RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO V
Aprendemos
com Jesus, se o quisermos, a humildade, e esta é proporcional ao modo como a
mensagem é percebida e aceite, o que está em estreita relação com as responsabilidades
espirituais neste mundo, que não são ditadas pelos homens mas por Deus. Por isso
estão muito bem diferenciados o vidente, o profeta e o sacerdote.
Porém,
a dificulde reside no facto de que o cristão fala de coisas que não são de todo
deste mundo. É um portador de uma mensagem em que se encontram harmoniosamente
visível e invisível, corpo e espírito, formando uma unidade integral, o ser
humano numa luta constante por atingir Deus.
No
entanto, aquilo a que chamamos falhas no caminho do homem para Deus está em
destronar a Razão em favor da Fé e vice-versa. Não podemos dinamizar uma,
sobepondo-a, em detrimento da outra,
minimizando-a. A luta do cristão está em equilibrar ambas no altar que é a vida.
Muitos cristãos espíritas vivem entre dois mundos, ambos
incognoscíveis: um, porque está morto, o do passado; outro, porque ainda não
nasceu, o do futuro. Quanto ao primeiro, todos passámos por idênticas
experiências metafísicas, vivemos realidades ontológicas peculiares,
construímos um edifício existencial do qual vamos retirando algumas teias de
aranha ao longo das vidas sucessivas. Quanto ao que está para vir, aí o caso já
é mais problemático. A boa vida futura não é para todos, diz-se à boca
cheia. Está reservada só para os bons, conceito que escapa ao nosso
entendimento. Nós não percebemos nada de bom ou de mau. Habitualmente pensa-se
que a espiritualidade maior é para autênticos sobre-dotados: sofrer em
silêncio, entregar-se a uma vida sacrificial, abster-se da vida social porque o
mundo está muito mau, ser vegetariano rigoroso, enfim, tudo coisas que Deus
gosta.
E porque tudo está tão negro, é natural que se anseie
pelo fim do mundo, num impulso libertador, ou seja, o fim radical dos tempos.
Ora esta lavagem purificadora, tão perigosa quão anti-ética e anti-moral, vazia
de sentido, apática, porém, bélica, baseia-se na espiritualidade da derrota. E
é isto que tem, efectivamente, que mudar. O cristão, seja em que grupo for, tem
que ser uma força de esperança na sociedade.
O abismo hermêutico, não apenas dos textos, antes de mais
da vida, tem criado um fosso inconcebível entre cristãos. Não pode ser. No Cristianismo
não há vitórias nem derrotas, mas aproximação ao mundo, o mesmo é dizar, ao
outro.
E
a propósito, quem são os derrotados e em que medida são realmente derrotados? Quem
são os eleitos? Alguém quer ser eleito, verdadeiramente? Alguém está ciente da
responsabilidade que isso acarreta? Questões difíceis. Ser eleito é estar ido
ao outro, ter tempo, disponibilidade, uma palavra de alento, um sorriso em
momento tempestuoso. Alguém quer ser isso? Nós somos atletas em treino, nada
mais. Ainda não somos o treinador.
Nos
tempos de Jesus, havia os que falavam contra os judeus helenizados, porque a fé
não se aprende através da retórica, porque o monoteísmo não é poder político,
nem social, nem de espécie nenhuma e, como tal, não pretende convencer ninguém
a uma linha de vida, mas dar testemunho de um fundamento existencial que dá
sentido ao quotidiano na relação do espiritual com o humano, isto é, com o seu
próximo e depois com Deus.
E hoje? Os cristãos têm manipulado a fé. Fomentado a
diferença, a começar dentro de uma mesma congregação. O que melhor caracteriza
este animal crente é a manipulação, o medo e a crendice, a confusão entre
verdadeiro e falso. Os profetas foram transformados em assombrações, a vida
futura num lugar para sobredotados de fé, deus num ser birrento e temível. Se
somos feitos do pó, somos portadores de todas as coisas que o pó produz, todas
as coisas estão em nós e nós em todas as coisas. Somos água e terra e ar e
fogo; somos peixe e leão e somos homens e mulheres se o quisermos ser, e somos
santos se assim direccionarmos a nossa existência. Somos verdade e somos
mentira, somo fé e não-fé.
