domingo, março 13, 2022

JESUS E O MITO DO SALVADOR MILAGREIRO

O fanático é aquele/a que não percebe que a fé está cheia de mitos. O que seria a humanidade sem os seus mitos das origens? O que seríamos sem os mitos da Grécia Antiga, de Adão e Eva, raiz explicativa da nossa mesma natureza? O que seria a nossa História sem as epopeias onde interagem deuses e humanos, onde os papéis estão quantas vezes invertidos, os homens tornam-se deuses e os deuses homens numa atracção mútua? O mito não anula Deus. Pelo contrário, é o que O torna dizível, porque a Sua grandiosidade não cabe nas nossas cabeças. O Eterno, “Eu sou” (Ex 3:14), é inominável porque o nome limita, enquadra, circunscreve. Logo, só por meio de balbuceios metalinguísticos é possível referirmo-nos ao Indizível em uma semântica que só pode ser mitológica. Os evangelhos, textos maiêuticos pois Jesus não responde a perguntas com afirmações definitivas, mas com outras perguntas, remetem sempre para uma fundura existencial. A maiêutica é utilizada para a descoberta de coisas novas em que o Amor é a força motriz em Jesus. Mas será possível que esse Amor se imponha ao mito, o combata e vença? Que Jesus viveu na Terra? O da representação dos nossos objectivos de quebrar, desfazer, anular em definitivo tudo o que nos incomoda? O Jesus das birras infantis do quero tudo agora e já? O da nossa reforma interior; o do abandono de uma estabilidade confortável no nosso imaginário? Não será Jesus um deus dos deuses, um rei dos reis sobre o qual o Ocidente descarregou as suas frustrações, fazendo da Cruz a luminosa quão inevitável tortura? Bem, se era rei ou não, se era o Messias ou não, ou quem de facto era ele é a grande temática dos evangelhos, onde as respostas são para todos os gostos, ou seja, não estamos minimamente esclarecidos. Os autores dos evangelhos envolvem em mistério a identidade de Jesus, que não é mais misteriosa do que a nossa. O quem eu sou é a grande questão, e como não há resposta, só a Deus cabe essa afirmação “Eu Sou”. A racionalidade, a modernidade e a tecnologia não são uma eutanásia da fé. O mito não é uma doença incurável a que estejamos condenados para sempre. O mito é a mais célere manifestação do espírito livre, o que mais incisivamente torna possível reflectir sobre o Bem e o Mal. Retirar o mito à nossa vida seria morrer antecipadamente. Não caiamos na loucura de o rejeitar, na ilusão de que o superámos. O problema do Cristianismo está em como lavar a cara a um mito que criou baseado num homem de carne e osso, não em um ser nascido da espuma do mar ou das entranhas da Terra. Com dois mil anos, como democratizá-lo, como enquadrá-lo nos novos mitos urbanos, levando uma resposta nova, favorecendo a vontade de bem como a maior força que há. É que Jesus não foi um titã, mas um homem que ninguém, até hoje, compreendeu. 1ª Parte Se nos interrogarmos sobre o ponto de partida do itinerário da fé, deparamo-nos com a resistência da impossibilidade de uma resposta satisfatória. A fé não nasce em um momento nem em um lugar; não possui um percurso pré-definido. Ela existe, em estado manifesto ou em latência e o modo como é vivida, ou não, está dependente das condições existenciais em que o crente e o mundo interagem numa tensão permanente. Por exemplo, se ficou gravemente doente e com isso desenvolveu a fé, outro poderá, pelo mesmo motivo, rejeitá-la. Estamos a falar da fé como uma virtude dependente da capacidade de suportar um problema. Isto significa que o reforço ou não da fé aconteceu apenas porque o crente projectou o facto num mundo perfeito e poderoso em que era suposto impedir que o mesmo acontecesse. O crente vive na certeza de que há um objectivo que o transcende para as ocorrências da vida, projectando-o num mundo longínquo onde habita um ser superior, referencial para tudo o que lhe acontece; o problema é para ele apenas uma passagem momentânea, limitado à finitude deste mundo, e que terá um fim definitivo num super-mundo livre de toda a dor. Ora, a fé no fim da dor para sempre no outro mundo é o grande