O PERDÃO DE JESUS IV
A novidade deveras radical nesta
chegada do Messias, vindo da negrura do sofrimento e das mãos dos inimigos,
consiste talvez em que Ele não vem como
vingador, mas como aquele que concede o perdão; e como aquele que intima ao
perdão e concede o poder de perdoar. T. Halík*
O
que classificamos como pathos é decorrente de uma imperfeição do nosso olhar. Mas
não apenas. É aos sentidos que devemos a caracterização do sofrimento que, não
raro, nos enganam e entorpecem.
Este
sofrimento tem também o rosto de um défice de fé, um sinal perturbador de que
não temos o domínio do acreditar, que, diga-se em abono da verdade, já nem
devíamos ter porque Deus é facto consumado, tão vivo e presente quão
perturbador, mas o de O desacreditar sempre que a vida nos diz, de alguma
maneira, um não retumbante.
É
a sinalética das nossas feridas, dos nossos assuntos por resolver, do que vamos
acumulando e deixando para trás. O sofrimento vai construindo pontos de
referência, os tais elementos fundamentais à mudança do nosso estar e do nosso
ser.
Neste
pathos da fé, existencial e metafísico, impõe-se a necessidade de uma Páscoa
permanente, uma passagem da ignorância ao saber, da mentira à verdade, da
não-fé escura e tenebrosa à fé e à superação, isto é, a não-fé toda confiança,
superação, a única capaz de ridicularizar a fé inicial. Digamos, entre a não-fé
cavernosa e a não-fé arrebatadora e super-luminosa, há todo um percurso onde
não faltam os desânimos, mas também as forças poderosas; as fés enfraquecidas,
mas também aquelas que não sabemos onde as vamos buscar. Este é o percurso do
perdão de que Jesus nos dá testemunho, aquela força, como diz Halík, de que
somos investidos, a saber, do poder de perdoar.
Por
isso, o perdão de Jesus é uma entrada vertiginosa na não-fé, a tal que em nós é
a do poder maior que há. Acreditar que o passado é raiz, fonte de todos os
infortúnios, não se diz que seja totalmente falso, diz-se apenas, e porque todos é demasiado arrebatador, que não é
a única fonte, que sê-lo-á remotamente, tão remotamente quão o estamos da
diversidade de vidas e respectivas culturas que habitámos no pretérito. “Vai e não tornes a pecar” significa parte para outra, reforma-te, muda
radicalmente. Porque o perdão investe de coragem, uma coragem muito
especial que conduz aquele que é perdoado a um alívio inexplicável, como um
Pentecostes que caiu sobre ele/a que
o/a dotou de outras capacidades, nomeadamente a força para ser diferente e
inaugurar outro sentido para os sentidos, um novo ver a que podemos chamar revelação,
Este
perdão divino é um marco. Um fim definitivo, uma pedra no assunto. O passado
foi-se. E isto porque a nossa fé não faz parte de um processo evolutivo da
irracionalidade à razão. Ela chega ao humano não pela via animal, mas divina. A
fé pertence-nos tal como o canto às aves canoras ou as guelras aos peixes. A fé
pode evoluir e crescer connosco, hominizar-se (1), mas não pertence ao reino
animal.
A
metamorfose da fé não é a passagem do animal ao homem, mas a dos ciclos, fases,
degraus sucessivos que se constituem como caminho para Deus. Os seus diferentes
aspectos são mostra das nossas mudanças existenciais. Haver inteligência ao
nosso redor não significa inteligência mais fé. A inteligência não implica a
fé, o contrário é que se verifica. Porém, não confundamos fé com instinto. Sem
fé, limitar-nos-íamos a estar simplesmente vivos, instintivamente a lutar pela
sobrevivência, a proteger a vida. Na não-fé superior já não estamos vivos, mas
iluminados, vamos muito para além do conceito biológico de vida, já não
precisamos do instinto de sobrevivência.
O
perdão de Jesus é o maior toque na terra dessa realidade sem fim, porque não é uma
luta contra qualquer coisa, mas o fim de obsessões e possessões que, só pelo
muito amar, se combatem. São as tais acções cujo fundo nos escapa e cujo efeito
é apenas uma parte ínfima do que lhes pode estar por detrás.
Porém,
não confundamos o perdão com as incongruências da actualidade. O mundo
tornou-se num rebanho sem pastor, todos a caminhar para o mesmo descalabro,
ensinados a seguir e a amar os seus próprios carrascos, a protege-los e a votar
neles como se se tratasse de super-homens. Esses votantes na mão de
inteligências sequazes, estão a definhar economicamente, a viver uma autêntica
anarquia moral, onde a razão não faz qualquer sentido legitimando o erro,
desenvolvendo a revolta interior no coração de quase todos, os recalcamentos,
as tensões sociais. A liberdade individual está em perigo, a liberdade de
opinião em risco.
Precisamos
de um novo modelo de conversão: à liberdade, à oração, à despolitização da fé.
É esta a nova ordem do mundo, o tal mundo novo que vem, não por milagre, mas
pelo muito amar. Podemos perguntar: Será o mundo de Deus um universo paralelo?
A fé remete-nos para que mundo, que realidade, para que universo? A crença em
universos paralelos, felizes e radiosos e em harmonia perfeita, faz sentido?
