O OUTRO, EU E A VERDADE
“O que é a verdade?”
Jo 18:38
Uma
trilogia basilar. A eterna problemática do dentro e o fora de nós, o que se
revela e o que se oculta, mediante um móbil, a Verdade.
Vivemos
numa casa onde mora a relação entre o eu e o outro; a dialética entre a
mesmidade e a alteridade, temática importante da filosofia, em geral, e do
cristianismo, em particular: Quem é o outro? Quem sou eu? Também dois elementos
fundamentais para o pensamento religioso fora do cristianismo, historicamente
abordados de formas diferentes.
Porém,
sejam as doutrinas religiosas tidas como construções humanas ou de Espíritos do
outro lado da vida, sem esquecermos que esses mesmos Espíritos mais não são do
que as almas dos que por cá viveram, e tendo em consideração que perfeito só
Deus, nunca é demais lembrar que todas são doutrinas falíveis, o mesmo é dizer
que são mais os discursos alucinados dos que os discursos assertivos.
A
Verdade é uma construção sem fim, que implica partilha, tão infinita como
infinito é o eterno renascer. Procurá-la confunde-se com a descoberta de si
próprio em alteridade face ao outro mas com ele, e porque ele, numa revelação contínua e perene. Dependente de
uma infinidade de factores, por exemplo sociológicos, não apenas religiosos, a
Verdade fragmenta-se em verdades que, hoje, podem não o ser amanhã. Por outras
palavras, a procura da Verdade é resultante de uma instabilidade que nos causa
desconforto. Queremos o contrário, a
estabilidade, o imutável, algo a que não seja possível acresccentar mais nada,
que se baste a si próprio e nos traga a felicidade.
A
Tora aborda a questão existencial que preside à História, “E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão?” (Gn 4:9). Isto
significa que estamos em presença do que podemos chamar o fratricídio das
origens. Se partirmos da tese de que a procura da Verdade é um trabalho
conjunto e não solitário, este crime representa, à partida, e nosso fracasso na
sua procura. Estamos existencialmente barrados à Verdade. O fratricídio das
origens indicia o facto de não possuirmos uma natureza compatível com tal
mercê.
Percebamos que Caim e Abel são duas realidades
culturalmente opostas: Caim, agricultor, sedentário; Abel, pastor, semi-nómada.
Duas profissões diferentes que correspondem a altares diferentes, a ofertas
diferentes: Caim, produtos da terra; Abel primícias dos animais (gordura). O
texto não explica porque é que o Senhor se agradou da oferta de Abel e não da
de Caim, o que sabemos é que o fenómeno religioso parece estar ligado, nas suas
origens, a um fenómeno discriminatório; consequentemente, o desejo de ser alvo
de agrado conduziu à violência. Por outras palavras, os primórdios do religioso
não tem que ver com a docilidade, uma vivência romântica e apaixonada, mas uma resultante
da discriminação de Deus. “Onde está o
teu irmão?”, será sempre a questão ímpar na História das Religiões.
Assim,
o fratricídio conduz à reflexão sobre o outro, na medida em que ele é peça
fundamental das procuras incessantes do eu. Porém, o terrível pecado de Caim
não se insurge como uma ruptura com Deus, nem uma negação da Sua existência,
diríamos nós hoje, mas porque quer fazer notar
e sobrepor o seu altar. Ora o factor religioso não pode anular, ocultar
e justificar o crime. A religião não pode ser considerada uma fuga e uma
justificação de actos ignóbeis; a Verdade não é um conjunto de acções que
acompanham os momentos históricos, são estes que, aprimorando-se, criam as
condições necessárias para que a Verdade se manifeste, ou melhor, se revele,
tal como Deus se revelou ao longo da História aquando de momentos a isso
favoráveis.
No
questionar sem fim deste episódio, revelador da nossa natureza, pergunta-se:
Que ameaça surge tamanha que supera aquilo que, no nosso processo evolutivo, é
capaz de superar e impor-se aos laços da consanguinidade fraternal, que neste
mundo parecem ser os mais fortes e estáveis? Que ameaça representa Abel para Caim?
Além disso, neste episódio, Deus não é apenas um ente religioso, passa a ser
uma questão familiar, social, política, histórica. Aliás, o Deus religioso
deste episódio é problemático na medida em que, se assumir o fratricídio no
altar das oferendas, sobrepõe a dádiva à vida humana, o que seria um
contrasenso
Como
contextualizar este espisódio no século XXI? Continuaremos rendidos ao medo de
que o outro seja o preferido, à procura de uma verdade única, sectária,
criadora de ídolos, projectada num para lá ou num tempo imaginários; uma
verdade castrante e desfuncional, impraticável e isolacionista? Continuar-se-á
a querer impor as nossas oferendas, como
as únicas dignas de atenção, valorando o pessoal como sinónimo de verdadeiro?
Não
temos tamanho para o Absoluto, Deus não cabe nas nossas cabeças, mas devemo-nos
o bom senso de que, onde nos encontramos, estamos rodeados de uma multiplicidade
de caminhos cuja adesão se baseia em factores geo-culturais. Os comportamentos
de hoje, para alguns crentes, relativizaram-se face àquilo que crêem como
verdade. O problema agora é como conquistá-la nos mesmos moldes fora do
contexto geo-cultural onde a crença germinou e se desenvolveu. Globalizar
significa, incontestavel e simultaneamente, anulação e contágio, isto é, há
elementos que fora do seu habitat não conseguem sobreviver, há outros que,
perante a novidade, se implementam porque em terreno fértil.
