ALMAS GÉMEAS E METADES ETERNAS II
No andamento do assunto em questão, reflictamos sucintamente sobre o que a respeito podemos inferir à luz do Espiritismo. Para isso escolhemos três autores, um deles é o próprio codificador, sendo os restantes um de uma Entidade comunicante e o outro de um conceituado escritor.
Assim, tomemos em consideração a obra “ O Consolador”, psicografia de F.C.Xavier.
“323 – Será uma verdade a teoria das almas gêmeas?
- No sagrado mistério da vida, cada coração possui no Infinito a alma gêmea da sua, companheira divina para a viagem à gloriosa imortalidade.
Criadas umas para as outras, as almas gêmeas se buscam, sempre que separadas. A união perene é-lhes a aspiração suprema e indefinível.” (p.185).
Por seu lado, a Entidade respondente a Kardec esclarece:
“298. As almas que devem unir-se estão predestinadas a essa união, desde a sua origem, e cada um de nós tem, em alguma parte do Universo, a sua metade, à qual um dia se unirá fatalmente?
Não; não existe união particular e fatal entre duas almas. A união existe entre todos os Espíritos, mas em graus diferentes, segundo a ordem que ocupam, a perfeição que adquiriram (...)” (O Livro dos Espíritos, p.171).
E J.H. Pires afirma, peremptoriamente:
“Deus não cria almas aos pares. Elas brotam do chão, como as flores, na misteriosa dialética da Natureza, e a afinidade que as une vem de longo desenvolvimento nas vidas sucessivas, não raro com penosos intervalos de desencontro, nos quais a solidão de ambas é marcada pela aspiração do possível reencontro. A fusão de duas almas numa só é um mito que simboliza afinidade perfeita, pois cada alma é um Ser que se destina à universalidade do Amor e não ao exclusivismo a dois.” (Pesquisa sobre o Amor, p. 52).
Ao ler os trechos, verificamos que em Emmanuel há um desacordo em relação à obra de Kardec o que, no nosso entender, não é grave. Como sabemos, o Espiritismo é evolucionista e corrigir-se-à no que estiver errado. Isto significa que qualquer estudioso, seja em que plano for da existência, pode e deve corrigir o que não estiver bem. Porém, não é esse o caso. Emmanuel não consegue sobrepor-se à Entidade respondente a Kardec, dando uma resposta que nos parece relativamente pobre.
Por outro lado, é importante salientar que “Almas Gémeas” é dos grandes temas do inconsciente colectivo, muito abordado nos meios esotéricos (e exotéricos), na Literatura, nos Contos Infantis, no Cinema Fantástico e não só, e que, talvez por isso, o próprio codificador não tenha querido deixar em branco o pronúncio da Doutrina a esse respeito. Ao fazer alusão à dimensão universalista do Amor, a Entidade respondente a Kardec quis com isso demonstrar que não estamos acorrentados a um ser para toda a eternidade; ninguém foi criado para a posse exclusiva de outro.
Isto pode-nos parecer muito bem, no entanto o bom senso e a razão, que nos são tão caros e tão frágeis quanto falíveis, baseiam-se muitas vezes em falsas ilacções e conduzem-nos a conclusões irreflectidas. Queremos dizer com isto que, no próprio Kardec, a problemática não escapa à crítica, senão vejamos o cap. II, Elementos Gerais do Universo, “I – Conhecimento do Princípio das Coisas”, e atente-se sobre a pergunta de Kardec e na resposta da Entidade:
“17. Pode o homem conhecer o princípio das coisas?
Não. Deus não permite que tudo seja revelado ao homem, aqui na terra.” (KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, p. 70).
Temos aqui várias coisas a considerar:
1ª A pergunta refere-se a princípio e não a começo. A palavra princípio tem sentido absoluto, significa que algo surge sem que se saiba de onde ou como. A palavra começo, contrariamente, refere-se ao surgimento de alguma coisa a partir de materiais pré-existentes. Parece que Deus não fez o mundo como uma criança faz trabalhos manuais na escola, a partir dos materiais que o professor lhe facultou.
2ª A palavra coisas não especifica nada, isto é, refere-se a tudo quanto existe. As coisas são os existentes, o que nos aparece aos sentidos, entendendo por sentidos os comuns, chamemos-lhes assim, e o chamado extra-sentido ou sentido mediúnico. Quer num caso quer noutro não temos acesso ao princípio de coisa alguma. Até porque a pergunta não alude a planos existenciais, coisas visíveis ou invisíveis. Limita-se a ser generalista.
3ª A primeira resposta é um não peremptório, o que significa que não podemos conhecer o princípio das coisas, quaisquer que elas sejam.
4ª A palavra revelado é oposta a conhecer. A revelação é do domínio da fé e o conhecimento do da ciência. Isto significa que há a possibilidade da obtenção de conhecimentos através de ambos, fé e razão. A primeira não é obra de estudo, tal como o entendemos. Ora, esta dicotomia nem tão pouco surge no item. Ao longo das respostas, tudo aponta para o merecimento, com estudo e trabalho, mas não signica nem afirma que há revelação de tudo.
5ª Por fim, essa revelação não é dada ao homem, aqui na terra, o que quer dizer que há revelações fora do plano em que nos encontramos. Por outras palavras, só depois da morte teremos acesso a outras informações referentes ao princípio das coisas.
