domingo, junho 25, 2023

O FANATISMO CRESCENTE



 

” O fanatismo é mais velho do que o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo. Mais velho do que qualquer Estado, governo ou sistema político.”

Amos Oz (1) 

            O mesmo é dizer, acompanha-nos na nossa complexa e problemática condição humana. Assim sendo, é importante partir do princípio de que todos somos fanáticos, e que esse fanatismo é muito antigo. Ora é nesta base que vamos reflectir.

            É impossível perceber a existência de Deus sem pecado. Os famosos atributos de Deus são predicados nossos. Deus não pode ter atributos, porque Deus não é passível de ser circunscrito nas nossas fórmulas transitórias. O fanatismo entra quando as queremos impor aos outros como se de verdades universais se tratasse.

            Isto significa que aceitar o outro tem a complexidade de, por um lado, querermos o seu bem, por outro, em nome desse suposto bem lhe fazermos muito mal. Se nos interrogarmos “onde vamos buscar essa ideia de que temos poderes salvíficos em relação ao outro”, damo-nos conta de que somos um bando de alucinados. Neste ponto, as religiões são exímias alucinadoras. Isto significa que, se o crente não separar os seus objectivos pessoais dos restantes crentes, se confundir convívio com imposição, então estamos perante o fanatismo no seu melhor.

De um modo geral fazemos do outro um espelho onde reflectimos os nossos atributos. Lá diz o povo, pensa o ladrão que todos o são”, se eu sou assim, os outros também são.

            Acrescente-se o cliché social de todos diferentes, todos iguais. Um cliché infeliz: não somos todos diferentes quanto à nossa natureza humana: todos somos portadores de idênticas qualidades e defeitos (inveja, ciúme, ódio, fanatismo, etc.); não somos todos iguais, em termos sociais (regalias, acesso à saúde e educação, nem no modo como somos ouvidos e atendidos nas instituições, etc.), nem como cidadãos (vivemos em ghettos, bairros mais ou menos problemáticos, deambulamos em áreas muito restritas, etc.). Somos micro - entidades à procura de afirmação, cuja arma utilizada é, principalmente, o fanatismo. Isto significa que não lutamos por ser iguais, queremos marcar a diferença. O pior é que há quem pense que não precisa de ninguém, que se basta, que é auto-suficiente, totalmente independente, totalmente sozinho à mercê de Deus.

            Ora, este mundo de clivagens, de moralidades, de juízos de valor, de princípios, de convicções, de heróis, de ladrões da dignidade, cumulativamente, arrasta consigo a desvaloração da honra e da verdade, o que não deixa de ser verdade. Porém, nós o afirmamos cheios de puritanismo, o que por si só afasta quem se queira aproximar de alguém. Os todos diferentes, todos iguais não aproximou ninguém porque é anti natura. Criou a separação, porque tem que haver sempre um ponto de referência: “Iguais em quê? A quem?”.

            Mas pior que do que isso é não percebemos que todos esses elementos são a base do fanatismo porque muito disfarçados. O fanático é moralista, um herói, um individuo cheio de valores, amigo de ajudar o próximo (está sempre pronto a dar uma mãozinha), fala muito de honra, ou então não fala só para simular humildade; o fanático até pode dar o corpo a queimar (onde é que nós já lemos isto?), é um defensor da igualdade.

O fanático é um purinho que não se vinga de ninguém, directamente, mas vive na avidez da infalível justiça divina. É um pregador do amor de Deus, cheio de sentimento pois “os fanáticos são sentimentais incuráveis: preferem muitas vezes sentir do que pensar, e têm uma fascinação especial pela sua própria morte. Desprezam este mundo e estão impacientes por trocá-lo pelo ‘Paraíso.” (2) No caso do Cristianismo, a erosão do pensamento cristão, quer nos Centros espíritas, quer nas outras organizações, vai-nos trazendo o distanciamento progressivo de Jesus, tornando-se cada vez mais organizações de refúgio social, criando os seus fanáticos próprios, isolando as organizações entre si, de tal forma que o Cristianismo não vai caindo pelo ataque ideológico das outras organizações religiosas, mas em resultado da sua mesma incoerência e deslumbre, do seu apoucar a liberdade individual, numa errónea leitura do “Ide por todo o mundo, proclamai o evangelho a toda a criatura. Quem acreditar e for batizado será salvo; mas quem não acreditar será condenado.” (Mc 16: 15-16) (3)

O cristão de hoje continua um deslumbrado, porque lhe basta conhecer o evangelho e ser batizado, o que o torna um iluminado que diz que se encontrou: “Encontrei-me! Bendita a hora em que vim para esta organização, esta igreja!” Este encontro avassalador gera o fanatismo de “eu encontrei a verdade.”

