O PRESENTE DESCONTÍNUO
“Não é possível descobrir os limites da alma, mesmo percorrendo todos os caminhos: tão profunda medida ela tem.” Heraclito (1) Todos os dias há um princípio, meio e fim, e um “amanhã logo se vê”, porque “é um dia atrás do outro”, ao que podemos chamar estéril locução: “Anda preocupado/a com a vida? Não vale a pena, é um dia atrás do outro!”, “Está deprimido e tem insónias? Não desanime, amanhã logo se vê, é um dia atrás do outro”. O mesmo é dizer, amanhã é o nada, o vazio do hoje que se esgotou nele mesmo. Para quê economizar recursos naturais, reciclar, preocupar-se com o que irá deixar para as gerações futuras? Ninguém vai querer saber, os valores são outros, outras as prioridades. Assim se caminha para uma existência sem raízes, apagão da memória identitária, não percebendo que um presente sem futuro é como uma planta sem semente, e que a efemeridade significa o colapso do psiquismo humano. Por outras palavras, um mundo de doidos. A subida drástica do consumo de medicamentos psiquiátricos é disso prova relevante. Podemos contrapor que os nossos planos saem, na maioria, gorados; porém, o que está em causa não é propriamente um teste à eficácia e possibilidade da concretização, mas sim a noção de que aquilo que fazemos hoje repercute-se no amanhã; que a construção do futuro tem a ver com o sentido de que há algo que permanece e se prolonga, cresce ou se anula, base daquilo a que chamamos progresso. Além disso, esta concepção do futuro como linha condutora sem fim, também é, e essencialmente, uma forma de filantropia; é uma racionalidade que se transcende a ela mesma e pretende espelhar-se na construção de um mundo melhor. Porque temos uma barreira comunicacional que nos faz esbarrar com a impossibilidade de comunicar com os animais, desconhecemos em que medida a mãe galinha e o pai galo transmitem os seus princípios aos pintos. O que sabemos é que há uma transmissão biológica inerente á própria espécie, os galos cantam desde sempre, as galinhas põem os ovos e os pintos piam. É isto a que vamos reduzir o ser humano? Sem memória, não só se perde a identidade, como o elo afectivo que a justifica, o que significa que connosco é pior que nos animais. Limitamo-nos a ser mais uma espécie ao lado das outras, com a agravante de que a inteligência se torna um presente envenenado. O ilustre filósofo François Jullien (2), helenista e sinólogo, oferece uma análise da problemática baseando-se em dois conceitos-chave, a saber, “presentismo” e “descoincidência” (p.56). Crítico da modelização a que o pensamento grego nos conduziu, desde Platão, isto é, uma linha de raciocínio que se tornou seminal na Europa e nela se perpetuou, baseando-se num objectivo fundamental: a construção da cidade ideal. Porém, num mundo cuja teia social está bastante mais complexa, a chuva de informação é torrencial e a rapidez é a característica preponderante, onde fica, que lugar e que benefício lutar por construir uma cidade/sociedade ideal? Podemos objectar colocando a questão noutros moldes: não tendo como objectivo a construção de uma sociedade ideal, entendendo por tal uma sociedade onde o ser humano seja feliz e se reveja como construtor do bem, arquitecto do belo, quais os seus verdadeiros objectivos existenciais, o que é para cada um de nós e o que significa viver, uma vez que não se objectiva um futuro ideal, a esperança de uma vida melhor? F. Jullien afirma esta verdade dolorosa (talvez): “Ninguém sabe se o futuro será melhor, no que diz respeito ao planeta e às relações mundiais. Tal inconsistência conduz-nos ao “presentismo”, o qual não é a escolha do presente nem o desfrutar do aqui e do agora, mas uma inflexão sobre o presente, falta de projecção ideal. (…) o futuro já não nos diz nada.” (idem, ibidem) Parece que estamos a inaugurar um novo campo semântico em que os conceitos de passado, presente e futuro se revestem de novos sentidos: uma desvaloração do presente na medida em