quarta-feira, agosto 23, 2023

RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO V



Aprendemos com Jesus, se o quisermos, a humildade, e esta é proporcional ao modo como a mensagem é percebida e aceite, o que está em estreita relação com as responsabilidades espirituais neste mundo, que não são ditadas pelos homens mas por Deus. Por isso estão muito bem diferenciados o vidente, o profeta e o sacerdote.

Porém, a dificulde reside no facto de que o cristão fala de coisas que não são de todo deste mundo. É um portador de uma mensagem em que se encontram harmoniosamente visível e invisível, corpo e espírito, formando uma unidade integral, o ser humano numa luta constante por atingir Deus.

No entanto, aquilo a que chamamos falhas no caminho do homem para Deus está em destronar a Razão em favor da Fé e vice-versa. Não podemos dinamizar uma, sobepondo-a,  em detrimento da outra, minimizando-a. A luta do cristão está em equilibrar ambas no altar que é a vida.

            Muitos cristãos espíritas vivem entre dois mundos, ambos incognoscíveis: um, porque está morto, o do passado; outro, porque ainda não nasceu, o do futuro. Quanto ao primeiro, todos passámos por idênticas experiências metafísicas, vivemos realidades ontológicas peculiares, construímos um edifício existencial do qual vamos retirando algumas teias de aranha ao longo das vidas sucessivas. Quanto ao que está para vir, aí o caso já é mais problemático. A boa vida futura não é para todos, diz-se à boca cheia. Está reservada só para os bons, conceito que escapa ao nosso entendimento. Nós não percebemos nada de bom ou de mau. Habitualmente pensa-se que a espiritualidade maior é para autênticos sobre-dotados: sofrer em silêncio, entregar-se a uma vida sacrificial, abster-se da vida social porque o mundo está muito mau, ser vegetariano rigoroso, enfim, tudo coisas que Deus gosta.

            E porque tudo está tão negro, é natural que se anseie pelo fim do mundo, num impulso libertador, ou seja, o fim radical dos tempos. Ora esta lavagem purificadora, tão perigosa quão anti-ética e anti-moral, vazia de sentido, apática, porém, bélica, baseia-se na espiritualidade da derrota. E é isto que tem, efectivamente, que mudar. O cristão, seja em que grupo for, tem que ser uma força de esperança na sociedade.

            O abismo hermêutico, não apenas dos textos, antes de mais da vida, tem criado um fosso inconcebível entre cristãos. Não pode ser. No Cristianismo não há vitórias nem derrotas, mas aproximação ao mundo, o mesmo é dizar, ao outro.

E a propósito, quem são os derrotados e em que medida são realmente derrotados? Quem são os eleitos? Alguém quer ser eleito, verdadeiramente? Alguém está ciente da responsabilidade que isso acarreta? Questões difíceis. Ser eleito é estar ido ao outro, ter tempo, disponibilidade, uma palavra de alento, um sorriso em momento tempestuoso. Alguém quer ser isso? Nós somos atletas em treino, nada mais. Ainda não somos o treinador.

Nos tempos de Jesus, havia os que falavam contra os judeus helenizados, porque a fé não se aprende através da retórica, porque o monoteísmo não é poder político, nem social, nem de espécie nenhuma e, como tal, não pretende convencer ninguém a uma linha de vida, mas dar testemunho de um fundamento existencial que dá sentido ao quotidiano na relação do espiritual com o humano, isto é, com o seu próximo e depois com Deus.

            E hoje? Os cristãos têm manipulado a fé. Fomentado a diferença, a começar dentro de uma mesma congregação. O que melhor caracteriza este animal crente é a manipulação, o medo e a crendice, a confusão entre verdadeiro e falso. Os profetas foram transformados em assombrações, a vida futura num lugar para sobredotados de fé, deus num ser birrento e temível. Se somos feitos do pó, somos portadores de todas as coisas que o pó produz, todas as coisas estão em nós e nós em todas as coisas. Somos água e terra e ar e fogo; somos peixe e leão e somos homens e mulheres se o quisermos ser, e somos santos se assim direccionarmos a nossa existência. Somos verdade e somos mentira, somo fé e não-fé.

            Vivemos uma mimesis de todas as coisas que nos habitam, porque viver é mimetizar qualquer coisa. A religião cristã não pode criar/alimentar o desejo obsessivo de querermos ser os escolhidos, custe o que custar, a qualquer preço, por meio dos mais cruéis sacrifícios e privando o ser humano da felicidade, a pouca, que conseguir neste mundo. A fé não é acreditar na fuga à miséria por meio de actos mágicos e obsessivos. O cristão precisa que Deus acredite nele, despertar a Sua atenção como merecedores de serem chamados Seus filhos. Eu quero que Deus acredite em mim, em nós, ainda que não acredite/acreditemos Nele; é Deus que está todo em tudo, ainda que tal nos passe ao lado nesta época em que o homem se sente um deus, ainda que diga que não. Numa linguagem camoniana, ser escolhido não significa da lei da morte nos irmos libertando, mas de uma vida cheia de tormento a cada existência que passa. Pelos nossos próprios meios, utilizando as forças que Deus nos dá neste amar incondicional tudo em todos e cada um como a nós mesmos, e a Deus acima de todas as coisas, que conseguimos fazer do cabo das Tormentas o cabo Bojador. Temos que ir, juntos, para além da dor.

