A HISTÓRIA DE MARIA DA FÉ
Maria da Fé vive nas ruas dos subúrbios de uma grande
cidade. Todos os dias se levanta muito cedo. Não lava roupa nem faz a cama. Não
se penteia nem usa perfumes nem cremes. Não tem cabelos sedosos a esvoaçar ao
vento. Quando passa todos se afastam porque cheira mal e porque não tem roupa
limpa, acabadinha de mudar pela manhã.
Maria da Fé diz que não tem fé porque a vida também não.
Cada vez que alguém em nome da caridade se aproxima ela arrepia-se. Uma vez
disseram-lhe que havia uma casa-abrigo para os sem-abrigo. Ela foi porque
acreditou e porque queria comer uma refeição quente. Eram todos muito
simpáticos. Depois quiseram que aderisse aos preceitos da fé deles para se
salvar e não mais ficar na rua. Mas Maria da Fé não queria fé porque não tem fé,
queria apenas comer e dormir numa cama como aquelas pessoas com fé.
Maria
da Fé dizia não a muita coisa porque não queria nada que não fosse para comer e
a salvação não se come. Os sorrisos dos voluntários começaram a desvanecer-se,
sentiu-se incomodada, indesejada e foi-se embora. “É sempre assim”, diziam os voluntários, “estamos habituados à ingratidão, mas Deus agradece aos que fazem o bem
sem esperar recompensa”, ainda ouviu quando ia a sair.
Uma vez chegaram mesmo a propor-lhe trabalho voluntário
numa instituição a troco de cama, mesa e roupa lavada. Ela aceitou cheia de
esperança. Aí lavava, passava, esfregava, tirava teias de aranha dos tectos,
ajudava na cozinha, tirava fotocópias, atendia o telefone, tirava as ervas daninhas
dos canteiros, trepava às árvores para colher os frutos lá do cimo porque
diziam que eram os mais doces e porque as outras voluntárias eram demasiado
velhas para subir tão alto e levantava-se sem Sol e deitava-se já o galo
cantava. Fugiu.
Já era a segunda vez que fugia. A primeira foi porque o
marido a tratava muito mal, depois abandonou-a sem nada e ainda lhe tirou o
ganha-pão porque disse que ela roubava. Mas Maria da Fé nunca roubou. Era tudo
mentira.
Uma vez por outra entrava numa igreja para descansar do
calor abrasador da cidade. Às vezes estavam a decorrer rituais com gente muito séria
de rostos envolvidos em deambulações que olhavam para ela como uma intrusa
perigosa que os vinha assaltar. Davam pela sua presença não por algum ruído que
fizesse ao entrar, mas pelo cheiro denunciador de uma presença indesejada.
Depois era olhada com repugnância e simulavam ignorà-la.
Perdida nas suas observaçoes, Maria da Fé tinha por
hábito olhar atentamente os transeuntes, alguns vestidos com ar de pedintes
outros carregados de compras que ela pensava para que seria tanta coisa.
Uma vez, Maria da Fé até chegou a ir a um centro espírita
porque tinha a porta aberta e era Natal e estavam a distribuir sacos de
alimentos. Ela também ganhou um e ficou toda contente. Como era a primeira vez
era uma cara nova por lá e despertou de imediato a atenção. Maria da Fé
acreditou que finalmente alguém se interessava por ela porque quiseram de
imediato saber tudo acerca dela. “Finalmente,
pensou, vou poder explicar a minha história
que não tem muito que dizer: sofri maus tratos na infância, fui a mais velha de
cinco irmãos, o meu pai era alcoólico, a minha mão fugiu porque já não podia
mais, o meu pai abandonou-nos; também, crescemos sózinhos, depois fomos cada um para o seu lado porque
não nos dávamos bem; depois juntei-me com um homem mau e fugi, não tenho
trabalho e quero comer e dormir numa casa paga por mim. É fácil de perceber a
minha história!”
Entretanto,
quebrando o ensaio do discurso que iria fazer, alguém a chama para uma sala de
atendimento e depois de repetir o que havia dito para si mesma ouviu a
conclusão uníssona dos dois que a ouviram: “Minha
irmã é o seu karma e do karma ninguém
pode fugir. Tem que aceitar tudo com muita resignação porque Jesus também o fez
ao morrer na cruz por nós. Se aceitar tudo o que lhe acontece vai ver que a sua
vida muda da água para o vinho. Nós nascemos esquecidos pelo grande amor que
Deus tem por todos os seus filhos, sem excepção. Você também é uma filha muito
amada. Tudo o que está a acontecer só tem uma causa: a própria irmã. Foi a irmã
que semeou o que agora está a colher. Sabe, nós somos os únicos culpados de
tudo, mas tudo o que nos acontece. Tenha fé! Vai ver que com fé tudo muda.”
Espantou-se! Maria
da Fé não sabia o que pensar. Jamais lhe passaria semelhante coisa pela cabeça.
Era a culpada de tudo mas ela só queria trabalhar e ganhar um salário e viver
numa casa paga por si. Não queria saber de mais nada. Maria da Fé não andava à
procura de razões, explicações, astrais, encarnações, luz, trevas e menos ainda
de culpados. Era vida o que ela queria.
Maria da Fé ouviu calou sujeitou-se e levou o saco e
comeu tudo o que lá estava dentro a troco de culpa. Um dia disseram-lhe que era
tempo de deixar as ruas da cidade e ir viver para o campo. Foi de boleia no
atrelado de um camião de hortaliças e fruta. Encontrou uma casa muito grande,
com uma família e muita gente a trabalhar numa herdade que chegava ao
horizonte. Todos os dias toma banho no rio que passa dentro da propriedade e vive
numa casinha ao lado da dos caseiros que lhe dão roupa e fica ao lado do
laranjal. Vive do seu trabalho e das forças da Natureza. Aprendeu a conhecer as
plantas que já consegue aconselhar a quem está doente. Lá em baixo na aldeia já
a conhecem por causa das plantas e chamam-lhe a Maria das Flores. Quando vem a
Primavera dorme sobre os sulcos da terra seca que se desfazem com o peso do seu
corpo magro e esguio.
Maria da Fé passou a ter fé. Acredita nas forças da Natureza
e numa Força muito grande que tem mesmo que ser muito grande para fazer a
Natureza, os homens e as mulheres e o horizonte. Agora Maria da Fé já é feliz.
Margarida Azevedo