2024 A FORÇA QUE SE RENOVA
Entre a morte e o luto, as lágrimas que se arrastam na
saudade do que vai ficando para trás, do que se ama e se é obrigado a largar, do
arrasto de vidas que vão ficando adiadas, dos escombros do que há bem pouco
haviam sido um lar, do corte acutilante
com tudo o que se chama esperança, os que mandam criaram o inferno neste
planeta, onde a Beleza e a Luz do Criador não faltam.
A verdade tornou-se problemática. É melhor calá-la. O
preço da verdade já não é apenas o da própria vida, mas também a daqueles que
nos rodeiam. Vai tudo a eito. Constrói-se o despotismo como uma virtude, a luta
insaciante e avara por ser superior; constrói-se a massa informe dos cada vez
mais infortunados, desesperados e à deriva; constrói-se os vencedores
stressados, porque têm que manter os seus pódios, infelizes, mas felizes por
viverem no luxo enganador, tão efémero, tão de cristal, com amigos de
circunstância, casados com as lutas da avidez, isolados e aperfilhados pela
mentira e pela ilusão ofuscante. Vai tudo na onda.
Para outros, já não é o medo da morte, porque o desejo de
não-vida também existe. Não por ímpetos suicidas, mas pela força da tortura. Também
já não é a certeza, mais ou menos, da continuidade da vida no além. É a
temeridade do infinito astuto e retórico cá neste mundo, de língua afiada com
resposta pronta, que prolongue nesta vida o ser nada, o ter nada, o nada valer;
o anular do sentido ao sentido da vida, a dessacralização do sagrado.
Vivemos tempos em que tudo tem mais valor que a própria
vida. Tornámo-nos nada, zero. Consome-se o que querem que se consuma, vemos o
filme que foi previamente selecionado, ouvem-se notícias passadas pelo crivo da
censura, com outros nomes, é claro. Estamos nos tempos em que se chama verde ao
amarelo, o alto é baixo, a fealdade bela, pior, cria-se a defesa férrea de que
é realmente assim.
Tem sido assim ano após ano. O 2023 foi a cereja no topo
do bolo: duas guerras devastadoras. Caiu o disfarce, o verniz de uma paz podre.
O ódio pôs as garras de fora. As religiões, nos seus belos discursos, e
teologias complexas, não conseguem impor-se aos crentes. Continua a haver um
discurso do religioso sem uma componente prática, sem se mostrar na sua
alteridade face ao rumo caótico da vida social. Os agressores não são ateus, ou
pelo menos não se dizem como tal. Todos frequentam as suas religiões ou
igrejas. Todos se afirmam como tementes de Deus, como se Deus fosse uma
temeridade.
Assim, os discursos continuam a ser belos, cheios de
verdade. Claro que é verdade que a inteligência artificial, erroneamente assim
chamada, é um perigo; é verdade que as guerras são cada vez mais devastadoras; é
verdade que vivem-se tempos sem tempo, em que a azáfama tomou conta das vidas
esvaziando-as, mas não é menos verdade que o discurso religioso continua a não
penetrar nos corações, a não conseguir modificar a natureza humana. Precisamos
de ser outros. Termos outros valores, outra fé, outra laicidade. Precisamos de
chamar as coisas pelos seus nomes. Precisamos de acreditar na nossa finitude,
viver com os nossos limites, aceitar os nossos defeitos para melhor os
combater; precisamos de compreender que só o amor incondicional pode vencer
tudo isso.
Mas,
muito pior que a inteligência artificial, são as mentes que a criaram, pois a
inteligência artificial não tem autonomia sem uma mente que a invista de
supostos poderes, e que se chama mente humana. É o humano que, porque escravo
de si mesmo, se rebaixa à sua mesma fantasia devastadora com ares de
criatividade, de super-homem. Continuamos na construção de bezerros de oiro,
aos quais, fascinados pela sua obra, rendem graças, prostram-se como diante de
um deus É a genialidade no seu melhor, no seu expoente mais baixo e trevoso, totalmente
redutora.