            Não queiramos ser os preferidos, mas os que servem incondicionalmente; não queiramos ser os desejados, mas os que estão sempre presentes para os que tombam à beira da estrada; não queiramos sentir-nos privilegiados, mas os iguais; não queiramos ser puros, mas queiramos viver na nossa cegueira a luta pela visão da Verdade. Queiramos   servir, servir, servir...

            As organizações cristãs não são congregações darwinistas. Não podem assentar numa base de sobrevivência dos melhores, dos mais fortes, dos que têm mais força. O monoteísmo, seja ele qual for, vem precisamente em sentido contrário. Não é um biologismo, mas uma antropologia teológica que fortalece os deserdados da vida terrena, os quais existem porque o mundo humano ainda não atingiu a graça do não-egoísmo. O novo cristianismo jamais poderá ser uma congregação de um montinho de gente muito boazinha, muito santinha. Os fracos devem ser os mais bem acolhidos, porque no Cristianismo não há fracos nem fortes, nem bons nem maus, nem desejados nem indesejados. Nele se congrega gente de todos os quadrantes.

            O Cristianismo também não é uma congregação de eleitos cheios de privilégios sociais e políticos, que procuram as honrarias e a sua mesma idolatria. Se quer ser eleito, então assuma cada um o seu papel servil, a começar por estar disponível para ouvir o outro, ser-lhe útil e assim servir a Deus. E a propósito de eleitos, fiquemos com esta reflexão de J. SACKS, leitura indispnsável para qualquer cristão:

           

Um povo eleito é o oposto de uma raça superior, primeiro, porque não se trata de uma raça, mas sim de uma Aliança; segundo, porque existe para servir Deus, não para se dominarem uns aos outros. Uma raça superior valoriza o poder; um povo eleito preocupa-se com os fracos. Uma raça superior acredita que tem direitos; um povo eleito sabe apenas que tem responsabilidades. As virtudes-chave de uma raça superior são o orgulho, a honra e a fama. A virtude-chave de um povo eleito é a humildade. Uma raça superior produz construções monumentais, inscrições triunfais e uma literatura de autocongratulação. Israel, a um grau único na história, produziu uma literatura de autocrítica quase ininterrupta.” (1)

 Isto não se escreve todos os dias.

Margarida Azevedo

 

Referências:

(1)      SACKS,J., Não em Nome de Deus, Como explicar a Violência Religiosa, Desassossego, Porto Salvo, 2021,11, A Universalidade da Justiça, a Particularidade do Amor, p.193.

Foto de António Bento - Pôr do Sol nos Salgados 2023

sábado, agosto 05, 2023

RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO IV



A ideia de uma lavagem a fundo das mentes cristãs tem sido uma constante ao longo da história, logo aquando da sua implementação nas primeiras comunidades. Nada foi pacífico. Paulo foi quem melhor o percebeu: não se define o cristão judeu pela circuncisão, alimentação cosher ou pela Lei. Amar a Deus acima de todas as coisas é tomar o infinito como fundamento da nossa vivência, uma presença constante. É deixar a terra e partir ao desconhecido (Gn 12:1), é perceber que o mundo é plural, é ter uma perspectiva evolucionista da vida, é expandir-se na procura do verdadeiro sentido do religioso como a grande aventura antropológica/espiritual; é ir ao encontro de outra terra, é aproximar o distante, é construir teologicamente o Caminho, como nos sugere o evangelho de Marcos.

Estamos longe da parábola erroneamente designada como do Filho Pródigo (é, sim, do Pai Benevolente), estamos longe do regresso a casa porque o mundo é falso e mau, nem é esse o sentido da parábola. O pai benevolente ensina que a porta nunca se fecha. O texto da Bíblia Hebraica, e concretamente o Génesis, e da Bíblia Cristã, é intencional. A sua leitura conduz o leitor para contextos, sentidos, ilacções, conclusões absolutamente provocatórias. Sair da casa do pai é ir ao encontro do mundo, desbravando-se a si mesmo, descobrir-se. Ir ao desconhecido é expor-se a um mimetismo do outro, que se deseja sem disso se ter consciência. É a experiência da vida que nos faz perceber a urgência do encontro

A diferença entre Génesis 12:1 e a parábola do pai benevolente reside no desfecho. No primeiro, não se volta ao Pai miserável nem como refúgio e porque a lição do mundo foi castradora e desastrosa. Viver no mundo não é uma má experiência. O filho, na parábola, não tem força porque exigiu precocemente uma herança que ainda não estava preparado para receber; em Génesis, o filho parte porque foi o Pai quem lhe ordenou que o fizesse. Não se trata de um acto trágico, mas da faculdade da natural propensão para a descoberta da vida, mantendo a força para se sobrepor ao desaire. É a diferença entre o alicerce e a falta dele.