Isto significa que somos habitados por extra-terrestres que nos ludibriam, amam
ou odeiam, enganam, divertem-se com os nossos fracassos!? E pergunta-se: Neste
contexto, quem, verdadeiramente, somos, de facto? Que peso tem a nossa vontade
individual? Teremos mesmo vontade própria?
Porque este mundo está cheio de erros,
sonha-se com a entrada milagrosa nos planetas iluminados. Ora a fé não pode
obstar ao nosso trabalho individual e colectivo. Os cristãos não podem fechar
os olhos aos novos andamentos do mundo, sentados confortavelmente à espera do
Messias Redentor a qualquer momento, ou a aguardar que a morte venha e os
arrebate para a luz. Quando a fé virar as costas ao milagreiro é quando o
trabalho espiritual na terra tomará a sua devida importância.
Precisa-se
urgentemente de lutar contra a indiferença, a crueldade e o politicamente
correcto, não mais que a formatação das mentes, dos interesses ignóbeis, do
tudo ou nada, dos bons versus os maus. Ninguém é bom.
Urge
afugentar as feras das nossas mentes, sair das cavernas da inveja e do egoísmo,
das falsas fés, das falsas igualdades, dos falsos direitos, dos falsos
racismos, das falsas xenofobias, até das falsas violências e falsas
agressividades. Quantas vezes ouvimos o que não gostamos e é uma verdade de que
não gostamos; quantas são as vezes que nos sentimos agredidos só porque fomos
caritativamente chamados à atenção e não gostámos de ser confrontados com o
nosso exagero, a nossa intransigência, a nossa ridícula vaidade?!
O
mundo mergulhou numa pobreza que não é só económica, mas e principalmente
mental. Há quem acredite que, à semelhança dos computadores, estamos
pré-programados, fazendo de Deus um programador implacável. Tudo está previsto,
fabricado, construído até ao mais ínfimo pormenor antes de nascermos fazendo de
nós brinquedos nas mãos de um deus sádico. Isto é, as nossas incógnitas são as
certeza de Deus, a nossa constante novidade um sótão de Deus onde tudo está
mais que batido. Assim, a nossa hipotética livre vontade não parece muito
bem-vinda pois, neste contexto, pode ser o veículo de grandes horrores. Este é
o parecer dos teístas fundamentalistas, para quem o pensar de forma diferente é
visto com desconfiança.
Somos
transportadores de fantasia e mística, o que nos leva a perguntar se haverá uma
tipologia do crente, e nomeadamente do crente monoteísta, cristão ou não? Que
racionalidade e que fé o caracteriza? E é aqui que temos uma grande dificuldade
em responder: a fé é sempre fé, seja qual for a tonalidade em que se envolva. A
fé prende-nos a algo, mas a não-fé luminosa funde-nos com Algo. É essa a
diferença.
Em
suma, quem perdoa tem poder que lhe foi investido, isto é, não somos capazes de
perdoar por iniciativa nossa na medida em que perdoar inaugura uma realidade de
que, fora do perdão, não se tem a noção da sua existência; na profusão da
violência, das falsas informações, da quadratura mental dos nossos tempos, só o
perdão libertador será capaz de fazer arrepiar caminho; perdoar não é acto de
luz divina, um acto ridiculamente mansinho, profeticozinho, bonzinho, mas uma
pedagogia do amor de Deus em nós; perdoar é acabar com os fantasmas de que
existe gente fantástica, ou porque têm gestos e fazem prodígios altruístas (mas
esses também os falsos profetas, que são tão convincentes que até podem enganar
os escolhidos), ou porque através delas só falam Espíritos de luz, ou porque
são grandes pregadores no mundo. Efectivamente, há gente que se destaca, há
autênticos profetas do Bem, mas se estão cá neste mundo, então é a ele que
pertencem, ainda.
Deixemo-nos
de excelências, de supras, de sabedorias fúteis de esperteza sequaz; deixemo-nos
de verdades feitas, de chavões; apaguemos as luzes macilentas da ignorância,
abandonemos os belos discursos, fechemos os livros de retórica. Abracemos a
vida de uma vez por todas; queiramos ser iguais na intransponível e necessária
diferença, sejamos daltónicos às cores das peles, não tenhamos complexos da
raça a que pertencemos nem olhemos para os outros com desconfiança. Caminhemos
para a não-fé, porque tudo é harmonia, tudo é amor. Conquistemos o poder do
perdão.
Margarida
Azevedo
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Referências
*HALÍK, T., O Meu Deus é um Deus Ferido, Paulinas, Prior Velho, 2021, cap. VII, Estigmas e Perdão, pp. 118-119, (itálico do autor substituído por bold).
(1)Nota: Não concebemos o animal homem sem a fé. A fé está-lhe
associada porque a sua carne é de outra natureza.
P. ex, em francês chair e viande designam carne, a primeira designa carne humana, a segunda carne animal. No gr.,: καί ó λόγος γίνομαι σάρξ – Kai o logos, ginomai sárx -
(https://search.nepebrasil.org>interlinear): “E o verbo fez-se carne” - Jo 1: 14
Κρέας – creas - (https://www.infopedia.pt,) carne não humana.