segunda-feira, março 30, 2009

MORTE É FELICIDADE XXXV


A MORTE NOS CONTOS DE FADAS

(Continuação)


a) a criança não vai ao túmulo da mãe.

Um aspecto curioso dos contos reside no facto de, apesar de abordarem a morte por meio de exemplos tão diversificados, não contêm uma referência ao cemitério nem à tumba. Através dos contos, a criança não aprende se é ou não importante visitar o túmulo da mãe. Por exemplo, em o Irmão e Irmã as crianças têm um desgosto inconsolável por a mãe ter morrido, mas não há qualquer referência ao túmulo.
Entre as variadíssimas leituras que tal facto suscita, parece-nos que a principal reside no facto de que a morte contém razões que elas desconhecem, muito para além da luta entre o bem e o mal. A morte também acontece com os bons, e nomeadamente com aquela que põe os meninos no mundo, e isso tem uma razão para lá do seu entendimento e, consequentemente, de toda a humanidade.
Repare-se que a criança identifica-se de tal modo com a personagem principal, o menino ou a menina que luta por vencer, que se esquece do papel da mãe que morreu. Porém, há uma forma sublime de a lembrar: a madrasta má.
É através da madrasta, que a criança nunca confundiria com a mãe, a qual extravasa de sentimentos comparáveis com os da bruxa, identificando-se entre si, como em o Irmão e Irmã, ou a feiticeira má, em Branca-de-Neve, que a criança aprende que cada ser, cada coisa recebe a maior ou menor felicidade na directa proporção do seu merecimento.
Contrariamente ao que o mundo tenta impor, a saber, que os filhos de mãe e pai falecidos trazem consigo distúrbios ao nível da afectividade, que manifestam processos de clivagem na sua relação social com os outros, os contos apresentam-nos os órfãos (pois quase todas as personagens são órfãos de pai ou de mãe) como bons lutadores, e cujo objectivo é escapar das garras da madrasta ou da bruxa má.
É pelo trabalho árduo que Gata Borralheira consegue, como prémio, casar com o príncipe, tal como Branca-de-Neve e Bela Adormecida. Nas duas últimas, porém, a estrutura é diferente. Ambas precisam de dormir um longo sono, Branca-de-Neve durante muito tempo, Bela Adormecida durante cem anos, a primeira órfã de mãe, a segunda não, a fim de crescerem, tão simplesmente crescerem.
Isto significa que os escolhos de Branca-de-Neve não foram suficientemente persuasivos, e Bela Adormecida nem tão pouco tinha consciência do mundo fora do palácio, onde sempre viveu superprotegida. Esta última ainda não tinha sido submetida aos escolhos, com fim a desenvolver a perícia e a inteligência que só estes conseguem desencadear. Picar-se no fuso e adormecer, como imperativo da praga da fada má, e assim permanecer até que desperte para a vida nupcial, sobrepõe-se de forma peremptória aos pais, mesmo que estes sejam reis.
É extremamente curiosa esta trilogia, vida, sono, morte. A ordem lógica que subjaz a estes elementos é que se torna muito complexa. Para já, apenas podemos dizer que nos contos estes elementos desempenham um único papel: o triunfo incondicional do bem.
Passemos ainda o nosso olhar sob a estreita semelhança entre a situação de A Bela Adormecida e a das duas meias-irmãs de A Gata Borralheira. Estas personagens têm em comum a superprotecção a que estão votadas, por parte dos pais no primeiro exemplo, pela mãe no segundo. Enquanto a primeira parece permanecer na ingenuidade e inexperiência, as segundas cultivam a maldade e o ócio.
Este facto leva a que a criança aprenda que não é por ter a mãe junto de si que se tornaria mais conhecedora da vida. Se a mãe, em virtude da sua posição social, entregar a educação da sua filha a terceiros, ou for uma pessoa perversa, o papel da mãe perde-se. Por isso, a criança aceita que a mãe está morta e não vai voltar, ela consegue-o melhor do que pensamos. Atinge a maturidade e a felicidade a partir do momento em que a ausência definitiva da mãe não é obstáculo à aquisição de objectivos, nem barreira para que eles sejam atingidos.
Por isso, nos contos não há meninos coitadinhos sem paizinho nem mãezinha. Os contos apresentam-nos órfãos que, mediante o seu esforço e mercê de uma ajuda fantástica (através da fada boa ou fada madrinha), todos os escolhos são transpostos, ultrapassados.
Podemos dizer que há uma mãe na estrutura do inconsciente, uma sombra que permanecerá para sempre. A visita ao túmulo perde, assim, toda a sua razão de ser. O túmulo não ensina, não transporta ao mundo da mãe, o túmulo não ajuda no combate pela vida.
Nos contos, poderá haver alguma excepção quanto a esta problemática, no entanto não passará de mera excepção à regra: o falecido, bom ou mau, desaparece para dar lugar a que o bem possa prevalecer para sempre.
Bettelheim afirma que viver em pleno significa encontrar um sentido para a vida, e isso não se adquire de um momento para o outro, mas com tempo, o qual mais não significa que amadurecimento (cfr. 1998, p. 9). Os contos visam educar, formando, eles ajudam a arrumar a casa interior (ibid., p.12). Conseguem o desenvolvimento da racionalidade através da fantasia, dito de outro modo, a fantasia comanda a razão, cria uma realidade paralela na qual alimentam uma esperança que jamais se perde: um dia deixarei de sofrer.
Nos contos não há obsessões, possessões. Há feitiços quebráveis pelo poder do amor, pelo esforço, pela persistência. Ensinam a superar angústias, desenvolvem uma relação mágica com o mal, e muito especificamente com a morte.
O desarranjo caótico do mal torna-se um cosmo perfeitíssimo na arrumação da casa do inconsciente da criança. O conto coloca o bem e o mal frente um ao outro, em luta desesperada e feroz, donde o bem sai vencedor após um protagonismo sem limites. O mal morre, isto é, a perfídia.

