MORTE É FELICIDADE XLIX
COMUNICAÇÃO ENTRE MORTOS E VIVOS
(Continuação)
11
Eu era a coisa mais intolerante. Tudo era severamente criticado com base na boa moral. A religião que defendia dava-me, assim o pensava, a autoridade mais que necessária para criticar e apontar tudo o que suponha errado.
E tudo estava errado: a família, a sociedade, as relações humanas no seu todo. As pessoas eram todas desonestas, já ninguém fazia parte dos que eu admirava: intolerantes fanáticos como eu.
Entretanto, integrei-me num grupo espiritualista extremista que defendia princípios idênticos aos meus. Era o grupo da luz dos meus olhos. Ali, vi-me reflectida. Finalmente encontrara a razão para os meus princípios, o espelho das minhas ideias; gente que me parecia anjos, sábios da verdade suprema, os doutos da vida espiritual.
Em verdade, era o grupo dos contras, sem justificação aparente, ou com justificativos intransigentes, próprios de quem pensa que Deus fala através de si. Eram contra o aborto, as uniões de facto, os homossexuais, as mulheres e os homens de vida fácil, mães solteiras, etc.
Quanto às razões da existência de tais grupos, ninguém se interrogava. Limitavam-se a apontar. Quanto a mim, jamais me passou pela cabeça que tudo aquilo não passava de fogo de vista pois que, parte significativa dos elementos que compunham o grupo, tinha histórias bem curiosas para contar. Eu vivia obcecada e pensava que aquela gente era especial.
Um dia, a minha vida deu uma reviravolta muito grande. Engravidei e o meu namorado, rapaz de trinta e dois anos, e que por coincidência pertencia ao grupo, não assumiu a paternidade e rejeitou-me. Os meus pais fizeram o mesmo. De repente vi-me sozinha, rejeitada e humilhada. O grupo expulsou-me, não a ele “porque um homem é sempre um homem” disseram.
Caio vertiginosamente na realidade da vida. Acordo. À minha volta começo a ver as pessoas a lutarem pela sobrevivência. Observo as lutas diárias de quem tem família para sustentar, dos que vivem sós, independentemente da idade. Observo os velhos e os novos, as crianças. Tudo toma novo rosto. E eu ali estava, reprimindo-me, torturando-me por ter cometido uma leviandade: entreguei-me ao homem que amava e que passava ser recíproco. Sem dinheiro, sem casa, sem o pai do meu filho, grávida, só me restava uma alternativa para sobreviver: abortar.
E foi o que fiz. Fiz o que mais condenei, fiz o que combati com ódio, com rancor, com intolerância, com fanatismo. Quantas vezes eu disse que quem faz um aborto deve ser condenado à morte porque é um assassino; deve ser condenado a trabalhos forçados, deve ser castrado. Quem faz um aborto é um excluído de Deus, uma aberração espiritual, um ignorante que só merece o inferno.
Pois bem, ali estava eu. Quando entrei na sala para abortar, apenas um quarto de uma curiosa, não uma pessoa competente, olhei para duas raparigas que choravam amargamente o passo que iam dar. Uma tinha sido espancada pelo próprio pai e apontada pela aldeia como uma mulher de má vida; a outra vivia na rua, era mendiga e tinha sido violada. Eu apenas ia entregar o fruto do amor que dei e não recebi.
Doravante, jurei a mim mesma que nunca mais seria intransigente. Aprendi que cada um tem as suas razões, que se perdem no interior do seu coração. Aprendi que os mesmos problemas são muito diferentes de pessoa para pessoa. Uns são mais fortes para suportar do que outros, uns resolvem mais facilmente as suas vidas do que outros, mas todos são filhos muito queridos do Pai.
Aprendi que o Pai, Ser Amantíssimo, ama a todos os seus filhos, independentemente dos erros que estes cometem.
Sofri muito quando desencarnei por ter sido como fui, mas espantei-me quando vi pessoas que supunha de vida duvidosa, terem a luz que eu ainda não tenho, e para a qual estou aquém de poder vir a ter num futuro próximo.
A propósito, um dos que pertencia ao grupo social dos que eu mais odiava é hoje um grande amigo. São as subtilezas da vida. Grandes lições que ela nos dá.
Proibir não leva a nada. É cada um por si que tem que caminhar, sentindo no seu coração a necessidade de mudança intrínseca. Não nos compete a nós mudar o mundo. Apenas, o que já é muito bom, limitemo-nos a mudar a nós mesmos. Se conseguirmos alterar alguma coisa, pequenina que seja, em nós mesmos, somos muito felizes.
