EM QUE DEVO ACREDITAR
Nesta sociedade global, com o seu mosaico religioso fortemente marcado pela pluralidade, esta questão surge qual grito de desespero, não propriamente num cenário de uma crise de fé, mas no de um actor de uma peça com dificuldade em construir a personagem. Se observarmos com atenção, temos as religiões da natureza, oriundas de África, América Latina e Ásia, se bem que os cinco continentes são todos marcados por uma forte ligação à natureza; temos depois as religiões taoistas, budistas e o Hinduísmo; temos as chamadas monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo; temos as politeístas e as henoteístas; temos seitas baseadas em todas elas e com nuanças infinitas; temos o ecumenismo e o pluri-religiosismo; temos as temáticas de cada uma delas, teologias incidentes em determinados âmbitos tal como apocalipses, espiritualismos, etc, exotéricos e esotéricos; temos as sacrificiais e as suas opostas; temos os grupos espíritas; temos aquelas em que se grita e as outras em que se está no mais profundo silêncio; aquelas em que se dança e aquelas em que ninguém se mexe; temos as que defendem um deus vingativo e outras um amoroso; temos as que subjugam as mulheres e as que as idolatram; temos as que defendem a igualdade entre ambos os sexos; temos as que se baseiam em comprovação científica e as que desprezam a ciência, e temos outras que se ficam pelo meio-termo, etc. etc, etc. E temos tudo o mais que nem nos passa pela cabeça. E pergunta-se: Em que ficamos? Bom, o melhor será perguntar em que quer acreditar? De que é que a sua fé realmente precisa? O que é que as suas condições existenciais lhe exigem? Há que perceber que ninguém segue uma religião se esta não corresponder aos seus anseios e necessidades existenciais. Por outro lado, as respostas são sempre provisórias. Não caiamos no fundamentalismo de uma resposta definitiva. Também não há uma resposta global, universal. Não estamos todos dentro de uma caixa. Se num lado se pede chuva, noutro que ela pare; se num se pede calor, noutro pede-se frio. Também não se deve pensar religiosamente no fim dos tempos. É ridículo. Nunca deixámos de viver no fim dos tempos. Estamos permanentemente num eterno fim; todos os dias são fins dos tempos, os dias não se repetem. Além disso podemos cair para o lado a qualquer momento. É o fim, dos nossos tempos. A fé não é um delírio nem um vírus que se alojou na cabeça. Crer não é um tombo existencial de um ser que colapsou. A fé é o que nos torna a todos profetas em causa própria. Não procure adivinhos nem leitores de oráculos. Nem gente que fala com Espíritos superiores. Procure amigos, essencialmente gente capaz de deixar muita coisa por si. Acredite nisso. Acredite que os há. Se acreditar no amor tem aí a maior das religiões, só que essa ainda não existe. Ou melhor, existe, no coração daqueles que o procuram, ou que já o sentem. Quando as pessoas pregam mudanças religiosas do tipo,” a sua não presta, a minha é que é boa”, estão a entrar na intimidade do crente com Deus. Aqui, o Judaísmo tem razão. As pessoas não devem converter-se a nada, mas simplesmente seguir o Deus único, o Deus da Promessa, o Deus libertador. Por outras palavras, é a Deus que a pessoa se deve converter. As religiões são organizações transitórias como tudo é transitório neste mundo. Não existe eternidade religiosa; não existe uma fé inabalável, no sentido de estática. Existe uma permanente evolução da fé. Deixar de seguir esta ou aquela religião, deixar de ser verde e passar a cor-de-rosa não significa crescimento. Apenas que há um discurso que, para a sua vida, já se esgotou. As condições existenciais já não se satisfazem com aquele discurso. Quanto à evolução, isso é outra coisa. Porém, se a mudança significa, ingenuamente, que anda à procura da religião verdadeira, então perde o seu tempo. Estou a lembrar-me de, no final de uma conferência sobre estas temáticas, na antiga sede da Federação Espírita Portuguesa - Rua Maestro Pedro de Freitas Branco, n.