Com isso, os templos cristãos vão deixando de ser casas de oração para se tornarem espaços protectores do mundo, que está mau, um lugarzinho do tipo vida intra -uterina da Psicanálise. O mesmo para as demais organizações. Dito de outro modo, encontrar-se através de uma organização religiosa, ou de outra coisa qualquer, é uma tentativa inconsciente de voltar à barriga da mãe: tudo protecção, tudo saciedade, tudo num basta arrebatador.

E assim vai triunfando o vazio, nos Centros espíritas, por exemplo, a conferência cujas temáticas são ocas e cheias de erros, numa tentativa de fazer mudar as pessoas, porque tudo o que elas dizem e fazem está totalmente errado, e porque nós temos a verdade nesta doutrina.

Por vezes surgem segmentos do contra, mas são totalmente abafados. Efectivamente, dizer o contrário requer extremo cuidado pois também pode ser uma forma de fanatismo. Por exemplo, pode-se combater o racismo e a xenofobia fanaticamente. Os órgãos de comunicação social se encarregam de criar opiniões, apresentando diariamente as notícias dentro de um molde, como se fôssemos pedras que os artistas moldam ou pilhas recarregáveis, fanatizando o auditório. Isto é, pode-se ser anti qualquer coisa, ainda que essa qualquer coisa seja muito má, mas o combate pode ser fanático. A própria luta contra o fanatismo pode ser fanática.

A melhor forma de combater esta triste realidade é assumirmos o paradoxo: o nosso bem tem tantas coisas nocivas como o nosso mal tem tantas coisas boas. Seguir uma ideologia qualquer, ou fazer dela a sua tábua de salvação pode ser uma necessidade, pode ser também a nossa desgraça. O meu encontro pessoal pode ser um total desencontro com o outro na sua liberdade, um desencontro com a Natureza e com a Vida. Encontrar-me pode ser, geralmente é, uma redundância isolacionista relativizadora do fundamental da vida, a saber, a consciência de que se precisa do outro e este de mim e que é possível viver em parceria pacífica com o diferente, a única realidade, porque estamos submersos na diferença. Já dizia o poeta António Gedeão “Não há, não, duas folhas iguais em toda a criação.” (4)

Entrar para uma instituição de caridade porque tem uma doença grave, tornar-se vegetariano, descobrir as vantagens da meditação e tornar-se zen, pode ser muito bom, pode ser terrífico se se fechar na carapaça.

O mundo está cheio de fanáticos doentes, terminais ou não, de gente que despertou para outras realidades, que estabilizou (perigosíssimo) em qualquer lugar. O paradoxo é que para evoluir livremente temos que marcar encontro com o Todo, mas o Todo é demasiado subtil.

Se experimentarmos lutar por, a cada dia que passa, sermos melhores, nos despojarmos do espartilho das nossas convicções, se começarmos a achar muita graça a nós mesmos, rirmos de nós, como tanto se fala e tão pouco se pratica, então é possível que estejamos no caminho certo. Se aceitarmos que não temos explicações para nada, e que a minha explicação é apenas isso, minha, então ficaremos mais leves.

A nossa ânsia de universalismo confunde o natural direito de sermos ouvidos com o ouvir natural de meras opiniões.

Vivemos no mundo das sensibilidades, nada mais.

 

Margarida Azevedo

           

         

___________________________________

Referências:

(1)   OZ, A., Contra o Fanatismo, Co - edição Asa Editores, Público, Lisboa, 2007, Da Natureza do Fanatismo, p.9.

(2)   _______idem, p.17

(3)   Trad. Conferência Episcopal Portuguesa, Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã, Lisboa, 2019.

(4)   GEDEÃO, A., Poesias Completas (1956-1967), Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1987, Teatro do Mundo 1958, Pastoral, p.72.

sexta-feira, junho 09, 2023

QUANDO OS INFERNOS SÃO A MINHA SALVAÇÃO

 


A todos aqueles que fazem a santinha caridade junto dos sem-abrigo, que lhes deixam o descargo de consciência num pacotinho de leitinho, num pãozinho com queijinho, e em todos os demais “inhos”, aqui deixo o testemunho de um ex-sem-abrigo, verdadeiro exemplo de esperança, de desmedida capacidade de sonhar, uma verdadeira força da Natureza e de fé.