Cuidado com a língua, cuidado com o que afirmam, cuidado com o que defendem, cuidado com o que se identificam ou afinizam.
Cuidado, meus amigos, muito cuidado.
12·
Acudam-me, eles querem-me matar! Não os vêem? Ai! Que Deus me valha. O que é que eu faço? Eles dizem que eu os matei, mas eu não matei ninguém. Eles estão a mentir, não acreditem neles. Por favor, por favor...
Estão a chamar-me “Assassina, assassina!” Mas quando foi que eu os assassinei? Quando?
(Depois da doutrinação)
Eu não compreendo. Já perdi a noção do tempo, já não sei desde quando oiço bebés a chorar, a esvaírem-se em sangue. Outras vezes, agora percebo, parecem crianças já crescidinhas, de braços estendidos para mim, a chorar e a perguntar constantemente “Porque me mataste?”
Mas a maior parte das vezes são adultos com uma vontade de vingança sem par, querendo-me bater e acusando-me de ser uma assassina.
Tudo me serviu de desculpa. A solidão, a pobreza, o abandono do homem com quem vivi. De tudo fiz razão, e todos quantos me cercavam aceitaram as minhas explicações. Não houve ninguém que me dissesse “Estás errada”. Agora só me resta pagar esta dívida para com a Humanidade e para com Deus.
Eu bem que tinha sonhos, eu bem que fui avisada por outras vias. Mas eu não queria crer. Pensava que tudo não passava de perturbação nervosa e carência afectiva. Pensava que um dia iria encontrar outro homem com quem me desse melhor e, então, teria filhos. A vida começaria de novo.
Nem tive outro homem, nem voltei a engravidar. Os dias que vivi na Terra até ao desencarne, como vocês dizem, foram um verdadeiro inferno, e piorou quando cheguei a este lado.
Sinto-me cansada. Vou descansar e vou pagar o que fiz como Deus entender. Estão aqui a dizer que o arrependimento já é um passo muito importante.
Obrigada, meus amigos, pelos vossos esclarecimentos.
· Em trabalho de doutrinação fomos informados de que este Espírito feminino havia cometido mais de um aborto.
(Continua)
Eu era a coisa mais intolerante. Tudo era severamente criticado com base na boa moral. A religião que defendia dava-me, assim o pensava, a autoridade mais que necessária para criticar e apontar tudo o que suponha errado.
E tudo estava errado: a família, a sociedade, as relações humanas no seu todo. As pessoas eram todas desonestas, já ninguém fazia parte dos que eu admirava: intolerantes fanáticos como eu.
Entretanto, integrei-me num grupo espiritualista extremista que defendia princípios idênticos aos meus. Era o grupo da luz dos meus olhos. Ali, vi-me reflectida. Finalmente encontrara a razão para os meus princípios, o espelho das minhas ideias; gente que me parecia anjos, sábios da verdade suprema, os doutos da vida espiritual.
Em verdade, era o grupo dos contras, sem justificação aparente, ou com justificativos intransigentes, próprios de quem pensa que Deus fala através de si. Eram contra o aborto, as uniões de facto, os homossexuais, as mulheres e os homens de vida fácil, mães solteiras, etc.
Quanto às razões da existência de tais grupos, ninguém se interrogava. Limitavam-se a apontar. Quanto a mim, jamais me passou pela cabeça que tudo aquilo não passava de fogo de vista pois que, parte significativa dos elementos que compunham o grupo, tinha histórias bem curiosas para contar. Eu vivia obcecada e pensava que aquela gente era especial.
Um dia, a minha vida deu uma reviravolta muito grande. Engravidei e o meu namorado, rapaz de trinta e dois anos, e que por coincidência pertencia ao grupo, não assumiu a paternidade e rejeitou-me. Os meus pais fizeram o mesmo. De repente vi-me sozinha, rejeitada e humilhada. O grupo expulsou-me, não a ele “porque um homem é sempre um homem” disseram.
Caio vertiginosamente na realidade da vida. Acordo. À minha volta começo a ver as pessoas a lutarem pela sobrevivência. Observo as lutas diárias de quem tem família para sustentar, dos que vivem sós, independentemente da idade. Observo os velhos e os novos, as crianças. Tudo toma novo rosto. E eu ali estava, reprimindo-me, torturando-me por ter cometido uma leviandade: entreguei-me ao homem que amava e que passava ser recíproco. Sem dinheiro, sem casa, sem o pai do meu filho, grávida, só me restava uma alternativa para sobreviver: abortar.
