domingo, março 22, 2020

A VERDADE




“Eu para isto nasci e para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz.” Disse-lhe Pilatos: “O que é a verdade?”
Jo 18: 37-38 *

            E se as organizações religiosas abdicassem do conceito de verdade? Entrar-se-ia numa nova era. Os devaneios seriam resfriados, a fé seria mais livre, a oração uma agradável conversa com o Divino.
            A verdade, no mundo terreal, é a minha verdade, e a minha verdade é o conjunto das condições existenciais, cronologicamente sequenciais e encadeadas entre si. A verdade é a minha experiência e o respectivo aprendizado dela decorrente, que é partilhável, é verdade, mas sempre dependente da selecção inconsciente do material que é partilhado.
            Por outro lado, a manipulação dos conceitos, a deturpação  do sentido, a pregação para convencer e não para crer, por parte das organizações religiosas, têm conduzido os crentes a uma fé baseada no medo de Deus, por um lado, e à acomodação, por outro. A verdade funciona, assim, como uma pilha recarregável num discurso fantasioso, impondo-se contra o mal eterno e o pecado devastador.
Só que nós não somos crentes porque possuímos a verdade, mas porque temos fé, fé em algo que não conseguimos descrever, mas que dá um sentido muito especial à vida. O invisível é terrivelmente atraente e poderoso.
            A disparidade de sensibilidades, a pluralidade cultural, a vivência individual, e muito acima de tudo isso, o sofrimento, traçam mutações na forma de encarar a vida de tal forma que nos confrontam com a fraqueza e limites do discurso, não raro a sua inviabilidade. Por outras palavras, a suposta verdade tem sido um chorrilho de disparates.
            Acreditar é um processo complexo da alma humana que se baseia essencialmente não apenas numa cultura, mas no modo de estar na mesma. Esse modo de estar manifesta-se, sobretudo, num resíduo de insatisfação em que são procuradas formas paralelas de viver a fé. São disso exemplo as actividades espirituais referentes às famílias que co-existem em estreita contiguidade às práticas colectivas do grupo macro. Quem não conhece as práticas domésticas, baseadas nos cultos aos mortos da família? Quem não conhece as rezas transmitidas de mãe para filha, nas orações femininas, nomeadamente as relacionadas com as primeiras menstruas, a gravidez, o parto, perpetuadas ao longo de séculos? Quem não conhece as orações transmitidas de pai para filho, como por exemplo, as relativas ao gado?
            A verdade é um jardim filosófico e teológico, colorido pela diversidade de razão e de fés, mas que nenhuma a define em concreto. Vivemos a impossibilidade de uma fé delimitadora que a circunscreva numa dicibilidade absoluta.  A verdade é “a minha verdade no acontecer da minha vida”. Os grupos religiosos mais não fazem que tentar encontrar uma noção aceitável, porém nem sempre praticável pelo grupo.
            O autor de João, na linha gnóstica e sapiencial, não põe na boca de Jesus uma definição, mas apresenta-a como o seu objectivo profético. Isto significa que a verdade é uma realidade transcendente. Ela não está em nós, mas vem a nós mediante testemunho. Jesus não disse a Pilatos que sabia o que era a verdade, mas tão somente que vinha dar testemunho dela. Neste ponto, podemo-nos perguntar como é que se dá testemunho de uma coisa que não se conhece. Ora o texto não diz que Jesus não sabe. Ele apenas é omisso quanto à definição.
Tal como os temas virtude, belo, bem, justiça, enfim, e tendo em conta que se está a ler o autor de João, o único que confere à genealogia de Jesus uma transcendência, a verdade é uma das apresentações do Logos que, ao fazer-se carne, entra no humano, isto é, na multiplicidade discursiva, subdividindo-se numa panóplia de sentidos.
Ora o Logos, por natureza, não se define; é a Palavra criadora de palavras, tal como a árvore que dá infinitos frutos. Perceber essa multiplicidade é tornar-se livre. Já em Paulo, Gálatas 5:1, o tema da liberdade é fundamental: “Para a liberdade nos libertou Cristo. Ficai, pois, firmes, e não vos metais de novo debaixo de um jugo de servidão!”**  É essa liberdade o fundamento da pregação de Jesus, liberdade essa que só pode vir por um ser totalmente livre, Deus.
            Se observarmos atentamente o trabalho profético do antigo Israel, não temos definições, mas caminhos traçados pelos profetas, baseados na natureza humana e bastante críticos da mesma (p.ex., ver Jeremias), com o objectivo de atingir uma integridade, e não uma fragmentação dos comportamentos humanos. Isto significa libertação da condição humana aprisionante a valores que não sejam os conformes com a Lei de Deus. A fé de Israel é uma fé libertadora  multi direccional: liberdade do cativeiro no Egipto, liberdade de esperança, liberdade para crer na Promessa, liberdade de culto, liberdade face ao Império Romano, liberdade da própria natureza humana de onde a santidade, enfim, não é a pureza alcançada, mas a compreensão e a luta pela liberdade como expoente máximo da fé. (ver Gálatas na íntegra).
Profeta é aquele que vem traçar caminhos de modificação interior e social, em estreita inter-acção e reciprocidade. Isso só acontece quando há um propósito que é chegar a Deus, não no outro mundo, imaginário, mas neste, fazendo dele o tal outro mundo, o da verdade. Aí, a vida é caminho, e neste sentido temos Marcos, que nos apresenta Jesus como aquele que está no caminho. Há uma geografia teológica em Marcos, a qual joga com as questões vivenciais, pedagogicamente, incentivando a uma libertação do preconceito, do fingimento, da mesquinhez (ver também Mt 26: 6-13; Mc 14: 3-9; Lc 7: 36-50; Jo 12: 1-18).
 Os salmos facultam-nos bons exemplos (p.ex., Sl 15: 2-3; Sl 119: 160). Conduzindo a fé à reflexão sobre a conduta humana, enaltecem a alma com fim ao merecimento da Promessa feita por Deus, enfrentando-se a si mesma cruamente: a Terra Prometida tem que ser merecida.