3. Nos contos há tortura e pena de morte

É comum, nos tempos que correm, ouvirmos dizer que os assassinos deviam ser condenados à morte. Há muito quem defenda que o facto de a vida social ter chegado a um tal ponto de degradação se deve ao facto de já não haver pena de morte.
Nos contos, a tortura e a pena de morte têm, dentro do contexto da morte, várias leituras: a nossa incapacidade para dialogar sobre as coisas mais desagradáveis (nos contos ninguém pergunta ao mau porque é mau, apenas há um esforço em combatê-lo); a nossa acomodação, o que significa aceitar sem reservas o que está feito, como se não fosse possível alterá-lo (ninguém quer saber do mau, apenas se pretende anulá-lo); a alucinação natural de que parece sermos portadores e que nos faz pensar que somos bons. Tal conduz a que nos sintamos senhores com poderes para por e dispor do certo e do errado; a temeridade do mal e da sua força, por outras palavras a fraqueza do bom (o bom não convence o mau pela sua conduta, mas pela sua capacidade em esmagá-lo, o que é uma falsa noção de força); o medo de estar desprevenido e deixar-se influenciar pelo mau, caindo em seus tentáculos; a falta de confiança em si, o eco do mal em muitos, a sua propagação, etc.
Ora, nem todos os contos ensinam a perdoar. Porquê? O perdão não faz sentido sem que haja do outro lado um sentimento profundo de arrependimento e um pedido de desculpas. Como perdoar sem esses factores? O perdão passaria a ser um gesto sem sentido/ingénuo. O perdão implica uma paragem do acto que se perdoa. Quando ele permanece, só pode haver duas coisas: ou se aceita sem reclamação, (pedindo a deus que ilumine o faltoso, como ensinam as religiões), ou se luta contra ele. Nos contos, a personagem principal geralmente não luta contra o mal, apenas tenta não ser como ele, escapar-lhe. Só que isso não basta. O mal tem força, faz-se sentir o que, por sua vez, vai desenvolver a capacidade de defesa daquele sobre o qual ele recai.
E é isso que ensinam os contos de fadas: defender-se do mal, por outras palavras, da acção maléfica das bruxas e das fadas más. É isso que conduz a personagem principal à felicidade e não morrer. É o exemplo de Branca-de-Neve, do Capuchinho Vermelho, e também
Mas em Hansel e Gretel , a situação é diferente. As crianças lutam contra a bruxa porque esta as prende na sua casa feita de pão, com telhado de bolachas de chocolate e janelas de açúcar cristalizado, feita de propósito para atrair as crianças e comê-las. Hansel e Gretel conseguem enganar a bruxa que, apesar de tantos bruxedos saber fazer, não é capaz de sobrepô-los à esperteza das crianças. Por isso, elas acabam por fugir vitoriosas. Porém, antes de o fazerem, matam a bruxa, que se deixa enganar da forma mais ingénua.
“_ Mete-te dentro do forno para veres se já está suficientemente quente para cozer o pão.
A velha tencionava fechar a menina dentro do forno, e quando estivesse bem assada, comi-a também. Mas ela adivinhou o que lhe ia no pensamento e exclamou:
_ Ah! Não sei fazer isso! Como é que se entra lá para dentro?
_És mesmo estúpida! – respondeu a velha. _ A boca do forno é tão grande que até eu podia entrar! Ora vê!
E, ao dizer isto, a velha meteu a cabeça dentro do forno.
Foi então que a menina lhe deu um valente encontrão que a enfiou toda lá para dentro, fechando rapidamente a porta.
Deixando a velha aos urros dentro do forno, Gretel correu a libertar o irmão gritando:
_ Hansel, estamos salvos, a bruxa morreu!” (GRIMM, 1994, pp. 39-40, 1.º vol.) Aprendemos, assim, que o bem não sabe modificar o mal, que o mal não se deixa atrair pelo bem. Este acaba por vencer mas só depois de trabalho intenso. A luta permanente entre eles, da qual o bem sai vencedor porque consegue enganar e matar o mal, justifica a expressão popular de que o mal é estúpido. Este tem uma vida curta, morrendo vítima dos seus objectivos e dos seus actos. Essa morte é um reencontro com o mundo do semelhante. Há um reenvio para a Terra do Mal e um consequente abandono da Terra dos Justos. Como se ouve dizer “vira-se o feitiço contra o feiticeiro.” É precisamente o que acontece em “A Guardadora de Gansos”:
“Quando todos, depois de comer e de beber, ficaram satisfeitos, o velho rei propôs à aia uma adivinha: que castigo mereceria quem tivesse enganado o seu senhor desta maneira e daquela e, contando-lhe tudo o que se tinha passado, terminou:
_ Que castigo merece?
_ Tal pessoa – respondeu a aia – merece que a metam nua num tonel eriçado de facas afiadas. Devem prendê-lo a dois cavalos brancos, que o puxem por estradas e caminhos até que ela morra.
_ É de ti que eu falava! Foste tu quem me enganou – afirmou o velho rei. _ E acabas d editar o teu próprio castigo.
Depois de executada a pena, o jovem rei acolheu a sua verdadeira esposa e reinaram, juntos e felizes, por muitos e muitos anos.” (GRIMM, 1994, pp. 63-64, 2.º vol.)
Só por curiosidade, tomemos em atenção o exemplo do Novo Testamento, bastante idêntico a esta passagem do conto, em que o anjo aparece a Maria e José dizendo-lhes que já podem regressar, pois que são mortos os que queriam matar o Menino. Quem são os mortos? Os que efectivamente mataram os inocentes, no dizer do texto bíblico. É a expressão moralista de que tudo o que fizermos aos outros sobre nós recairá, ou também de que quem com a espada mata pela espada perecerá. Tal como nos contos, a questão de perdoar aos que queriam matar o Menino não se põe. O Menino ainda não era Homem, ainda não tinha cumprido com a sua missão, tal como a personagem dos contos. Quando atingiu a maioridade e cumpriu com os Seus deveres, aí sim, foi Ele a morrer, e não os outros, mas segundo os moldes de uma morte libertadora, a morte ruma à felicidade para sempre. A morte é caminho para o paraíso.
Os contos, não fugindo à regra, traçam os modelos de morte a que nos candidatamos ao longo da vida, segundo regras comportamentais muito precisas. Quando assim não é, delimitam padrões de valorativos de uma objectividade arrepiante sem que contemple qualquer excepção. É o caso de “Os três cabelos de ouro do diabo” em que o mau sofre um castigo terrível, prolongado por tempo infinito.
“E eu também poderei atravessar esse rio? _ perguntou o rei.
_ Claro, Magestade! _ respondeu o jovem. _ No rio há um barqueiro. Ele vos atravessará para o outro lado e, na outra margem, podereis encher os vossos sacos.
O avarento rei dirigiu-se para lá a toda a pressa e, quando chegou ao rio, fez sinal ao barqueiro para que o atravessasse. O barqueiro aproximou-se, deixou-o entrar mas, mal chegaram ao outro lado, meteu-lhe o remo nas mãos e saltou fora do barco.
Desde então o rei tem de fazer de barqueiro como castigo pela sua maldade.
_ E ainda lá estará? _ perguntar-me-ão vocês.
Sim, ainda lá está. Ninguém lhe pegou no remo!...” (GRIMM, 1992, p. 26).
