domingo, abril 28, 2019

A HISTÓRIA DE MARIA DA FÉ


            Maria da Fé vive nas ruas dos subúrbios de uma grande cidade. Todos os dias se levanta muito cedo. Não lava roupa nem faz a cama. Não se penteia nem usa perfumes nem cremes. Não tem cabelos sedosos a esvoaçar ao vento. Quando passa todos se afastam porque cheira mal e porque não tem roupa limpa, acabadinha de mudar pela manhã.

            Maria da Fé diz que não tem fé porque a vida também não. Cada vez que alguém em nome da caridade se aproxima ela arrepia-se. Uma vez disseram-lhe que havia uma casa-abrigo para os sem-abrigo. Ela foi porque acreditou e porque queria comer uma refeição quente. Eram todos muito simpáticos. Depois quiseram que aderisse aos preceitos da fé deles para se salvar e não mais ficar na rua. Mas Maria da Fé não queria fé porque não tem fé, queria apenas comer e dormir numa cama como aquelas pessoas com fé.

Maria da Fé dizia não a muita coisa porque não queria nada que não fosse para comer e a salvação não se come. Os sorrisos dos voluntários começaram a desvanecer-se, sentiu-se incomodada, indesejada e foi-se embora. “É sempre assim”, diziam os voluntários, “estamos habituados à ingratidão, mas Deus agradece aos que fazem o bem sem esperar recompensa”, ainda ouviu quando ia a sair.

            Uma vez chegaram mesmo a propor-lhe trabalho voluntário numa instituição a troco de cama, mesa e roupa lavada. Ela aceitou cheia de esperança. Aí lavava, passava, esfregava, tirava teias de aranha dos tectos, ajudava na cozinha, tirava fotocópias, atendia o telefone, tirava as ervas daninhas dos canteiros, trepava às árvores para colher os frutos lá do cimo porque diziam que eram os mais doces e porque as outras voluntárias eram demasiado velhas para subir tão alto e levantava-se sem Sol e deitava-se já o galo cantava. Fugiu.

            Já era a segunda vez que fugia. A primeira foi porque o marido a tratava muito mal, depois abandonou-a sem nada e ainda lhe tirou o ganha-pão porque disse que ela roubava. Mas Maria da Fé nunca roubou. Era tudo mentira.

            Uma vez por outra entrava numa igreja para descansar do calor abrasador da cidade. Às vezes estavam a decorrer rituais com gente muito séria de rostos envolvidos em deambulações que olhavam para ela como uma intrusa perigosa que os vinha assaltar. Davam pela sua presença não por algum ruído que fizesse ao entrar, mas pelo cheiro denunciador de uma presença indesejada. Depois era olhada com repugnância e simulavam ignorà-la.

            Perdida nas suas observaçoes, Maria da Fé tinha por hábito olhar atentamente os transeuntes, alguns vestidos com ar de pedintes outros carregados de compras que ela pensava para que seria tanta coisa.

            Uma vez, Maria da Fé até chegou a ir a um centro espírita porque tinha a porta aberta e era Natal e estavam a distribuir sacos de alimentos. Ela também ganhou um e ficou toda contente. Como era a primeira vez era uma cara nova por lá e despertou de imediato a atenção. Maria da Fé acreditou que finalmente alguém se interessava por ela porque quiseram de imediato saber tudo acerca dela. “Finalmente, pensou, vou poder explicar a minha história que não tem muito que dizer: sofri maus tratos na infância, fui a mais velha de cinco irmãos, o meu pai era alcoólico, a minha mão fugiu porque já não podia mais, o meu pai abandonou-nos; também, crescemos sózinhos, depois fomos cada um para o seu lado porque não nos dávamos bem; depois juntei-me com um homem mau e fugi, não tenho trabalho e quero comer e dormir numa casa paga por mim. É fácil de perceber a minha história!”

            Entretanto, quebrando o ensaio do discurso que iria fazer, alguém a chama para uma sala de atendimento e depois de repetir o que havia dito para si mesma ouviu a conclusão uníssona dos dois que a ouviram: “Minha irmã é o seu karma e do karma ninguém pode fugir. Tem que aceitar tudo com muita resignação porque Jesus também o fez ao morrer na cruz por nós. Se aceitar tudo o que lhe acontece vai ver que a sua vida muda da água para o vinho. Nós nascemos esquecidos pelo grande amor que Deus tem por todos os seus filhos, sem excepção. Você também é uma filha muito amada. Tudo o que está a acontecer só tem uma causa: a própria irmã. Foi a irmã que semeou o que agora está a colher. Sabe, nós somos os únicos culpados de tudo, mas tudo o que nos acontece. Tenha fé! Vai ver que com fé tudo muda.”

            Espantou-se! Maria da Fé não sabia o que pensar. Jamais lhe passaria semelhante coisa pela cabeça. Era a culpada de tudo mas ela só queria trabalhar e ganhar um salário e viver numa casa paga por si. Não queria saber de mais nada. Maria da Fé não andava à procura de razões, explicações, astrais, encarnações, luz, trevas e menos ainda de culpados. Era vida o que ela queria.

