O FANATISMO CRESCENTE
” O fanatismo é
mais velho do que o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo. Mais velho
do que qualquer Estado, governo ou sistema político.”
Amos Oz (1)
O mesmo é dizer, acompanha-nos na
nossa complexa e problemática condição humana. Assim sendo, é importante partir
do princípio de que todos somos fanáticos, e que esse fanatismo é muito antigo.
Ora é nesta base que vamos reflectir.
É impossível perceber a existência
de Deus sem pecado. Os famosos atributos de Deus são predicados nossos. Deus
não pode ter atributos, porque Deus não é passível de ser circunscrito nas
nossas fórmulas transitórias. O fanatismo entra quando as queremos impor aos
outros como se de verdades universais se tratasse.
Isto significa que aceitar o outro tem
a complexidade de, por um lado, querermos o seu bem, por outro, em nome desse
suposto bem lhe fazermos muito mal. Se nos interrogarmos “onde vamos buscar
essa ideia de que temos poderes salvíficos em relação ao outro”, damo-nos conta
de que somos um bando de alucinados. Neste ponto, as religiões são exímias
alucinadoras. Isto significa que, se o crente não separar os seus objectivos
pessoais dos restantes crentes, se confundir convívio com imposição, então
estamos perante o fanatismo no seu melhor.
De um modo geral fazemos do outro um
espelho onde reflectimos os nossos atributos. Lá diz o povo, pensa o ladrão que todos o são”, se eu
sou assim, os outros também são.
Acrescente-se o cliché social de todos diferentes, todos iguais. Um
cliché infeliz: não somos todos diferentes quanto à nossa natureza humana:
todos somos portadores de idênticas qualidades e defeitos (inveja, ciúme, ódio,
fanatismo, etc.); não somos todos iguais, em termos sociais (regalias, acesso à
saúde e educação, nem no modo como somos ouvidos e atendidos nas instituições,
etc.), nem como cidadãos (vivemos em ghettos, bairros mais ou menos problemáticos,
deambulamos em áreas muito restritas, etc.). Somos micro - entidades à procura
de afirmação, cuja arma utilizada é, principalmente, o fanatismo. Isto
significa que não lutamos por ser iguais, queremos marcar a diferença. O pior é
que há quem pense que não precisa de ninguém, que se basta, que é
auto-suficiente, totalmente independente, totalmente sozinho à mercê de Deus.
Ora, este mundo de clivagens, de
moralidades, de juízos de valor, de princípios, de convicções, de heróis, de
ladrões da dignidade, cumulativamente, arrasta consigo a desvaloração da honra
e da verdade, o que não deixa de ser verdade. Porém, nós o afirmamos cheios de
puritanismo, o que por si só afasta quem se queira aproximar de alguém. Os
todos diferentes, todos iguais não aproximou ninguém porque é anti natura.
Criou a separação, porque tem que haver sempre um ponto de referência: “Iguais em quê? A quem?”.
Mas pior que do que isso é não
percebemos que todos esses elementos são a base do fanatismo porque muito
disfarçados. O fanático é moralista, um herói, um individuo cheio de valores,
amigo de ajudar o próximo (está sempre pronto a dar uma mãozinha), fala muito
de honra, ou então não fala só para simular humildade; o fanático até pode dar
o corpo a queimar (onde é que nós já lemos isto?), é um defensor da igualdade.
O fanático é um purinho que não se vinga
de ninguém, directamente, mas vive na avidez da infalível justiça divina. É um
pregador do amor de Deus, cheio de sentimento pois “os fanáticos são sentimentais incuráveis: preferem muitas vezes sentir
do que pensar, e têm uma fascinação especial pela sua própria morte. Desprezam
este mundo e estão impacientes por trocá-lo pelo ‘Paraíso.” (2) No caso do Cristianismo, a erosão do pensamento
cristão, quer nos Centros espíritas, quer nas outras organizações, vai-nos
trazendo o distanciamento progressivo de Jesus, tornando-se cada vez mais
organizações de refúgio social, criando os seus fanáticos próprios, isolando as
organizações entre si, de tal forma que o Cristianismo não vai caindo pelo
ataque ideológico das outras organizações religiosas, mas em resultado da sua
mesma incoerência e deslumbre, do seu apoucar a liberdade individual, numa
errónea leitura do “Ide por todo o mundo,
proclamai o evangelho a toda a criatura. Quem acreditar e for batizado será
salvo; mas quem não acreditar será condenado.” (Mc 16: 15-16) (3)
O cristão de hoje continua um deslumbrado,
porque lhe basta conhecer o evangelho e ser batizado, o que o torna um
iluminado que diz que se encontrou: “Encontrei-me!