Este castigo, resultado de desmesurada ambição, é uma lição terrível da qual o jovem saiu vencedor. O rei não sabia que este, protegido pela boa estrela, tinha dado ao barqueiro o conselho do diabo, que por acaso até nem era má pessoa. O pobre homem cumpria uma pena havia muitos anos de andar de cá para lá e de lá para cá entre as duas margens do rio. Ele queria saber porque é que andava neste trabalho. A resposta é fácil: por ter sido ambicioso.
A história ensina-o através do rei, que invejava o jovem desejando possuir todo o seu ouro, conquistado a troco de pesados esforços por exigência do próprio rei. Uma vez que foi injusto para com o rapaz, pagou bem caro a sua injustiça e a sua ambição.
Mas se ser-se injusto e ambicioso é um vício grandioso, não o é menos a mentira e a desobediência, como se depreende de “Os sapatos rotos no baile”.
“ _ Como é que as minhas filhas rompem os sapatos de noite? _ perguntou o rei.
_ Bailando com doze príncipes, num castelo debaixo do chão _ respondeu o soldado.
(...) Vendo que o segredo tinha sido descoberto e que mentir não servia de nada, foram obrigadas a confessar. Então o rei perguntou ao soldado qual delas queria para mulher.
_ Já não sou novo _ respondeu o soldado. _ Dai-me a mais velha.
As bodas foram celebradas nesse mesmo dia e o reino prometido ao soldado, por morte do rei. Quanto aos príncipes, continuaram encantados por tantos dias quantas as noites que tinham dançado com as doze princesas.” (ibid., pp. 73-74).
O encantamento, como se vê das duas histórias, é uma morte-vida, isto é, o rei da primeira história e os príncipes da segunda não estão mortos nem vivos. Apenas que, para eles, a felicidade está bem distante. Que representam ou quem são eles?
Do ponto de vista social, os que cumprem prisão perpétua nas masmorras das prisões por actos completamente fora do aceitável; do ponto de vista religioso, a humanidade inteira por não cumprir os preceitos de Deus; do ponto de vista espírita, os Espíritos trevosos na escalada do progresso.
Mas no exemplo que se segue, podemos inquirir sobre qual o maior dos males: Ser pobre, não ter nada de seu, ou ser rainha, ter tudo o que se quer, mas ser terrivelmente invejoso?
Aprendemos com a madrasta má de Branca-de-Neve que a inveja é um feitiço terrífico, que cega, criando um inferno para quem a sente, condenando-o e matando-o.
“A malvada ficou enraivecida. Mal chegou à festa, reconheceu a Branca de Neve e, com medo, ficou imóvel como uma estátua. Sobre as brasas aquecia já um par de sapatos de ferro que lhe prenderam aos pés. Como castigo por todas as suas maldades, teve de calçá-los e de dançar até cair morta.” (GRIMM, 1994, Branca de Neve e os sete anões, p. 92).
Numa outra versão de Grimm temos um fim diferente: “Naturalmente que a madrasta não sabia que a jovem rainha, de que o espelho falava, era Branca-de-Neve. Teve logo vontade de não ir ao casamento, pois a simples ideia de que outra pudesse ser superior em beleza era-lhe insuportável.. Todavia, ardia em curiosidade de ver a nova rainha, só para lhe fazer mal, se pudesse.
Mas quando, ao subir a escadaria de honra, reconheceu Branca-de-Neve, morreu de raiva no mesmo instante.” (s/d, p. 26).
De uma forma ou de outra, é isto que a criança aprende: a inveja expõe o invejoso a grandes tormentos, a inveja é o contrário de felicidade, a inveja mata da forma mais dolorosa.
Quanto ao perdão, insere-se em outro contexto.