que este já não é uma arché referencial para as gerações futuras, o que nos remete para um presente sem futuro porque não sabemos o que este irá ser. Será isto uma outra visão de uma creatio ex nihilo da fé transposta para a filosofia, a política ou mesmo para a vida social? Mas a creatio ex nihilo gerou mundo, apesar de todas as contradições teológicas. Remetendo-nos o autor para dois conceitos gregos, eidos e telos, (idem, ibidem), o primeiro remete para a raiz de ideia, ideal, ideologia, (do grego idea, cujo prefixo grego id remete para ver, isto é, ter uma ideia é ver qualquer coisa); o segundo, teleologia, “é o fim, ao mesmo tempo como fim intencional (*) e como termo. Ora os dois foram-nos retirados, (…).” (idem, ibidem). Pergunta-se: Que fazer? É aqui que o autor entra com o conceito de descoincidência, que vai definir desta forma: “Uma política da descoincidência consistiria em não mais projectar no futuro nem fim (intencional; objectivo) nem modelo, nem telos nem eidos, sem contudo se satisfazer em se adaptar, ao suportar no dia-a-dia as condições impostas.” (idem, ibidem) Por outras palavras, é o fim dos modelos representativos de um exemplo a seguir, o fim do futuro como uma repetição do passado, isto é, implementa-se um processo de clivagem, uma cisão presente/futuro. Acabam os ideais de uma vida mais bela, apoiados no imaginário, ao que acrescentaria, também um passado de ouro, uma vida em que tudo era belo, isto é, a vida intra-uterina da Psicanálise, Adão e Eva no paraíso, a vida monástica dos/das monges/freiras. A descontinuidade escancara as portas a um futuro no qual é impossível projectar ideais, porque incerto, absolutizando a incerteza. Ora com a inevitável crise a que esta conduz, o autor remete para o pensamento chinês, para o qual o misto de perigo e oportunidade são conceitos inter-dependentes (p.57). A proposta de F. Jullien é de que a Europa se abra “a outras tradições de pensamento.” (idem, ibidem), por exemplo, o chinês, de que é especialista, e no qual “se aprende antes de mais que todo o fim é um princípio e que não existe princípio primeiro” (idem, ibidem). É sobre isso, no parecer do autor, a Europa deve começar a reflectir. Nesta perspectiva, e jogando um pouco com as palavras, também podemos afirmar que a descontinuidade tem muito de continuidade e vice-versa. Parece que não se trata tanto de modernização da Europa, o continente onde quase todos gostariam de viver, mas do chumbo da construção de um universo de esperança onde se pode ser feliz. Já Aristóteles fazia da felicidade o grande objectivo do Homem. Agora, parece que não é isso que está em causa, mas o modo de lá chegar. É que não me parece que os Europeus estejam dispostos a abdicar da sua identidade cultural, mas receptivos aos modos de a construir, desde que não entrem em recta de colisão com a sua História. O latim e o grego são seminais à nossa linguagem, construção de um edifício a que chamamos Velho Continente. Seja grego ou chinês, americano ou de qualquer outra parte do mundo, desde sempre houve contágios culturais. Aquilo a que estamos a assistir, porém, é que em qualquer parte do mundo tudo parece estar a desmoronar, mercê da falta de estruturas estáveis, como emprego, direito à saúde e à educação. O estômago vazio, ou satisfeito no incerto, é o móbil da violência. O ser humano tornou-se tão descartável como o plástico que incivilizadamente lançam para o mar. Há um défice organizacional porque há um défice ainda maior de respeito pelo humano e pela natureza. Nunca um/a homem/mulher valeu tão pouco. Num mundo em que cresce todos os dias o número de refugiados, com as equipas de salvamento e as instituições humanitárias exaustas, num vaivém sem fim à vista, mercê de interesses obtusos. A descontinuidade deles é total e permanente. As perspectivas de futuro são nulas ou muito baixas. Por outro lada, os refugiados deixam atrás de si o que jamais quereriam perder, a saber, a