Nos tortuosos caminhos da vida, naquilo a que chamamos problemas e/ou karma, este exemplo de luta leva-nos ao ridículo quando falamos de problemas, fora do âmbito da saúde: uma humidade no tecto, uma unha que se partiu, estar atrasado para o ginásio, não saber o que fazer para o jantar...

Deus, em Sua sabedoria, deu-me o sublime privilégio de conhecer esta alma triunfante, e não seria justo guardá-la só para mim. Por isso, aqui vos deixo a Introdução das Notas de Conferência do Ricardo, um vulto no Ilusionismo português e nas Artes Marciais Kempo / Karaté, de que é instrutor, mas, e acima de tudo, um exemplo para a Humanidade.

“ Olá. O meu nome é Ricardo Pimenta, sou mágico de rua, embora também trabalhe noutros contextos com close-up (1) em eventos, casamentos, aniversários, etc. Foi no entanto na magia de rua que consegui ganhar algum destaque, experiência e o que gosto de chamar “calo”.

Por vezes fico preso ao dilema de contar ou não as minhas origens, pelo que temo que as pessoas confundam superação com vitimização. Mas a verdade é que já estive numa situação precária que me obrigou a viver nas ruas ainda que por pouco tempo.

Num desespero criativo, forcei-me não só a aprender “cups and balls “(2) como a fazê-lo com hamsters reais. Comprei os hamsters e uma gaiola com tudo o que me restava no bolso. Era o último “cartucho”…

Para meu espanto, à medida que lhe ia apanhando o jeito, tornou-se um sucesso nas ruas e ajudou-me a transitar para um hostel e mais tarde, finalmente para uma situação mais estável financeira e psicologicamente.

 

Desde a desenvolver resiliência, força de vontade, controlar mentalmente a fome, lavar a roupa em hostels, etc, inclusive treinava na casa de banho ou no quarto quando ninguém estava a ver para nunca enferrujar (mesmo nesta fase não deixei criar desculpas). Foi uma vida em que paradoxalmente me senti livre, de certa forma. O paradoxo de ser livre não tendo nada por garantido excepto uma ferramenta para obter o básico. Foi uma descida ao inferno, muitas noites de choro, menos 10kg e busca de forças que desconhecia.

Não deixei nunca que a minha paixão pela magia ou as artes marciais fosse posta de parte mesmo vivendo num inferno. Tanto que foi precisamente o que me salvou. Mesmo sem palco ou investimento em material, mesmo com o estômago tão apertado que doía quando comia, fiz o melhor que pude com o que tinha e sabia. Cups and balls com 4 hamsters vivos…

Hoje sei que como humanos ou como artistas devemos ser mais gratos por cada oportunidade de atuar, por cada cliente que nos contrate, por cada audiência que nos encoraje e aplaude. Gratos por termos uma casa onde ensaiar e estudar as nossas rotinas. Gratos por ter sequer a oportunidade de viver num país onde podemos exercer esta profissão.

E gratidão não significa o oposto de ambição. Pelo contrário, nunca fui tão ambicioso na vida como hoje, estendendo mesmo essa ambição até aos meus hábitos de exercício físico, alimentação, leitura, etc.

Uma ambição e disciplina que não sei se vos consigo passar por uma meras notas de conferência mas que desejo que as consigam alcançar.

A dor, meus caros leitores, não se deseja, mas quando é inevitável, é o melhor adubo para as nossas raízes, pois quanto mais amarga a batalha, mais doce é a vitória.

 

Hoje em dia, felizmente, não necessito de fazer magia de rua diariamente, porém vou sempre que posso durante algumas horas pois por mais aterrador que possa parecer, é uma experiência que me faz crescer. Se dá medo, então talvez seja o que mais devo enfrentar.

 

Se vos disser que me assusta a rua mas nunca me assustou um palco, parecerá parvo. Mas é esse calo que vos quero transmitir ao experimentarem vocês mesmos uma experiência semelhante ou simplesmente ficando a conhecer esta vertente da magia.

Como disse, a ideia não é vitimizar-me mas dar-te a ti leitor, um motivo para repensares na próxima vez que te ocorrer uma desculpa para não fazeres o que sabes que tens de fazer. Porque gostar de ser mágico e querer ser mágico são coisas diferentes.”

Margarida Azevedo

 

 

 

 

_________________________________________________

Notas:

Fotografia e respectivas citações da responsabilidade de Ricardo Pimenta

1. Close-up – magia de proximidade;micromagia

2.Cups and Balls – Copos e Bolas – um efeito de ilusionismo com vários séculos de existência.