Assim sendo, perguntamos nós: Como é que mais à frente (perg. 298) é respondido a Kardec, com tanta certeza, que não há almas gémeas porque Deus não cria almas aos pares? Como é que sabe? A resposta não é de todo convincente. Uma Entidade pode ser muito elevada, estar muito unida a outras e ter uma alma gémea. É uma hipótese a considerar. É que, a partir da pergunta 17, simplesmente não sabemos,. Nem não, nem sim.
Há que ter em consideração que estamos entregues à nossa sensibilidade distorcida, ao tal perigoso bom senso, à imperfeita razão, à falibilidade dos nossos sentidos, à nossa ignorância científica, à nossa falta de amor.
E, assim, por via da coerência, se é que temos alguma, nós preferimos dizer com o Povo, porque a voz do Povo é a voz de Deus, que o que Deus faz, como faz e por que faz ainda não o “revelou” a ninguém, e só a Ele diz respeito. Ponto final. Tudo o mais é matéria de fé, e a fé não se impõe nem se discute.
Quanto a Emmanuel, achamos interessante a firmeza com que responde, imprópria de uma Entidade superior; verificamos que não reformula a resposta, não por ir contra Kardec porque, quanto a nós, Kardec não é Deus nem os que com ele se comunicaram, portanto não é intocável, mas por responder daquela forma.
Por outro lado, a posição de Emmanuel face às críticas quanto à divergência com Kardec, que tem todo o direito de a ter, não é resolvida da melhor maneira. Tenta escapar ileso, minimizando o problema, limitando-se a remeter as causas do “lapso” para Xavier, aludindo que “Devo o pequeno equívoco observado, concedendo à matéria certos ascendentes que só pertencem ao espírito, a perturbações do método de “filtragem mediúnica”, onde o nosso pensamento foi prejudicado.” (F.C.XAVIER, o.c., Nota à Primeira Edição, p.233). ou seja, a culpa é do trabalho do médium.
Além de não se tratar de um pequeno equívoco, consideramos que a explicação dada está numa linguagem confusa, como aliás confusa é toda a obra. O erro é, quanto a nós, demasiado grosseiro para uma Entidade tão iluminada como nos querem fazer acreditar.
Face ao exposto, discordamos da veracidade desta obra, não apenas relativamente ao problema das almas gémeas, mas a outros conteúdos que, de momento, não vêm ao caso, por ir ao arrepio da coerência do discurso, apanágio da Doutrina, pelo menos como a estudamos e com a qual estamos em inteira sintonia, por induzir o leitor em confusão, por não transmitir um pensamento evolucionista em bases kardecistas, muito embora a Doutrina nos mereça as nossas críticas, como deixámos bem claro do que ficou explícito acima, mas também tendo em consideração a distância científica, social, económica e política que separa a época em que foi erigida daquela em que nos encontramos.
Não pomos em causa as condições técnicas da mediunidade nem o ambiente espiritual de F.C. Xavier, não temos nada a ver com o que se diz das Entidades que com ele comunicaram, nem nos interessa se eram de facto expoentes máximos de luz ou não. Para nós também não são importantes os nomes pelos quais as respectivas Entidades se identificaram, identificação contra a qual temos as sobejamente conhecidas advertências de Kardec. Apenas nos interessam os conteúdos.
Assim, sobre O Consolador, tiramos duas conclusões. A primeira é que, além do assunto “Almas Gémeas”, os conteúdos não estão expostos com objectividade; são raríssimas as respostas directas às perguntas que são colocadas; não revela um índice de conhecimentos que se sobreponham aos que já dominamos. Não é uma obra inovadora nem explicativa. A segunda conclusão tem a ver com a falta de clareza de linguagem, não tem brilho, contradiz-se.
Assim sendo, das duas uma: Emmanuel não tem a luz que lhe atribuem, e está, ainda, no nosso plano existencial, ou não foi ele que respondeu a Xavier.
Apesar de verificarmos que há mais medo em criticar Xavier que em criticar os Evangelhos; que lhe são feitas mais preces que a Deus e a Jesus; que as obras tornaram-se autênticas bíblias, sobrepondo-se à Codificação e aos Textos Sagrados, facto que lamentamos profundamente, tal não foi impeditivo de expor aquilo que por hora é o nosso parecer.
Nada tememos, apenas a falta de Deus nos nossos corações e a ignorância, ou seja, cegos a guiar cegos.
Quanto a Herculano Pires, o nosso objectivo foi o de apenas ilustrar a temática com outra opinião, a qual merece o nosso aval.
Margarida Azevedo
Referências bibliográficas
KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, CEPC, Lisboa, 1984, Livro I, cap. II, “Elementos Gerais do Universo, I – Conhecimento do Princípio das Coisas”, perg. 17, p. 70; Livro II, cap. VI, “Vida Espírita, VII – “Relações Simpáticas e Antipáticas dos Espíritos. Metades Eternas”, p.171.
PIRES, J.H., Pesquisa sobre o Amor, DICESP, São Paulo, “IV Amor e Convivência”, p.52.
XAVIER, F.C., O Consolador, FEB, RJ, 1998, “III Amor, União, p. 185; “Nota à Primeira Edição, pp.231-233.