(Continua)

Barbara Diller

quarta-feira, março 25, 2009

MORTE É FELICIDADE XXXIV


A MORTE NOS CONTOS DE FADAS (Continuação)

a) desobediência

Se com Adão e Eva temos a experiência da morte associada ao desejo de vida, isto é, experiência mais sofrimento mais conhecimento (condenação a trabalho árduo e parir em dor), nos contos temos morte como impulso e protecção para vida. Em ambos, ela é fonte e origem de todo o percurso afectivo, maturidade e consequente edificação do estado adulto.
Tal como em Adão e Eva, nos contos a morte fica progressivamente para trás à medida que o sujeito aprende a viver, vencendo os escolhos, e aproxima-se dela à medida que se desenvolve. É a regra do pião que com capa não anda e sem ela não pode andar. Isto é, o desenvolvimento apressa ou aproxima a morte. No Hinduísmo, Budismo e Espiritismo, e entre as restantes correntes reencarnacionistas, quando o homem atingir o clímax do seu desenvolvimento moral (quando tiver bebido da Árvore da Ciência e da Moral em paralelo), já não reencarna.
A Desobediência é um ponto de partida para a conquista desses saberes e respectiva imortalidade. Por isso, a morte não é um processo de coacção, quer no mito de Adão e Eva quer nos contos. Não há temores, não há espaço para regressão, pois todo o processo, uma vez inaugurado, não poderá parar.
A morte não assusta porque advém da desobediência, acto que acontece porque não há medo, não há constrangimento.
Em “Branca-de-Neve”, a menina habituou-se aos trabalhos domésticos em casa dos anões aprendendo a desempenhar tarefas que, certamente, no palácio não aprenderia. No entanto, por desobedecer aos anões, caiu em artimanhas provocadas pela madrasta, todas elas culminando em grande sofrimento. No último disfarce da madrasta, ao comer a maçã cai desfalecida no chão, ficando a dormir “por muito tempo o sono da morte” (GRIMM, o.c., 22).
No conto “Barba Azul” a desobediência segue um caminho ligeiramente diferente. Barba Azul diz à mulher que precisa de sair por uns dias, em negócios. Como tal, dá-lhe permissão de fazer o que quiser na sua ausência, para o que lhe dá um molho de chaves, juntamente com a chave mestra, a fim de que a esposa possa servir-se de todas as suas coisas. No entanto, diz-lhe que não pode entrar no quartinho pequenino ao fundo do corredor.
Quando o marido regressa, observa que a sua vontade não foi respeitada e que a esposa havia entrado no referido quarto, descobrindo os seus segredos macabros. Assim, quando esta está quase a morrer às mãos do marido cruel que, “(...) segurando-a pelos cabelos com uma mão e, com a outra, levantando a faca, fez menção de lhe cortar a cabeça (...)”(Perrault, 1994, p. 49), eis que dois cavaleiros, seus irmãos, entram repentinamente após terem batido energicamente à porta. Desembainharam a espada e lançaram-se contra Barba Azul (cfr., ibidem).
Como iremos ver no item “Porque contamos contos?”, os irmãos da esposa de Barba Azul desempenham um papel idêntico ao de Sheherazade: anulam o monstro do mal, ainda que por caminhos diametralmente opostos.
Assim, a desobediência não acontece por indisciplina, mas movida pela curiosidade sobre uma proibição cujo sentido não faz sentido, não tem explicação. A tortura e/ou a morte é preferível ao inexplicado.