Com tudo isto, atrevo-me a desejar um ano com mais oração,
um casamento feliz entre a fé e as boas práticas sociais. A presença de um amor
só: o único, porque na verdade só há um. Desejo uma unidade discursiva, uma
mesma personalidade, a da sua religião ou igreja, e a da sua vida familiar,
profissional e social; uma integridade, o não-medo. Não tenha medo de ter fé,
reciprocamente, não tenha medo de viver. Esse viver que é mostrar-se,
participar e partilhar, ser cúmplice no bem e estar presente na mudança, no
crescimento, no amor ao próximo.
Não
tenha medo mesmo. Caminhar não se faz sem perigos. Todos juntos somos mais
fortes a superá-los. Vamos contar uns com os outros. Tenho estado a falar de
igrejas e religiões. Mas isso não é uma verdade definitiva, mas um episódio
transitório da nossa fé. Diga-se em abono da verdade, verdadinha, há só uma
organização religiosa, a da nossa mente, a da nossa sensibilidade, na
multiplicidade de cores que forma um jardim. Os nossos discursos podem ser necessariamente
diferentes, porém abordam uma mesma realidade, um mesmo Ser, pretendem alcançar
o mesmo fim, a felicidade, e esta só com o outro e Deus.
A
nossa ignorância é que criou diferenças, patamares, e tudo o que nos possa
identificar como mais e menos, mais verdade e menos verdade, mais fé e menos
fé. Nada disso. Temos caminhos, apenas caminhos, que, no conjunto, rumam para
uma mesma cidade, um mesmo recinto onde assistimos ao mesmo concerto, com um
mesmo fito, o da alegria de estarmos todos juntos e sermos felizes.
Os
nossos caminhos têm que se cruzar. E eles cruzam-se, efectivamente, se
deixarmos. O amor é a maior das pontes, é onde nos sentimos iguais nas nossas
diferenças. A diferença é uma virtude.
Precisamos
urgentemente de um 2024 lutador: na oração persistente, na modificação
interior, no dizer não às nossas tolices, aos nossos olhares tão distorcidos e
enganadores.
Precisamos
de ter força para ir ao arrepio. Se tudo nos parece desabar, então sejamos
construtores do sólido, do estável; se há guerra, sejamos crentes na paz, se
tantas coisas boas nos parecem impossíveis, pois é o impossível que nós
queremos, é por ele que lutamos. Estamos todos aí, vamos à luta por um mundo
melhor.
O
cristão deve ter sempre presente: “Pai,
perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. Peçamos ao Pai distância do não
saber o que se faz, de estar totalmente inconsciente face ao bem supremo que
temos diante dos nossos olhos; que não sejamos nós a fazer parte desses, que
nos aumente a consciência das coisas belas, das coisas que estão por fazer e
que, na graça divina, tenhamos a felicidade de fazer parte daqueles que são os
construtores de uma vida nova, de uma existência feliz.
Não
deixemos a vida em suspenso, adiada. Construamos a capacidade de perdoar. O
perdão é uma proximidade, a única. Sem perdão caímos na esterilidade. Ele é o
sal da fé.
Tenha
um 2024 cheio de tudo, transbordante do tudo que Deus lhe tem para lhe dar. Se
a minha vontade conta, eu quero que seja feliz. Assim, lutemos juntos pela
nossa santificação, oremos ao Pai em uníssono pela modificação do ser humano.
Vamos ter força. Juntos venceremos, não tenhamos dúvida nenhuma. O mundo pode
tornar-se num paraíso. Acredito que o será um dia. Isto é um sonho? E quem foi
que retirou à fé a sua necessária capacidade de sonhar?
Muita
paz, desejo-lhe muita paz.
Margarida
Azevedo