sua identidade histórica e cultural. Precisamos de conceitos e novidades organizativas, é verdade, mas desde que conduzam a aumento significativo da produtividade, de uma perspectiva apoiada na ecologia, no saciar de quem tem carência de toda a ordem; Precisamos de conceitos que nos humanizem sem no anularem; precisamos de uma funcionalidade objectiva, viável, emancipadora, geradora de riqueza baseada na justiça social. É de conceitos humanizadores que precisamos, porque dos económicos já estamos a transbordar. O futuro não é o já pensado, mas a inflexão do pensamento sobre novas aplicações porque novas são as realidades a que diariamente estamos sujeitos. Descontinuar não é matar, anular ou esmagar o já feito; é ser capaz de criar algo que se seja funcional nos novos tempos, no seu espaço. Os antepassados tiveram o seu tempo, nós temos que ter o nosso, tão respondente, ou mais, às nossas necessidades como eles tiveram os deles. Podemos mudar os conceitos, incorporar outros, mas se a humanidade, no seu todo, continuar neste caminho de pouco ou nada vale. Em França, 39% não confiam no futuro; 55% consideram que dantes as coisas estavam melhor. Se pudessem escolher uma época, 5% escolhiam o futuro; 30% o presente; 65% o passado. (3) E é esse saudosismo que assusta. Não se pode associar às ditaduras a estabilidade social, a paz podre, a falsa solidez familiar. A descontinuidade faz todo o sentido se nos interrogarmos previamente sobre o que é que vamos descontinuar e em que bases. A abertura a uma conceptualidade política e social diferente não pode descurar as características identitárias do povo importador e, talvez o mais importante, ter em consideração que uma coisa pode funcionar muito bem num lado, mas fracassar no outro. Reavaliar, repensar, reconsiderar e ver o que é que falhou no passado é fundamental. Porém, não se poderá, inversamente, reavaliar os esforços e preocupações relativos ao presente e fazer uma selecção dos mesmos? Afinal, quando falamos do futuro, não estaremos a referir-nos a uma forma de presente em tudo dependente e em moldes semelhantes a um hoje cheio de contrariedades? F. Jullien também vai nesse sentido, porém, a descontinuidade do presente não é uma falência do sistema organizativo, nem perda do referencial identitário, linha condutora da transmissão de experiências acumuladas, mas estar receptivo à novidade e à mudança. Sabemos que a mundialização está a tornar este planeta num lugar inóspito. Deixou de haver imigração grata ao país receptor, à terra de acolhimento. A fuga à guerra e à miséria trazem consigo os ódios de cariz tribal, a intolerância religiosa, o instinto de vingança, os complexos de inferioridade, numa palavra, a ingratidão implementou-se e com ela a lonjura da construção de uma sociedade baseada na educação e respeito mútuos. Caiu-se na nostalgia de um passado que apenas queria progredir, que via nos filhos a continuidade dos propósitos da família. Mas a família caiu em desuso, descontinuou-se, os pais passaram a progenitores e os filhos seres de ninguém. Quem nos protege disto? Quem nos protege de nós mesmos? Esta descontinuidade é a coisa mais nociva que há. Somos, teologicamente falando, argamassa, seres amassados numa mistura de barro e água. Esta estrutura está na base do europeu, mesmo para os ateus. Porém, ao ser-lhe insuflado ar, a argamassa torna-se ser pensante e é capaz de Arte. Se por um lado não falta quem tenha lutado com todas as forças por fazer deste mundo um lugar de delícias, não tem faltado quem vá em sentido contrário. Impondo-se à natureza, com todo o seu triunfalismo, o ser humano não soube fazê-lo com ela, não procurou a parceria com as forças criadoras, mas arvorou-se em ser superior que tudo pode. Somos um mundo de negócios e o ser humano a grande mercadoria, vítima da sua mente deturpada pela ambição doentia. É a vulnerabilidade que caracteriza o humano, hoje e sempre. Não podemos cair no fundamentalismo