            Mas, o que significa merecer?  Não é prémio de heroicidade ou de martírio, mas uma resultante de fé inabalável, livre de todos os qualificativos. Isto é, a fé reveste-se de um carácter universalista, está ao alcance de todos. Por isso, os salmos são orações, hinos, lamentos, cânticos, certezas, textos identitários de uma fé que se procura si mesma, que apelam à coragem e à perseverança. Sendo a terra a base estruturante da fé, matéria constituinte do  nosso corpo (carne), raiz identitária, fonte de alimento, então é justificativo mais que suficiente para que Jesus tivessse vindo dar testemunho de um reino onde tudo isso assume a plenitude do sentido. O mesmo é dizer, o plano terreal é merecedor da presença de Deus através do Logos.
            Se definir significa delimitar, traçar contornos, então é precisamente isso que é e, simultaneamente, não é pretendido. Vir ao mundo é entrar no limitado, mas, ao dar-lhe testemunho da verdade, é elevá-lo ao ilimitado. Cada conceito transporta um sentido de imanência e de transcendência, tal como a fé é portadora desta duplicidade, em Deus e na Humanidade (p. ex., no Espiritismo, a fé é humana e divina). Assim, podemos não ter uma definição de verdade, mas sabemos que estamos no caminho, sabemos quando estamos a falar verdade; sabemos que pelas boas acções damos testemunho da verdade; sabemos que, quando amarmos o próximo como a nós mesmos, damos testemunho da comunhão com Deus na prática do Mandamento. É tudo a mesma coisa: crescer no amor é caminhar para Deus, porque a verdade é amor e o amor é verdade. São co-existentes, membros de um mesmo corpo.
            Com Jesus, a verdade é testemunhada.  Não a temos dentro de nós. Ela vem a nós. Aceitamo-la ou não. Sabe-se que a verdade far-nos-á livres. Que liberdade? O texto é omisso. Tendo em conta o ambiente gnosticista do texto, será uma liberdade perfeita, o que deixa no ar a ideia de um suporte oculto fundante do testemunho de Jesus: a verdade não tem fim. 
            Tanto assim que ela não é um fim em si mesma. Ela ruma à libertação. É a verdade que nos fará livres, não é outra coisa. Parece que se está num único momento: conhecer a verdade e ser livre.  
            Mas, porque não terá Jesus respondido a Pilatos? É impossível colocarmo-nos no pensamento de Jesus, mas talvez possamos adiantar que não respondeu “porque eu nada tenho a ver com os vossos conceitos, os vossos problemas linguísticos, as vossas vãs e estéreis ideologias, os vossos problemas políticos; o meu discurso é de outra natureza, porque eu venho de outro lugar, porque as minhas palavras traçam sentidos para vós desconhecidos; porque o eu sou outra coisa.”
 Todos estarão receptivos à verdade? Não. Só os que são da verdade. O que é que isso significa? Jesus não diz. Será uma decisão humana? Talvez. Teologicamente, o que o texto deixa transparecer é a existência de um “eu” que transporta uma pertença e um entendimento que, ouvindo o testemunho, o identifica. Estamos perante um juízo existencialista, pois que, ao ser criado, o ser traz consigo “qualquer coisa” que só na existencialidade toma consciência. Será a fé um paradigma dessa “qualquer coisa”?        
Podemos dizer, assim, que temos uma liberdade prévia que é posta em nós e nos leva a querer pertencer,  à verdade para que, ao ouvirmos o testemunho da mesma, tenhamos adesão. Não aceitá-la é difícil de perceber; a negação envolve-se na nossa natureza complexa e recôndita dos nossos nãos que testemunham a existência de uma fundura inexplicável, muito mais que os dos sins
Quando Pilatos pergunta  o que é a verdade, para o autor de João a problemática é outra: não já a influência  da retórica helenista na componente teológica, mas política. O modo como a pergunta é feita deixa no ar um duvidar de que Jesus soubesse a resposta. Afinal, o que poderia aquele homem, que não era nem político, nem religiosamente um ordenado, um leigo, saber dessas coisas? No entanto, Pilatos tremeu neste processo: Que decidir? Com que bases? Que consequências? Jesus não lhe facilitou a vida, porque não era de interesses políticos que se ocupava; não obtendo resposta de Jesus, retirou-se, facto que consta também nos sinópticos.
            Este virar de costas, político e jurídico, virá a ser um dos pontos de charneira do vasto quão complexo processo de Jesus: não havendo definição de verdade, saiu, como se já não houvesse nada a fazer. Foi esta a sentença: a palavra colapsou no silêncio e no vazio, e a decisão decorrente foi catastrófica. Sem definição, o que resta? A condenação.
A morte de Jesus foi a ingressão do trágico, pertença dos grandes temas da filosofia, na panorâmica teológica. A tragédia também existe no religioso.
            Em suma, há ou não definição? Não, não há. E temos que viver com isso. O que há é a construção  da definição à medida que o ser humano se depura, num presente contínuo. Tudo o que dissermos sobre o que é a verdade será sempre insuficiente, porque estaremos sempre a tentar limitar o ilimitado. Haverá coisas indefinidas por natureza? Não sabemos. Se o soubéssemos já estaríamos a definir. Vivemos no impasse, o que torna a vida muito atraente.
 O Espiritismo, aparentemente, resolveu o problema ao dizer que a nossa linguagem é pobre para definir coisas tão grandiosas. Bem, não é uma questão de pobreza ou riqueza de linguagem, mas de sentidos com que a dotamos;
mundivivências que parecem vir de um mundo longínquo.
            Viver é dizer, e dizer é fazer aparecer. Uma verdade é incontestável: há uma Terra Prometida. Onde? Num lugar qualquer, e com toda a certeza num coração muito grande que faz da vida a grande luta pela verdade que nos fará livres
            Margarida Azevedo