1. A mãe morta

Se dissermos a uma criança de três ou quatro anos que a mãe morreu, ela não entende. É isto que habitualmente se diz, ou pelo menos é assim que nós o pensamos. A noção de morte (coisa que os adultos temem, mas não representam) é qualquer coisa que só mais tarde a criança vai representar.
No entanto, os contos referem-na da forma mais cruel: a morte da mãe. Quer em Branca-de-Neve quer em A Cinderela, ambas não chegam a conhecer a mãe, vivem com madrastas, mulheres cruéis, sem escrúpulos, vis, expondo as meninas a destinos que o não são menos.
Porém, este aspecto é de capital importância para a personalidade da criança. Repare-se: o senso comum ensina que a criança, não tendo conhecido mais ninguém senão a madrasta, é natural que se dedique a ela, em jeito de agradecimento por tê-la criado, feito dela um homem ou uma mulher, independentemente dos maus tratos que lhe imputou. Ora, nos contos de fadas isso não acontece. Aí, a criança não agradece à madrasta o facto de tê-la criado. Ela é má e tem que pagar por isso. Não há concessões, não há perdões, não há pena, não há espaço para arrependimentos. Aliás, nos contos a madrasta má, que chega a ser uma feiticeira, como no conto cabo verdiano A Feiticeira e a Pombinha, a madrasta jamais se arrepende da sua rispidez e maus tratos para com a enteada. Neste conto africano, a mãe da menina morre e esta fica entregue à ama, que é uma feiticeira. Mais tarde, após conquistar o coração da criança, fazendo-se passar por muito boazinha, casa com o pai, a pedido desta, no intuito de ficar com a sua fortuna. Para melhor o conseguir transforma a criança em pomba, espetando-lhe um alfinete na cabeça enquanto a acariciava ao colo.
Quando o pai volta, à tarde, encontra a madrasta lavada em lágrimas, pois a sua menina havia saído de casa pela manhã e ainda não voltara, segundo o falso lamento da feiticeira. O feitiço só foi quebrado quando um servo dedicado, ao afagar a linda pombinha, sente um objecto rijo no pescoço. Ao retirá-lo a pomba transforma-se na menina. Quanto à madrasta, fugiu para outra ilha.
A mãe é sempre insubstituível, quer a criança a tenha conhecido quer não. Mesmo no faz-de-conta a madrasta nunca faz-de-conta que é mãe, no pensamento da criança. Isto significa que a criança é portadora de uma noção de mãe inata e perfeitamente sólida. Isto significa ainda que, do ponto de vista afectivo, a criança não confunde quem é quem. Ela tem a sua casa afectiva perfeitamente arrumada.
Até porque o faz-de-conta não é representável em termos de afecto para com alguém. A criança não diz “Eu vou morar na tua casa porque faz-de-conta que tu és o meu pai”; mas diz “ Vamos brincar. Faz de conta que tu és o meu pai”. A criança pode mudar de família, se esta não lhe agrada como aconteceu há alguns anos nos Estados Unidos, mas não faz-de-conta que uma família é a outra.
Outro aspecto do faz-de-conta tem a ver com os objectos. Isto é um prato, mas na realidade é uma toalha de papel. A criança tem a noção de que uma coisa não é a outra. O prato está ausente, mas a folha de papel está presente. O mais parecido na sua imaginação é o que vai desempenhar o papel do outro, mas nunca será ele.
Esta noção de alteridade não é aplicável à madrasta. A mãe não está presente, mas a madrasta não faz-de-conta que é mãe. Há um vácuo afectivo que não é passível de ser reparado. Isto significa que cada pessoa ocupa um espaço perfeitamente delineado no corpus afectivo da criança.
A morte não corta com essa arrumação, e os contos ensinam-na como viver com isso.
(Continua)

Barbara Diller