móbil existencial, pois o crente sente-se numa observação constante, a qual pondera todos os seus actos e pensamentos mediante uma avaliação que ele desconhece. Mas a fé não é ponto de partida nem de chegada. A fé é uma transcendência, o sentir de uma presença cuja verbalização é impossível. Contar uma história para explicar o inexplicado, todos sabemos que é uma história e que é o inexplicado. O Mito da Criação será sempre um mito, uma bengala para percebermos que há coisas que não estão ao nosso alcance. A fé é acreditar no Algo que construiu essas coisas. Lutar por atingi-Lo significa para o crente caminhar para a não-fé. E o que é isso?! A fé caminha para a sua mesma anulação. O crente supera-a justamente porque ao apagar-se gradualmente vai anulando a certeza num Ser superior construtor de todas as coisas. Isto é, a certeza ainda faz parte da fé em processo de anulação. Quando esta se torna um encontro total com Deus no mundo da não-dor, ou neste mundo, uma vez ultrapassada a própria certeza, a fé chegou ao fim. Atingido Deus já não há necessidade da fé para nada. Para um crente convicto, a fé é a coisa mais desnecessária que há, porque ele já não tem fé. Isto significa que a não-fé pode ser outra coisa. É uma negação da existência de Deus, mas também uma afirmação suprema. Ela é uma superlativação da presença de Deus no coração do crente que, na sua fé espantosa, observa o mundo como criação de um Ser Supremo. Enquanto a não-fé da ausência de Deus é angustiante, traz a falsidade própria do acaso criador de acasos, a da Suma Presença uma felicidade sem fim pois tudo o que é criado tem um objectivo. Esta rejeita a dor, doença e sofrimento como um móbil para se alcançar e afirmar. Ela crê, simplesmente, em Deus, e não há nada que a demova. É um sedimento na alma humana. Todo o ser humano está exposto a acontecimentos interiores e exteriores que o condicionam, e de alguma forma o caracterizam, cuja raiz ou fonte é misteriosa, seja ela instintiva, espiritual ou intelectual, de cariz histórico-social de fonte cósmica, como diriam alguns místicos, estruturantes e simultaneamente estruturados por ele, ou seja, há um já feito e um por fazer existencial na natureza humana. São esses elementos que, entrando em colisão com o meio, tornam o ser humano refractário ao que lhe é exterior, criando clivagens entre a sua identidade e o mundo. Isto tende a concluir, erroneamente, que o entendimento entre os indivíduos advém de uma similaridade inata ou adquirida pela educação, pela socialização e por uma fé adaptada ao meio. Ora o encontro harmonioso entre diferentes como uma resultante da convergência de parecenças, ou de pertença a idênticas falanges cósmicas, na linguagem dos místicos, na tentativa de explicar o inato, não faz sentido. A luta constante por um equilíbrio estabilizador, individual ou colectivo, só é possível através de um desapossar-se de si mediante uma força a que chamamos vontade, que, no fundo, consiste no desejo de ser feliz para sempre, com o outro. Dito de outro modo, eu não sou o centro do mundo. Eu sou um micro-mundo dentro de um macro-mundo com o qual tenho que me harmonizar e este comigo. Em uma linguagem kantiana, essa vontade deve levar-me a interrogar em que medida o meu exercício de fé tornou, hoje, o mundo melhor? Em que medida eu sou um exemplo de fé para a humanidade, da qual sou um/a representante? Que imagem de Deus ofereço ao muindo? Isto não significa que o desapossar-se de si constitua uma anulação do particular. É antes a afirmação magnânima do exercício/treino da fé para a não-fé em puro acto de amor ao próximo. Não se trata de desposse de bens materiais, não é a imposição de um gesto sacrificial, um postiço ou um artificialismo, mas a alegria de se compreender como ser utilíssimo à não-fé da Humanidade. Em verdade, desapossar-se significa relativizar a sua mesma importância com vista à superação de si mesmo, requerendo um equilíbrio psicológico de forma a perceber que a felicidade consiste na estabilidade entre o eu e o outro em estreita