*Bíblia, O Quatro Evangelhos e os Salmos, Conferência Episcopal Portuguesa, Fundação Secretariado Nacional, da Educação Cristã, Lisboa, 2019.
Ler a perícopa na íntegra : vv 28-40. Para melhor a compreender, consultar a perícopa anterior, vv             13-27; ler a perícopa seguinte, 19: 1-16.
** Trad. Prof. Doutor Pastor Dimas de Almeida, 2018-19 (?).
      Consultar outras traduções, nomeadamente:
Bíblia Sagrada, trad. Pe António Ferreira de Figueiredo, aprovada em 1842 pela Rainha D. Maria II, Lisboa, 1924.
Bíblia Sagrada, trad. João Ferreira de Almeida, Sociedades Bíblicas Unidas, Loisboa, 1968  Bíblia Sagrada, Rev.Padres Capuchinhos, Verbo, Lisboa, 1976.
Bíblia de Jerusalém, Paulus, são Paulo, 2002.
Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagrdas, Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, SP, 2006.
La Bible, trad. oecuménique, TOB, Biblio – Société Biblique Française,/Les Éditions du Cerf, Paris, 2010.
Bíblia, Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos, vol. I, trad. Frederico Lourenço, Quetzal,    Lisboa, 2016.
Bíblia, Os Quatro Evangelhos e os Salmos, Conferência Episcopal Portuguesa, Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã, Lisboa, 2019.

Bibliografia consultada
        HAYOUN, M.-R., O Judaísmo,Teorema, Lisboa, 2004.