O TEMPLO - UMA REFERÊNCIA IDENTITÁRIA DA FÉ
“…o templo (…) é igualmente interpretado como a reprodução terrestre de um modelo transcendente.”
Mircea Eliade
Entre um amontoado de pedras sobrepostas ou uma escavação profunda numa rocha; da catedral, com os seus pináculos rebuscados, à orada, com uma torre humilde de apenas um sino, o templo evidencia-se como uma casa identitária da fé de um povo. Vejamos, sumariamente, alguns dos principais aspectos desta relação complexa.
1.O concreto
Ter
a fé como uma realidade totalmente invisível e abstracta é um engano. A fé não objectiva
apenas a exorcização e purificação da alma para a tornar digna de entrar no
mundo da perfeição ou do imutável. Ela revela-se nos acontecimentos que fazem a
história humana, aqui e agora, revelação essa que irrompe pelos sentidos
mostrando-lhes outras realidades de forma perene. Isto é, há uma apologética da
fé que toca o divino, que o provoca, que o materializa, permitindo-nos afirmar
que “um deus que não se manifeste não
pode ser adorado”, ao que podemos acrescentar, em sociedade.
Dito
de outro modo, a sociedade é um grupo organizado de crentes que gravitam em
torno de representações imagéticas da fé num lugar-comum, o templo, ele próprio
uma dessas imagens da fé colectiva, estruturante da relação do humano com o seu
semelhante, com a natureza e com o divino.
2. A hioerofania
Neste
espaço, a que M. Eliade chamou hierofania*, manifestação do sagrado, (gr. ἱερός,
ieros, sagrado e φαίνειν, fainein, manifesto) onde forças de um
mundo distante, que o crente qualifica de puro e sagrado, se manifestam
acrescentando outro sentido à realidade sensível. Lugar onde se matam os
demónios, se afastam os mortos e se evocam as forças poderosas da ordem
pré-estabelecida.
É
nesse espaço privilegiado que é cultuada a divindade através da transposição da
linguagem que, codificada, sobe a outras dimensões e a outras realidades
onde se dizem outras coisas; é aí que a água não é simplesmente água, nem o
pão, nem o vinho, nem o sangue, isto só para lembrar os materiais seminais ao cristianismo.
Assim,
só no templo há a certeza de que o
ser superior se manifesta, só nele há o conhecimento das causas dos nossos
fracassos.
Para nós, cristãos, o templo é a Casa de Deus; as oferendas uma forma de lembrar que tudo o que existe foi feito por Ele, que estamos eternamente gratos e que, dessa forma, solicitamos a Sua presença nas nossas vidas com fim a atingirmos a graça de nos sentarmos à mesa no banquete no reino de Deus de que falam os evangelhos (Mt 22:1-14; Lc 14: 15-24).
3. A tragédia
Mas
o templo também é um espaço de manifestação do trágico. Local por excelência
onde a fraqueza da natureza humana se expõe cruamente, onde o crente agudiza a consciência
da sua situação de problematicidade. Por exemplo, na ausência de explicação para
o sofrimento, resta-lhe a tomada de consciência de que vida e problema
identificam-se; que há um desfasamento entre os objectivos pessoais e os da
divindade, que houve uma ordem perfeita que desapareceu e que precisa de ser
restabelecida.
Isto
é, para haver uma libertação do sofrimento há que o enfrentar, e ao fazê-lo ele é rememorado. A
tragédia existencial humana, de que a fé é um elemento chave, aprisiona de
alguma forma a fé na medida em que esta vive o permanente dilema entre dúvida e
certeza, mais ainda se a encararmos como força libertadora, apenas. Lembro aqui
o rabino Abraam Assor, numa entrevista à Rádio Renascença, nos anos 80 do
século passado, em que dizia: “Já não
precisamos da fé para nada porque está tudo provado, inclusivamente a
existência de Deus.” Certamente pretendendo aniquilar o trágico, para ele a
fé deixa de fazer sentido como procura de uma prova material da existência de Deus.
Já não há a tragédia da dúvida, mas a certeza pela via da impossibilidade
lógica de não existir, fazendo o trágico cai por terra.
Porém,
o Homem não vive sem a sua tragédia. Está condenado a, pelos seus próprios
meios, não ser capaz de superar o sofrimento, por exemplo. Somos manifestamente
insuficientes para nós próprios e, por isso, na ânsia de imortalidade, o templo
impõe-se como lugar de revelação do próprio imortal, e por isso o espaço onde a
fé supera a dúvida. Daí que o Templo de Jerusalém seja o lugar mais santo da fé
de Israel (Eliade, M. p.237), um memorial à história terrena que se funde com a
história divina.
Com
Jesus, a tragédia deixa de ser pertença exclusiva do ético e do filosófico,
estruturante do confronto entre a norma ou lei da família e a lei social e
política, (veja-se o exemplo de Antígona,
de Sófocles), para se tornar uma problemática teológica, também, através da
crucificação. As nossas celebrações, independentemente das igrejas, lembram a
tragédia de Jesus, porém a vitória na certeza de uma vida eterna. Eis a grande
diferença da tragédia em relação à filosofia e à ética: para estas não há
encontro possível, desacordo permanente; em Jesus, a tragédia é caminho para a
felicidade eterna.
A tragédia é a certeza do desconhecido: “O que é que vai ser de mim?”; para o cristão, o trágico é um rito de passagem.