Vivemos uma mimesis
de todas as coisas que nos habitam, porque viver é mimetizar qualquer coisa. A
religião cristã não pode criar/alimentar o desejo obsessivo de querermos ser os
escolhidos, custe o que custar, a qualquer preço, por meio dos mais cruéis
sacrifícios e privando o ser humano da felicidade, a pouca, que conseguir neste
mundo. A fé não é acreditar na fuga à miséria por meio de actos mágicos e
obsessivos. O cristão precisa que Deus acredite nele, despertar a Sua atenção
como merecedores de serem chamados Seus filhos. Eu quero que Deus acredite em
mim, em nós, ainda que não acredite/acreditemos Nele; é Deus que está todo em
tudo, ainda que tal nos passe ao lado nesta época em que o homem se sente um
deus, ainda que diga que não. Numa linguagem camoniana, ser escolhido não
significa da lei da morte nos irmos libertando, mas de uma vida cheia de
tormento a cada existência que passa. Pelos nossos próprios meios, utilizando
as forças que Deus nos dá neste amar incondicional tudo em todos e cada um como
a nós mesmos, e a Deus acima de todas as coisas, que conseguimos fazer do cabo
das Tormentas o cabo Bojador. Temos que ir, juntos, para além da dor.
Não queiramos ser os preferidos, mas os que servem
incondicionalmente; não queiramos ser os desejados, mas os que estão sempre
presentes para os que tombam à beira da estrada; não queiramos sentir-nos
privilegiados, mas os iguais; não queiramos ser puros, mas queiramos viver na
nossa cegueira a luta pela visão da Verdade. Queiramos servir,
servir, servir...
As organizações cristãs não são congregações darwinistas.
Não podem assentar numa base de sobrevivência dos melhores, dos mais fortes,
dos que têm mais força. O monoteísmo, seja ele qual for, vem precisamente em
sentido contrário. Não é um biologismo, mas uma antropologia teológica que
fortalece os deserdados da vida terrena, os quais existem porque o mundo humano
ainda não atingiu a graça do não-egoísmo. O novo cristianismo jamais poderá ser
uma congregação de um montinho de gente muito boazinha, muito santinha. Os
fracos devem ser os mais bem acolhidos, porque no Cristianismo não há fracos
nem fortes, nem bons nem maus, nem desejados nem indesejados. Nele se congrega
gente de todos os quadrantes.
O Cristianismo também não é uma congregação de eleitos
cheios de privilégios sociais e políticos, que procuram as honrarias e a sua
mesma idolatria. Se quer ser eleito, então assuma cada um o seu papel servil, a
começar por estar disponível para ouvir o outro, ser-lhe útil e assim servir a Deus.
E a propósito de eleitos, fiquemos com esta reflexão de J. SACKS, leitura
indispnsável para qualquer cristão:
“Um
povo eleito é o oposto de uma raça superior, primeiro, porque não se trata
de uma raça, mas sim de uma Aliança; segundo, porque existe para servir Deus,
não para se dominarem uns aos outros. Uma raça superior valoriza o poder; um
povo eleito preocupa-se com os fracos. Uma raça superior acredita que tem
direitos; um povo eleito sabe apenas que tem responsabilidades. As
virtudes-chave de uma raça superior são o orgulho, a honra e a fama. A
virtude-chave de um povo eleito é a humildade. Uma raça superior produz
construções monumentais, inscrições triunfais e uma literatura de
autocongratulação. Israel, a um grau único na história, produziu uma literatura
de autocrítica quase ininterrupta.” (1)
Isto não se escreve todos
os dias.
Margarida
Azevedo
Referências:
(1)
SACKS,J., Não em Nome de Deus, Como explicar a Violência Religiosa,
Desassossego, Porto Salvo, 2021,11, A
Universalidade da Justiça, a Particularidade do Amor, p.193.
Foto de António Bento - Pôr do Sol nos Salgados 2023