inter-acção. Ao ser relativamente permeável ao que lhe é exterior, o ser humano sente uma imposição psicológica estranha, criadora de uma tensão que vai desencadear uma sucessão de conflitos. Estes actuam em duas frentes: ele com o meio e consigo mesmo. Porém, são esses conflitos os elementos seminais da complexificação e do progresso da sociedade no seu todo; igualmente, são eles os pontos determinantes da luta pelo equilíbrio individual. Sabemos, no entanto, que o inato, individual e colectivo, o modo de estar na fé do grupo e do particular não têm, historicamente, as melhores relações. No século XXI, mercê de uma maior liberdade de fé no ocidente, há uma selecção natural, a posteriori, que dirige o crente para a escolha deste ou daquele grupo face à capacidade de resposta deste aos problemas do quotidiano. Mesmo a fé herdada, ou seja, a pertença a um grupo religioso pelo nascimento, só se afirma verdadeiramente quando é contemplada essa mesma singularidade, pois também só dessa forma a fé evolui, individual e do grupo. Neste ponto, o papel da educação religiosa consiste precisamente em articular o particular e o colectivo, com fim à constituição de uma sociedade civil baseada na tolerância, desempenhando cada grupo religioso um papel pacificador. Só assim podemos dizer que a pluralidade da fé faz a riqueza de qualquer religião e que a pluralidade religiosa constrói uma sociedade baseada na tolerância. Dito de outro modo, na religião não há fé, há fés; na sociedade não há uma crença, há crenças; nos homens/mulheres não há uma história das origens, há muitas. Cada ser humano transporta mitos que ele próprio desconhece. Paradoxalmente, herdámos uma resistência a essa construção, não só pelo isolamento entre os grupos religiosos, instalada que tem sido a falta de comunicação e de partilha das perspectivas teológicas, rejeitando-se os grupos entre si, mas e principalmente, pelos ímpetos de conversões e pela absolutização dos discursos. A fé, ou melhor, a fé bastante adoentada, criou o mito da verdade suprema de uma doutrina, verdadeiro instrumento de tortura, não mais que o lado errado do mito: converter os infiéis, custe o que custar e a que preço for. E assim brotam as desarticulações sociais que se têm pago bem caro, não só instalando o fosso entre os crentes, como afastando-os até do(s) próprio(s) Deus/deuses, de que se apresentam como fiéis representantes. Neste sentido, a fé é o grande susto, o pesadelo constante para a sociedade, em que perder uma guerra significa perder os seus deuses, ou cultuar Deus às escondidas. O mito da verdade pertença a pedra e cal em uma doutrina não só desclassifica a importância do mito, como pensa que esgota a verdade no raciocínio humano. É perigosamente totalitário, impede a liberdade de crer e de pensar, de criticar. Não é por acaso que, aquando da pergunta de Pôncio Pilatos “O que é a verdade?” (Jo 18:38), o autor do texto não põe na boca de Jesus uma resposta/definição. Porquê? Imagine-se se o tivesse feito?! O Cristianismo, ao fazer de Jesus Deus construiu mais um deus poderoso, capaz dos maiores feitos, obtendo a resposta contrária aos seus intentos. De uma rajada entrou em colisão com o Deus do Antigo Israel, de que Jesus foi profeta, o Deus dos Doze e de nós todos, construindo numa Trindade de difícil compreensão, mitificando Jesus como a encarnação de um deus das origens. Não percebeu que há o Deus que não encarna, não é representável figurativamente e para Quem a fé é completamente livre de toda e qualquer representação. Há um deus que é Deus, para Quem o Homem é a criatura mais elevada e, como tal, não pode, na sua fé, rebaixar-se aos demais seres: o Homem não pode cultuar uma pedra, um bezerro, uma oliveira (*). Tudo isto nos remete para a emblemática questão: Porque é que existe algo em vez de nada? E o mito, à custa disso, lá sobrevive; as histórias vão-se sobrepondo, amontoam-se no nosso imaginário. É como o pião, com capa não anda, mas sem ela não pode andar. (continua) Margarida Azevedo • Consultar: Carta aos Gálatas, cap. 5.