4. A teatralização e o folclore
Cultuar
é teatralizar um episódio muito antigo que deu origem a um acontecimento
singular e misterioso. Trata-se de um acto de memória por meio de gestos e
palavras, elaborados de forma mais ou menos folclórica, onde a noção de tempo é
fundamental. No culto há um tempo histórico (gr.κρόνος, cronos, tempo) que foi interceptado por um momento (gr. kαιρός, cairós, tempo) que desencadeou o
acontecimento marcante.
São
esses dois tempos que assinalam a existência humana, em todos os aspectos. Somos
viajantes nos tempos imemoriais e, por natureza, possuidores de um impulso que
nos faz remontar a um tempo de que não temos memória, a que atribuímos a raiz
dos nossos cultos, justificação dos nossos actos, radical dos nossos valores.
Aquilo a que chamamos realidade mais não é que o imediato na luta pela
sobrevivência que, no fundo, é o almejar da felicidade, como pensava
Aristóteles, com base nas representações desses momentos.
O
tempo (momento) originário revela-se na representação ritualística teatralizada
e folclórica. Foi assim, há muito tempo…
5. O paradoxo
O
paradoxo (gr. Παρά, pará, contrário
a, e δόξα, doxa, opinião - Παράδοξο, paradoxo, contrassenso, opinião ao lado de outra, falta de lógica) é um
misto de surpreendente e contradição, isto é, no templo o divino revela-se e oculta-se,
a finitude supera-se; o infinito torna-se finito, o transcendente torna-se
imanente, e vice- versa.
Para
o cristão, Jesus representa o grande paradoxo na história das religiões, a
saber, a sua máxima humanidade é a sua máxima divinização. Este paradoxo, na
linha dos profetas do Antigo Israel, sedimenta o princípio avassalador de que o
Homem é capaz de Deus na justa medida em que maximamente se humanizar. O humano
e o divino fundem-se.
6. A metáfora
Há
uma transferência de atributos da fé para aquele espaço, a saber, grandeza,
expansão, virtude, que o crente não diz de forma verbal; sonhos e desejos que
se partilham, sofrimentos que se expõem. Enquanto casa de Deus, o templo é uma
representação minúscula de uma transcendência/grandeza sem fim.
Manifestação
figurativa de uma realidade ontológica que só pela metáfora se consegue dizer,
nisso consiste a complexidade do templo. Por exemplo, o cristão não diz o
templo, mas a Casa de Deus, não diz o vinho, mas o Sangue de Cristo; não diz os
crentes, mas os filhos de Deus, não diz os vizinhos, mas os irmãos.
A
metáfora maximiza, transcende, infinitiza, porque tudo o que acontece no templo
não é o que é, mas outra coisa, em torno da qual gravitam realidades ônticas captadas
por outros sentidos, ou os comuns, mas que a linguagem comum não diz.
Dito de outro modo, a linguagem metafórica no templo investe-se de poderes sobrenaturais, por meio de uma codificação, que toda a assembleia parece entender e partilhar, elaborada e transcendente, a que chamamos meta-linguagem. Veja-se, por exemplo, as fórmulas das orações, os mantras (ultra-sons), etc., aplicados na utilização de materiais da natureza que, para atingirem poderes mágicos, são acompanhados de fórmulas verbais, como por exemplo, a água batismal.
Em
suma
Por
que se constroem templos? Obras arquitectónicas teológicas identitárias de uma
sociedade, espaços de transcendência, os templos são construídos para exorcizar
o mal e repor a ordem primordial. Porque à fé não lhe basta a oração no
recolhimento do lar, ela impõe-se como força socializante, o que implica estar
aberto ao outro num espaço que é de todos.
Geralmente
construído nos locais mais altos, o templo é um lugar de convergência de vivências
subjetivas, onde o singular toma contornos de transcendência.
Quando
um templarista refere o Templo de Jerusalém como elemento identitário da sua
fé, e concretamente da história da mesma, um referencial na busca de força para
vencer a adversidade, um aprendizado da honra e da virtude, ainda que este seja
apenas ruinas e escombros, a que é que se dirige concretamente? Precisamente
àquilo que o templo representa: uma identidade, uma memória, história de um
povo, das suas lutas e da sua fé com as quais o templarista se identifica.
Não
há doutrinas nem sociedades sem templos, Os ateus também têm os seus lugares de
peregrinação, como por exemplo o mausoléu de Lenine, na Praça Vermelha, em
Moscovo.
Assim,
o templo é o lugar de manifestação de crenças e de ideologias, onde se
desencadeiam emoções e se eternizam grandes máximas:
Non
nobis domine, non nobis, sed nomini tuo da gloriam.
(Não a nós, Senhor, não a nós, mas toda a
glória ao Teu Nome)
Margarida Azevedo
* Trabalho solicitado pelo irmão Exmo. Comendador da Comenda de Lisboa - Lídio Lopes apresentado em Capitulo em 21 de Setembro de 2021.
*Consultar:
Wikipedia, Hierofania.
Referências
ELIADE,
M., O Sagrado e o Profano, Edição Livros
do Brasil, Lisboa, s/d, cap. I, O Espaço Sagrado
e a Sacralização do Mundo, Templo, Basílica, Catedral, pp.
71-74, cap. II, O Tempo Sagrado e os
Mitos, pp. 79-124.
MARGUERAT,
D., Vie et destin de Jésus de Nazareth, Seuil,
Paris, 2019, Deuxième Partie, La vie du
Nazaréen, 9. Mourir à Jérusalem,
Le
Temple outragé, pp. 234-237.