º 24 – A, r/c, freguesia de S. Mamede, em Lisboa, era então presidente a Exmª Srª. D. Maria Raquel Duarte Santos - uma senhora colocou-me a seguinte questão: “Diga-me qual é a melhor religião. Já andei por uma série delas e estou bastante desiludida. Olhe, no fundo, são todas o mesmo. Estão todas erradas! Já não sei em que devo acreditar.” No alto dos meus vinte e poucos aninhos, e ao perceber que a intenção da senhora era que eu lhe desse a chave-mestra, respondi: “ O problema foi quando saiu da primeira. Quem acha que a religião em que se encontra simplesmente está errada, então é porque sente que já atingiu um patamar superior. Nesse caso, deve permanecer nela para a fazer evoluir com a sua superioridade intelectual; nunca se deve virar as costas, mas ensinar aos irmãos de grupo o que eles ignoram.” E fez-se um silêncio tumular na sala num sábado quente de Lisboa. A senhora andava há anos à procura da melhor ou da verdadeira. Erro crasso. Se se tiver a lucidez para procurar a que “for a melhor para mim” já é muito bom. Há quem nem isso perceba. As religiões são como um bolo de aniversário. A base pode ser a mesma, o que difere é a decoração. A base é estruturante para a decoração, a religião é estruturante para a sobrevivência do Homem. Podemos não gostar da base, mas a decoração é atractiva e agradável ao paladar. É o que torna o bolo singularmente delicioso. A religião é sempre necessária; a fé é o colorido cintilante, emanação de uma presença inefável, indizível e impermeável a outros inefáveis, indizíveis e impermeáveis. Enfim, tudo o que se sente e se não diz. Talvez nem seja por insuficiência linguística, mas porque não é, por natureza, expressável. Acredite em Deus. Sinta que Ele o/a possui e que você igualmente O possui. A base é a Terra. Também esta nos possui e nós a possuímos por ela. Crer é posse. É abrir-se a um sentido vivificante da vida. Os nossos dilemas existenciais baseiam-se em invenções de uma felicidade ou um bem que se desconhece e com o qual se sonha. O amargo da vida é olhar para o horizonte e querer impor-lhe limites. A existência humana planetizou-se, o ser humano transcendeu-se como nunca o tinha feito. De que horizontes falamos? Não os do ratinho dentro de uma roda a rodar, a rodar sem chegar a lado algum. A fé, e só a fé, nos pode libertar desse movimento infinito para lado nenhum. Fé em quê? Além de Deus, temos os profetas, a Lei. Mas temos a História, palco de encontro de todos eles. Temos o desconhecido que nos atrai quanto nos assusta. É na História que se manifestam os nossos dilemas existenciais, onde sentimos a tal presença, força impulsionadora, inevitavelmente, para a evolução. O pluralismo não é desencontro nem perdição. Mas um quadro colorido da convergência das cores do espectro formando qualquer coisa a que chamamos Planeta Terra. É como se Deus, através de nós e da nossa criatividade, tivesse despejado imensos baldes de tinta e feito esta disparidade. O mundo é a coisa mais real que há, se entendermos por realidade tudo o que Deus faz. O humano não tem capacidade, por si só, de criar esse colorido. Acreditemos nisso. Temos mundo. Isso significa que, para a fé, não estamos a falar de uma lenda, um mito, um sonho, uma fantasia, uma quimera, um desejo profundo do inconsciente. Pode lá estar tudo isso, mas a fé é, por natureza, um ímpeto de transcendência, uma antropologia, uma definição de outro Homem. O Messias? Judeus e Cristãos têm ambos o Messias: para uns está para vir, para outros já veio. Nada disso os distingue. Uns preparam-se para a vinda, outros procuram viver como o que já veio. O esforço de preparação é idêntico ao esforço de um cumprimento, porque o messias é o Messias. Nem o que está para vir, nem o que já veio difere na explicação da sua verdadeira natureza. Para uns é o horizonte sem fim, para outros uma arqueologia. Ambos inatingíveis, impenetráveis. Uns baseiam-se na história, manifestação de Deus como caminho para ele, outros baseiam-se nele, como manifestação de Deus para alterar a história; para uns há o desejo de ter muitos dias de vida, grande descendência e prosperidade económica, para outros há a relatividade da vida, alguns o celibato e a defesa da pobreza, outros o destino. No conjunto, ninguém sabe como é o Messias. Por isso, o modo como caminhamos para Ele é que é importante. O padre António Vieira entendeu muito bem essa questão, de tal forma que impôs-se pela defesa dos Cristãos Novos e da causa judaica. Há o Messias que lhes é comum, o planeta a sua casa, a história a trama dos seus caminhos. Tudo o mais… são filhos de Deus. É nisso que eu acredito. Leitura aconselhada: ANTÓNIO VIEIRA, Pe., Sermões Escolhidos, selecção, introdução e notas por Maria das Graças Moreira de Sá, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, Lisboa, 1984.