E foi o que fiz. Fiz o que mais condenei, fiz o que combati com ódio, com rancor, com intolerância, com fanatismo. Quantas vezes eu disse que quem faz um aborto deve ser condenado à morte porque é um assassino; deve ser condenado a trabalhos forçados, deve ser castrado. Quem faz um aborto é um excluído de Deus, uma aberração espiritual, um ignorante que só merece o inferno.
Pois bem, ali estava eu. Quando entrei na sala para abortar, apenas um quarto de uma curiosa, não uma pessoa competente, olhei para duas raparigas que choravam amargamente o passo que iam dar. Uma tinha sido espancada pelo próprio pai e apontada pela aldeia como uma mulher de má vida; a outra vivia na rua, era mendiga e tinha sido violada. Eu apenas ia entregar o fruto do amor que dei e não recebi.
Doravante, jurei a mim mesma que nunca mais seria intransigente. Aprendi que cada um tem as suas razões, que se perdem no interior do seu coração. Aprendi que os mesmos problemas são muito diferentes de pessoa para pessoa. Uns são mais fortes para suportar do que outros, uns resolvem mais facilmente as suas vidas do que outros, mas todos são filhos muito queridos do Pai.
Aprendi que o Pai, Ser Amantíssimo, ama a todos os seus filhos, independentemente dos erros que estes cometem.
Sofri muito quando desencarnei por ter sido como fui, mas espantei-me quando vi pessoas que supunha de vida duvidosa, terem a luz que eu ainda não tenho, e para a qual estou aquém de poder vir a ter num futuro próximo.
A propósito, um dos que pertencia ao grupo social dos que eu mais odiava é hoje um grande amigo. São as subtilezas da vida. Grandes lições que ela nos dá.
Proibir não leva a nada. É cada um por si que tem que caminhar, sentindo no seu coração a necessidade de mudança intrínseca. Não nos compete a nós mudar o mundo. Apenas, o que já é muito bom, limitemo-nos a mudar a nós mesmos. Se conseguirmos alterar alguma coisa, pequenina que seja, em nós mesmos, somos muito felizes.
Cuidado com a língua, cuidado com o que afirmam, cuidado com o que defendem, cuidado com o que se identificam ou afinizam.
Cuidado, meus amigos, muito cuidado.
12·
Acudam-me, eles querem-me matar! Não os vêem? Ai! Que Deus me valha. O que é que eu faço? Eles dizem que eu os matei, mas eu não matei ninguém. Eles estão a mentir, não acreditem neles. Por favor, por favor...
Estão a chamar-me “Assassina, assassina!” Mas quando foi que eu os assassinei? Quando?
(Depois da doutrinação)
Eu não compreendo. Já perdi a noção do tempo, já não sei desde quando oiço bebés a chorar, a esvaírem-se em sangue. Outras vezes, agora percebo, parecem crianças já crescidinhas, de braços estendidos para mim, a chorar e a perguntar constantemente “Porque me mataste?”
Mas a maior parte das vezes são adultos com uma vontade de vingança sem par, querendo-me bater e acusando-me de ser uma assassina.
Tudo me serviu de desculpa. A solidão, a pobreza, o abandono do homem com quem vivi. De tudo fiz razão, e todos quantos me cercavam aceitaram as minhas explicações. Não houve ninguém que me dissesse “Estás errada”. Agora só me resta pagar esta dívida para com a Humanidade e para com Deus.
Eu bem que tinha sonhos, eu bem que fui avisada por outras vias. Mas eu não queria crer. Pensava que tudo não passava de perturbação nervosa e carência afectiva. Pensava que um dia iria encontrar outro homem com quem me desse melhor e, então, teria filhos. A vida começaria de novo.
Nem tive outro homem, nem voltei a engravidar. Os dias que vivi na Terra até ao desencarne, como vocês dizem, foram um verdadeiro inferno, e piorou quando cheguei a este lado.
Sinto-me cansada. Vou descansar e vou pagar o que fiz como Deus entender. Estão aqui a dizer que o arrependimento já é um passo muito importante.
Obrigada, meus amigos, pelos vossos esclarecimentos.
· Em trabalho de doutrinação fomos informados de que este Espírito feminino havia cometido mais de um aborto.
(Continua)
Margarida Azevedo