            Maria da Fé ouviu calou sujeitou-se e levou o saco e comeu tudo o que lá estava dentro a troco de culpa. Um dia disseram-lhe que era tempo de deixar as ruas da cidade e ir viver para o campo. Foi de boleia no atrelado de um camião de hortaliças e fruta. Encontrou uma casa muito grande, com uma família e muita gente a trabalhar numa herdade que chegava ao horizonte. Todos os dias toma banho no rio que passa dentro da propriedade e vive numa casinha ao lado da dos caseiros que lhe dão roupa e fica ao lado do laranjal. Vive do seu trabalho e das forças da Natureza. Aprendeu a conhecer as plantas que já consegue aconselhar a quem está doente. Lá em baixo na aldeia já a conhecem por causa das plantas e chamam-lhe a Maria das Flores. Quando vem a Primavera dorme sobre os sulcos da terra seca que se desfazem com o peso do seu corpo magro e esguio.

            Maria da Fé passou a ter fé. Acredita nas forças da Natureza e numa Força muito grande que tem mesmo que ser muito grande para fazer a Natureza, os homens e as mulheres e o horizonte. Agora Maria da Fé já é feliz.

 

            Margarida Azevedo

sexta-feira, abril 19, 2019

PÁSCOA, ALIBERDADE E A VIDA


No ciclo perfeito da ordem do eterno retorno,  a Páscoa remete o crente para o expoente máximo da natureza humana, a saber, amar a Deus todo poderoso e perceber que esta força misteriosa que é a Vida só é possível em liberdade.

A presença incondicional da vivência pagã no colorido primaveril no hemisfério norte, ou nas tonalidades outonais no hemisfério sul, conferem à Páscoa uma maior alegria e exuberância. Afinal, o que seria desta festa sem as flores e os frutos nos seus aromas e multicores, celebração de que Aquele que é gerador de vida por que não sê-lo igualmente de liberdade e vida etena para o humano?

No palco da Natureza, a Páscoa impõe-se como uma segunda força pelo imperativo da História e da fé. Nesta trama constante entre cativeiro e liberdade, fé e não-fé, vida e morte, revoltas e bezerros de ouro, que tão bem caracterizam o humano, está em jogo a verdadeira liberdade na sua luta incessante pelo encontro com o seu Deus Criador (ver Êxodo e carta aos Gálatas).

Do Egipto para a Terra Prometida ou da Cruz para a Vida Etena emergem as bases que fundamentam a fé judeo-cristã. Porém, esta passagem não é exclusivista do povo revigorado na sua Terra. O Egipto, representando simbolica e teologicamente o mundo pagão, descobre outra forma de liberdade e de vida: não é livre quem põe e dispõe do outro, nem a vida eterna é passível de ser mumificada e encerrada num sarcófago; o conhecimento científico, identitário do povo egípcio, fantástico, é conduzido a novas reflexões: a fé no Deus único, sem figura, irrepresentável figurativamente,  indizível … marca a identidade de um povo jamais vista até então; há uma força desconhecida que vai marcar, definitivamente, a história de toda a humanidade.

Mas não podemos reduzir esta vivência a meros psicologismos de seres que sonham com a liberdade plena e a não-morte. É certo que, psicologicamente, é possível que estejamos apetrechados para uma concepção de liberdade que transcenda o plano existencial dependente da Natureza, mas a História humana, no plano teológico, supera a concepção de eterno mediante uma estrutura psicológica de um ser assustado com o seu cativeiro e a sua própria morte.

Liberdade e vida eterna, trata-se de realidades teológicas seminais, construtoras da sedimentação da fé em que o humano não está e todo entregue à sua sorte psicológica. Até porque, se a Nautreza se renova, porque não e com maior objectividade a natureza humana? Não será isso o que aprendemos quando abrimos a Bíblia hebraica e cristã? Está lá a nossa natureza inteirinha, psicológica, mas também uma infinidade de outras características que tão incisivamente nos caracterizam.

A Páscoa também nos caracteriza. Sinta-se convidado para a Mesa do Senhor. Reuna a família. Relembre a passagem arriscada pelo mar Vermelho e a tortura deshumana daquela Sexta- feira que assim se santificou. Cante a liberdade da sua fé e a Ressurreição que é a vida na sua transcendência do plano da corporalidade. Liberte-se, ressuscite-se. Projecte-se para a eternidade. Com os profetas faça do lugar onde está a Terra Prometida; com Jesus, o Cristo, faça da Vida Eterna a fé que transcende a História. Ah! O fim da História! O que será isso?

A Terra Prometida, do povo judeu, a vida eterna do judeu Jesus, duas ou uma só Páscoa?  Naquele ano, naquele momento,  perante aquela multidão, naquele império, com aqueles sacerdotes e sumo-sacerdotes, com aqueles zelotas a que chamaram insurrectos, aquela Páscoa única marcou a História da Humanidade para sempre.

Santa Páscoa e boa mesa na sacralização do Eterno.

Margarida Azevedo