Quando
dizemos “a minha fé”, à partida, referimo-nos, pela natureza intrínseca da fé,
a uma conjuntura primeira: eu mais o algo em que reconheço alguma
transcendência, que pode ser Deus ou uma Pedra. Há um suposto poder atractivo,
no desconhecido ou no concreto, que nos leva a crer num ou noutro ou em ambos,
porque também cremos em forças opostas, ou supostamente classificadas como tal:
o concreto também é transcendente e vice-versa, e o mesmo acontece com o
desconhecido.
Mas
o problema não está, essencialmente, aí. O problema reside no modo de estar na
fé, confundindo-a com a Verdade. Se o crente pensa que a sua fé se constitui
como uma verdade suprema e intransponível, a única verdade, seja Deus, seja uma
Pedra, então cai na não fé, pois segundo as suas convicções atingiu a verdade,
sem se dar conta de que é da natureza da Verdade a Perfeição; desconhece que
não há, nem poderia haver, doutrinas que encerrem tudo o que há para dizer do
alvo da fé, seja Deus ou uma Pedra.
Ora
a Verdade não é o encontro das minhas respostas existenciais, a revelação de um
fim programado de uma forma de fé. Dizer eureca
não significa instalarmo-nos confortavelmente numa verdade eterna num mundo
onde estamos de passagem. Não podemos antecipar a escatologia existencial de
uma vida em mutação porque ela não reside, certamente, num amanhã sombrio,
fantasioso, imaginário, impossível de ser descrito pelos nossos meios. As
nossas descobertas são as aporias dos nossos escassos conhecimentos em que nos
confrontamos com a não resposta para os nossos problemas mais simples, se é que
há problemas simples. Por exemplo, falamos de mundo, mas não sabemos o que é o
mundo, tal como falamos de verdade sem sabermos o que isso é. Vivemos demasiado
mecanizadamente, demasiado estruturados, preparadíssimos para aceitar o
desconhecido como conhecido. Tudo o que somos e procuramos é demasiado
complexo; eterno retorno da nossa
linguagem inspirada na natureza, da qual a palavra verdade toma contornos
ameaçadores, isto é, “Se eu encontrasse a Verdade, que faria com ela?”, mais,
como reconhecê-la?
Além
disso, quem diz que a Verdade é pertença única e exclusiva do universo
religioso? Fora desse universo há toda uma vivência que lhe confere
legitimidade, e o contrário também se verifica. Não podemos esquecer que somos
seres construtores de mitos; as fantasias que criamos são o reflexo das nossas
almas; as histórias que contamos à noite para adocicar os sonhos, pois a nossa
estrutura psíquica não consegue arcar com a realidade nua e crua, o que provoca
insónia, ajudam-nos a sonhar e ir aprender, falar e ouvir o que não é possível durante a vigília.
É
tão importante estudar os mitos das origens como os átomos e os líquenes; estudar
as células que constituem o nosso corpo, A
Bela Adormecida e proferir orações.
Lembremos a alegoria da caverna (de Platão) que nos conduz a uma reflexão objectiva sobre uma
realidade concreta: estamos de costas viradas para a realidade, presos numa
caverna… Ou o big-bang explica tanto as origens do mundo como as teogonias.
Nada.
Porque
é que o céu é azul e não verde? Porque ficamos com rubor e não azulamos quando
algo nos deixa desconfortáveis? Se não temos resposta para questões tão
aparentemente simples, como podemos falar da Verdade? Os crentes têm feito da
fé um aprisionamento a uma suposta verdade que, no fundo, é a fantasia de que
saíram do aporético e que já estão no caminho certo e definitivo para o Reino
de Deus.
Ora
a verdade é um conceito antropológico, antes de ser outra coisa qualquer: uma
fantasia sobre as nossas cabeças. O animal luta por sobreviver, o homem
acrescenta-lhe mais qualquer coisa. Somos um corpo/temos um corpo. Este corpo,
em Paulo (1 Tess 5: 3-8) está fora do pecado, é apenas o lugar onde o pecado
está inscrito. Esta a riqueza do homem, nisso consiste o seu lado humano. É
pelo pecado que procuramos a Verdade; se Jesus é o Caminho, a Verdade e a Vida,
então é aquele que, perante nós, e não podemos falar perante mais ninguém, é
sem pecado.
Caim
e Abel, a história das nossas origens religiosas que, ao longo das sucessivas
existências, nos induzem à única vivência que merece o nome de Verdade: mudar o
rumo da História e fazer dela a mundivivência de todos os seres que se amam.
Não podemos anular o crime que está cometido, mas podemos perdoar. A Verdade
inerente ao fratricídio é que temos que aprender a viver sem o fantasma do ciúme.
As religiões não encerram a totalidade desta procura, são uma ínfima parte;
estão de passagem como as almas dos homens e das mulheres por este mundo.
Recostar-se
confortavelmente numa doutrina é fechar-se e fechá-la ao progresso, em todos os
níveis: científico, religioso, civilizacional. A natureza humana está
profundamente marcada pelo infinito, o sem fim da insatisfação, o não basta. Vivemos
uma busca permanente na ânsia de encontrar um porto de abrigo onde repousem,
para sempre, os nossos anseios de paz e salvação. Mas isso é, por hora, uma
quimera.
Quanto
à pergunta de Pilatos, Jesus silenciou, porque não veio definir mas dar testemunho
da Verdade (Jo 18: 17). Para quê definir o que não é possível encerrar nas
nossas linguagens?
Margarida
Azevedo
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Bíblia consultada:
Trad. de J. F. de Almeida, Bíblia Sagrada, Sociedades Bíblicas Unidas, Lisboa, 1991, Gn 4; Jo
18; 1 Tess 5.