da ciência, na absolutização da razão, nem na fé cega de que o mundo foi criado para servir os nossos caprichos. O mundo é mais do que isso, transcende a nossa razão, supera a nossa fé, tem existência própria. Será que a fé e a razão têm que estar de costas voltadas, até na construção do futuro? Não poderão estar numa relação de contiguidade? O futuro não pode ser só razão, nem só fé, nem a felicidade só tecnologia. Tem que haver espaço para o sonho, esperança e projectos. Pensar no futuro tem sido tudo isso. Por que não prolongar no tempo as coisas boas do presente? Não falta quem refira o mito de uma idade de ouro, antes da História. O mito das origens, onde tudo era perfeição e felicidade; a vida era um êxtase; vivia-se na transcendência, na total ausência de conflitos. Mas nem todos os grupos de pensamento vão nesse sentido. O Espiritismo, por exemplo, vai em sentido oposto. Os primórdios são de ignorância absoluta, referencial de todos os sofrimentos. O passado jamais foi bom e o futuro, por pior que seja, é sempre melhor, pois resulta de conhecimentos adquiridos através da experiencia, ao longo de vidas sucessivas. Dito de outro modo, não há um passado de ouro, porque submerso na ignorância, mas há um presente como possibilidade, no qual emerge um futuro dourado como prémio do esforço atribulado, épico, em adquirir conhecimento: “Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, quer dizer, sem conhecimentos.” (4), elemento seminal dos princípios filosóficos espíritas. A cultura helénica, com a sua noção de arché, assenta no princípio de que a matéria é eterna. Esta estrutura não é alheia à fé, porque o pensamento filosófico da Antiguidade não acontece em bases ateias, donde o espanto filosófico, causado por tudo o que nos rodeia, apela, dentro do sobrenatural, à raiz filosófica: há algo em vez de nada. Dito de outro modo, este espanto é simultaneamente teológico e filosófico. Em suma, é de capital importância saber em que medida os conceitos de descoincidência, perigo e oportunidade são mais funcionais e assertivos num contexto europeu que os de arché e telos; saber em que áreas estes falharam, se é que falharam, se não teremos sido nós que ainda não atingimos a sua profundidade! É verdade que a razão europeia deve “se abrir a outras tradições de pensamento” (idem, p. 57). Porém, o nosso ilustre filósofo pretende, ao que parece, que o logos se expanda (idem, ibidem). Mas expandir para onde? O logos é tudo. A diferença entre Gregos e Bárbaros é idêntica à diferença entre os acordados e os que dormem. Os acordados são os que têm a consciência da magnitude do logos, onde cabe todo o saber, transcendência e imanência. O logos é o que escapa à descontinuidade ou vive permanentemente nela, porque os saberes são como o pluriverso, estão em expansão permanente. O logos é uma palavra permanentemente grávida. A nós compete-nos fazer o parto… Margarida Azevedo Referências: (1) KIRK, G.S.,RAVEN, J.E., OS Filósofos Pré-Socráticos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1996, frag. 235, p. 208. (2) Philosophie magazine, On Improvise! Comment agir dans l´incertitude, N.º 146, Février, 2021, Paris, J, FRANÇOIS, L´art d´agir sans méthode, pp.55-57. (3) Philosophie magazine, Avoir 15 ans, La Nouvelle Morale des Jeunes, N.148, Avril, 2021, Paris, Le Décryptage, C´Était Mieux Avant, p.21. (4) KARDEC, A., Le livre des Esprits, Les Editions Philman, Saint-Amand-Montrond (France), 2002, Livre 2, Monde Spirite ou des Esprits, Progression des Esprits, quest.,115, p.43. Nota: Em Espiritismo, o sentido de Espírito primordial, ignorante, é, de alguma forma, o de embrião do Homem que tudo desconhece; nível pré-humano; a humanização está ainda por acontecer. *Traduzi a palavra but por fim intencional para a distinguir de fin como termo, conclusão. Em português temos apenas um vocábulo: fim; em francês há dois, fin e but, para especificar ambos os sentidos do vocábulo grego telos.