O GRITO MAIS TRÁGICO QUE MARCOU O OCIDENTE
“Sendo Jesus o espírito tão elevado como
se diz e como o espiritismo defende, como se explica, sabendo que ele vinha em
missão especial à Terra, o momento em que ele diz:
Pai, pai porque me abandonaste.” (Sl 22:1; Mt 27:46; Mc 15: 34. - Pergunta
feita a dirigente espírita).
Mesmo para os que defendem que Jesus
é Deus, vir à carne é dar testemunho de que o humano é capaz de Deus e que Deus
se revela no humano. Um deus que não se revele é um total desconhecido, e
parece que Deus não quer isso. Deus e Homem é um binómio existencial cujo fim consiste
em dar um sentido à vida.
A morte de Jesus na cruz inaugura uma
profunda intensidade dramática. Não é uma questão de fé, mas de vulnerabilidade.
Esta tragédia não leva à cena a problemática da fé, dos seus fracassos e
virtudes, do desespero e das recaídas constantes face ao saber se Deus de facto
existe ou não. A personagem principal é a vulnerabilidade, o lado fraco e débil
do muito humano. Jesus não pôde impor-se à vulnerabilidade porque o humano sem
a vulnerabilidade não é humano. Se Jesus, ao vir ao mundo, não vivesse como
nós, seria uma caricatura e a cruz
abdicaria deste versículo.
“Pai,
pai porque me abandonaste?`` é o maior grito de humanidade que Jesus pôde dar.
É o mesmo que dizer: “Onde Te meteste no momento em que mais preciso de Ti?” Jesus
entrou até ao fim nas nossas limitações, experimentou as nossas fraquezas,
dando testemunho de que o fraco é muito forte na medida em que aceite a sua
mesma fraqueza. O móbil da Cruz foi o Amor incondicional pela humanidade, os fracos.
Mas também podemos perguntar: Deus não
está ausente nesta morte? ou, como é que Deus está presente num crucificado? Que
sentido tem esta morte? O sentido deste versículo inaugura o trágico e o
vulnerável como elementos cristológicos, os quais deixam de ser uma questão
helénica, filosófica, e passam a fazer parte da teologia, da reflexão sobre
Deus. Com Jesus, a vulnerabilidade sobe ao estatuto de caminho directo para
Deus. A Cruz é libertadora.
Assim, neste versículo, o forte e o
fraco confundem-se, o sem sentido (um crucificado) é criador de outro sentido:
o paradoxo da cruz, a ignomínia torna-se processo libertador. A vida explica-se
pela morte e a morte confere sentido à vida. Jesus é co-protagonista connosco desse
sem sentido. A força está na fraqueza, mas o contrário também se verifica.
O versículo não aponta para a missão
de profeta, a sua superioridade face a nós. Pelo contrário, representa-o no
expoente máximo da capacidade de amar na medida em que a vulnerabilidade se
torna a sua/nossa força.
“Pai, pai porque me abandonaste”, não é uma revolta, mas a representação fiel de que estamos
sós na maior experiência-limite da nossa
existência, experiência única e intransmissível, individual, lembrando-nos de
que pode ser o nosso apelo quando chegar a nossa vez de partir. Somos
vulneráveis até à morte, mas não é por isso que somos afectados na nossa fé.
Mas outra perspectiva se impõe, e
muito válida, no entanto herética para cristãos mais radicais. Na observação
judaica, o versículo nada tem de extraordinário na medida em que a noção de
profeta não encerra, só por si, uma superioridade religiosa ou espiritual. Deus
serve-se de quem quer e porque quer e não dá satisfação a ninguém. Os profetas
do Antigo Israel são em tudo iguais a nós, com as mesmas preocupações, os
mesmos fracassos; jamais estiveram fora do mundo. Foi a mundaneidade que os
tornou servos do Deus único. Foi por
serem como nós que se impuseram a nós; o humano conferiu-lhes a autoridade
necessária para nos fazerem reflectir sobre os nossos maus pendores. O profeta
não é, assim, aquele que está longe, nem o que está mais perto de nós. Mais,
ele é um de nós. Jesus não escapou a esta perspectiva (ser considerado ou não
messias, isso já é outra coisa, embora contígua a esta problemática).
Nesta sequência, podemos ainda remeter
o versículo para o Salmo 22. O salmista faz desses versos espectaculares não
uma alusão à ausência de Deus em nós, mas à presença do vulnerável, fazendo da
fraqueza um despertar de consciência. Eis uma definição de morte, a saber, o
despertar para outra consciência. Assim, o salmo apresenta o sofrimento num
misto de: experiência da fraqueza e do desespero; certeza de que Deus ouve esse
grito dilacerante; a noção de que a presença de Deus em nós nem sempre é clara,
ou pelo menos dá ares de estar oculta; a inauguração de outros conceitos
mediante outros sentidos, que só da morte são pertença. Porque me abandonaste,
em Jesus, acresce-se do abandono, por parte de quem era suposto estar firme até
ao fim. Os Doze tresmalharam-se, tomados pelo medo. Isto prova que não perceberam
a sua pregação, não compreenderam a
dimensão existencial de Jesus.
Outro aspecto ainda, um profeta não é
um mágico. A troça de que, já que era rei podia salvar-se a si mesmo, faz
emergir a questão de quantas vezes temos à nossa frente alguém que nos pode
ajudar, dar um parecer assertivo sobre uma atitude nossa menos coerente e nós
não o detectamos, tão simplesmente porque vivemos ou estamos demasiado
apressados. Quantas vezes Deus nos destaca um anjo de carne e osso e nós
sacudimo-lo porque amarrados a conceitos e preconceitos sem sentido! Não é um
processo mágico o que nos liberta, mas a fidelidade a uma presença
incondicional toda amor.
“Pai,
pai porque me abandonaste?”, não é a profecia da adivinhação, mas o grito
do acerto entre o trágico e a vulnerabilidade. É a consciência de uma nova
tragédia em que o coro é a humanidade inteira.
Margarida Azevedo
Citada:
Bíblia, trad. de Frederico
Lourenço, vol 1, Novo Testamento, Os Quatro
Evangelhos, Evangelho Segundo S.
Mateus,Quetzal, Lisboa, 2016, p. 92.
Cadernos Bíblicos, Etienne
Charpentier, Cristo Ressuscitou,
Difusora Bíblica, Lisboa, 1981, n.º6, p.64.
Consultada:
Cadernos Bíblicos n.ºs 1
(1979); 2 (2004); 7/8 (1981); 11 (1994), Difusora Bíblica, Lisboa.
S.j., James Martin, Jesus, Um Encontro Passo a Passo, Paulinas
Editora, Prior Velho, Gólgota,
pp.418-425.