Os primeiros cristãos, dirigidos por Paulo, pretendiam uma profunda remodelação no interior do Judaísmo. Paulo e os apóstolos não se converteram a uma nova religião, mas a Jesus, o Cristo, dentro do Judaísmo. A pregação de Jesus objetivava-o: enraizado nas tradições e dependente das mesmas, embrenhado na ritualística tecnicista, ao invés de no sentido da mesma, na riqueza dslumbrante das vestes. Em Mateus, considerado o evangelho mais judaico de todos os canónicos, é posta na boca de Jesus esta afirmação preremptória: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.” (Mt 15: 24)

Há quem leia esta afirmação como uma tirada de mau gosto, xenófoba e discriminatória. Penso que é não perceber o texto no seu contexto, não apenas sociológico-antropológico, mas teológico, principalmente. Jesus, embora não ordenado, teve a coragem de se afirmar como um crítico dos costumes religiosos judaicos do seu tempo.

Esta moldura socio-antropológica enquadra-se entre a morte de João Batista, no capítulo 14, por um lado, e o enfrentar os fariseus e saduceus, no capítulo 16, por outro, o qual contém a confissão de Pedro (“Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.” Mt 16:16). Entre os interesses que conduziram à decapitação de Batista e a salvaguarda das práticas dos fariseus e saduceus, Jesus responde com uma nova dinâmica: há um fermento diferente do do pão, mas doutrinário de que urge precaver-se (vv.1-12); há revelações que não são pertença da carne (v. 17). Jesus propõe uma nova antropologia de repercussões sociológicas profundas, verdadeiramente revolucionárias, uma fé sólida e firme que passa pela destrinça entre o que é dos homens e o que é de Deus. Sendo o Judaísmo uma religião de amor, é nessa base que toda a Lei e profetas devem ser entendidos, e é aí que o Cristianismo tem as suas raízes.

Quanto ao contexto teológico, o versículo supra-mencionado (16) inscreve-se em momentos de grande reflexão e milagres, sedimenta Pedro como pedra, culminando o capítulo 16 com o primeiro anúncio da Paixão e do significado da cruz pessoal, intransponível e particular que pertence a cada um de nós. Só na basa da aceitação da nossa condição de sofredores podemos combater o próprio sofrimento. No amor, é a cruz que sai derrotada.

Com Jesus, o sofrimento não é uma virtude, nem um castigo implacável. É uma condição da natureza humana cuja libertação é possível mediante uma fé inabalável. O ambiente em que se enquadra esta passagem é o exemplo dessa libertação mediante a fé.

Estamos longe do mito. Não se afigura uma luta entre deuses e humanos, castigo pelos mesmos das nossas más acções, guerras de tronos e de heróis, lutas pelo poder, superstição, mas tão simplesmente a esperança de que apenas a fé totalmente livre e emancipadora é capaz de renovar a condição humana. Não há deuses, há Deus, não há forças, há uma Força. Não há catástrofes, todas as dores são passageiras; há modificação, mudança, regeneração. A nossa existência não é uma tragédia. A dimensão trágica da Cruz não está em oposição à ordem, não é uma luta entre particular e geral. O trágico teológico da Cruz não é o trágico ético-filosófico de Antígona nem do helenismo em geral. A superação da Cruz não se faz por meios dissuasores da retórica, da argumentação afiada da eloquência da linguagem. Só assim faz sentido que as águas se separem aquando da fuga do Egipto, a liberdade as atravesse poderosa, e um povo se sedimente no outro lado. E Jesus não quer que ele se perca. Andamos todos à procura do outro lado.

Perceber a renovação do Cristianismo é perceber o fenómeno teológico da Passagem. Só nessa moldura faz sentido a infinidade, a saber, como o pó da terra (Gn.13:16); as areias do mar, as estrelas do céu, (22:17); a aproximação da vegonha da Cruz 26:4) os pães e os peixes que se multiplicaram (Mt 14:13-21, 15:32-39; Mc 6:30-44, 8:1-9), e todos se saciarem em perfeita comunhão, e porque ao infinito das almas humanas jamais faltará o alimento. A Passagem é caminho para a infinidade de que nenhum ser humano é capaz de construir sózinho. Unidos em Deus, somos uma força sem fim.

  Vivemos uma Páscoa permanente donde o Cristianismo não pode temer a liberdade. Ser cristão é estar permanentemente a viajar porque o Cristianismo é uma viagem, uma doutrina sempre nova, universal, pacificadora e renovadora do coração humano. Porém, uma doutrina não é sinónimo de uma interpretação, nem de uma hierarquia das mesmas. Todas são parceiras, todas contribuem para o mesmo todo. Ora o Cristianismo não pode perder o barco deste desafio. Deve desfrutar ao máximo da sua natural pluralidade, sob pena de se perder e não ser cristrianismo, mas uma doutrina qualquer ao lado das muitas que o mundo já conhece. Cristianismo é casa, lugar de chegada, de aceitação, de reconciliação; é braços abertos, é festa, é bem sem fim. 

(cont.)

Margarida Azevedo


Bíblia consultada: trad. de ALMEIDA, J. F.