquilo que só pela fé se pode atingir, ou então por uma razão com novos contornos. Este o balão de oxigénio que, contestado ou não, com provas ou sem elas, vai cair redondo no âmbito de qualquer coisa como a fé raciocinada. Um escândalo!
 A razão e fé tiveram que se aliar. Quanto à primeira, ou compreende que não pode ser de outro modo, ou apresenta provas que não provam nada, pois é bem mais difícil provar uma causa primeira material, que uma causa primeira incausada, porque fora da Matéria; é preferível aceitar a ignorância e os limites das capacidades humanas do que aceitar como verosímil erros que mais tarde se vêm a provar como grosseiros. É mais difícil provar que não há Deus, e explicar o mundo, consequnetemente, sem uma vontade suprema, do que remeter a mesma problemática para um Ser Supremo.
Ciência e Religião têm a obrigação de calar disparates mútuos, imporem-se como caminhos paralelos, as duas pernas que, equilibradas, nos permitem caminhar.
Hoje, tudo isto tem que voltar a ser repensado. A lei de causa e efeito talvez não seja bem o que muitos pensam. Ela não significa determinismo, castigo,vingança, penas mais ou menos longas. Vivemos hoje na teoria das probabilidades, se não mais justa, pelo menos mais coerente. O calor dilata os sólidos, é verdade, mas será sempre assim? É claro que não. Pode acontecer uma situação em que tal não aconteça, logo, é provável que o calor dilate os sólidos, apenas provável.  Um homicídio numa vida conduz a ser assassinado noutra, sempre? Não. É provável que sim, mas pode não acontecer. Porquê? Respostas não faltam, falta o espírito crítico e livre de sofismas.
Para além de afirmarmos, peremptoriamente, que não sabemos, parece-nos, no entanto, que a problemática exige, dada a sua especificidade, uma análise ética. É que, se todos os homicidas vêm a ser assassinados, então o perdão deixa de fazer sentido, a evolução não existe, e o arrependimento não tem razão de ser. Por outro lado, se for escolha do próprio, permiti-lo significa retomar todo o processo, dentro de personalidades psicóticas entregues a si mesmas, não capazes de atingir a maturidade de se enfrentarem nos seus erros e, efectivamente, frágeis no seu aprendizado salvífico de amar os inimigos.
O progresso nunca poderia estar no “eu matei, vou ser morto”, uma autêntica pobreza espiritual, mas, em nosso ponto de vista, no amar quem me matou, pois é disso que temos o maior exemplo, e é nele que assentam, e muito bem, as bases do Cristianismo. E isso é que é extremamente difícil.  Muito difícil porque é o amor extremo, tão extremo que não há palavras.


Margarida Azevedo