Bendita a hora em que vim para esta organização, esta igreja!” Este
encontro avassalador gera o fanatismo de “eu
encontrei a verdade.”
Com isso, os templos cristãos vão deixando
de ser casas de oração para se tornarem espaços protectores do mundo, que está
mau, um lugarzinho do tipo vida intra -uterina da Psicanálise. O mesmo para as
demais organizações. Dito de outro modo, encontrar-se através de uma
organização religiosa, ou de outra coisa qualquer, é uma tentativa inconsciente
de voltar à barriga da mãe: tudo protecção, tudo saciedade, tudo num basta
arrebatador.
E assim vai triunfando o vazio, nos
Centros espíritas, por exemplo, a conferência cujas temáticas são ocas e cheias
de erros, numa tentativa de fazer mudar as pessoas, porque tudo o que elas
dizem e fazem está totalmente errado, e porque nós temos a verdade nesta
doutrina.
Por vezes surgem segmentos do contra, mas
são totalmente abafados. Efectivamente, dizer o contrário requer extremo
cuidado pois também pode ser uma forma de fanatismo. Por exemplo, pode-se
combater o racismo e a xenofobia fanaticamente. Os órgãos de comunicação social
se encarregam de criar opiniões, apresentando diariamente as notícias dentro de
um molde, como se fôssemos pedras que os artistas moldam ou pilhas recarregáveis,
fanatizando o auditório. Isto é, pode-se ser anti qualquer coisa, ainda que
essa qualquer coisa seja muito má, mas o combate pode ser fanático. A própria
luta contra o fanatismo pode ser fanática.
A melhor forma de combater esta triste
realidade é assumirmos o paradoxo: o nosso bem tem tantas coisas nocivas como o
nosso mal tem tantas coisas boas. Seguir uma ideologia qualquer, ou fazer dela
a sua tábua de salvação pode ser uma necessidade, pode ser também a nossa
desgraça. O meu encontro pessoal pode ser um total desencontro com o outro na
sua liberdade, um desencontro com a Natureza e com a Vida. Encontrar-me pode
ser, geralmente é, uma redundância isolacionista relativizadora do fundamental
da vida, a saber, a consciência de que se precisa do outro e este de mim e que
é possível viver em parceria pacífica com o diferente, a única realidade,
porque estamos submersos na diferença. Já dizia o poeta António Gedeão “Não há, não, duas folhas iguais em toda a
criação.”
(4)
Entrar para uma instituição de caridade
porque tem uma doença grave, tornar-se vegetariano, descobrir as vantagens da
meditação e tornar-se zen, pode ser muito bom, pode ser terrífico se se fechar
na carapaça.
O mundo está cheio de fanáticos doentes,
terminais ou não, de gente que despertou para outras realidades, que
estabilizou (perigosíssimo) em qualquer lugar. O paradoxo é que para evoluir
livremente temos que marcar encontro com o Todo, mas o Todo é demasiado subtil.
Se experimentarmos lutar por, a cada dia
que passa, sermos melhores, nos despojarmos do espartilho das nossas
convicções, se começarmos a achar muita graça a nós mesmos, rirmos de nós, como
tanto se fala e tão pouco se pratica, então é possível que estejamos no caminho
certo. Se aceitarmos que não temos explicações para nada, e que a minha
explicação é apenas isso, minha, então ficaremos mais leves.
A nossa ânsia de universalismo confunde o
natural direito de sermos ouvidos com o ouvir natural de meras opiniões.
Vivemos no mundo das sensibilidades, nada
mais.
Margarida Azevedo
___________________________________
Referências:
(1)
OZ,
A., Contra o Fanatismo, Co - edição
Asa Editores, Público, Lisboa, 2007, Da
Natureza do Fanatismo, p.9.
(2)
_______idem,
p.17
(3)
Trad.
Conferência Episcopal Portuguesa, Fundação Secretariado Nacional da Educação
Cristã, Lisboa, 2019.
(4)
GEDEÃO,
A., Poesias Completas (1956-1967),
Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1987, Teatro do Mundo 1958, Pastoral, p.72.