quarta-feira, julho 27, 2011

ALMAS GÉMEAS E METADES ETERNAS II


  No andamento do assunto em questão, reflictamos sucintamente sobre o que a respeito podemos inferir à luz do Espiritismo. Para isso escolhemos três autores, um deles é o próprio codificador, sendo os restantes um de uma Entidade comunicante e o outro de um conceituado escritor.

             Assim, tomemos em consideração a obra “ O Consolador”, psicografia de F.C.Xavier.

            “323 – Será uma verdade a teoria das almas gêmeas?


            - No sagrado mistério da vida, cada coração possui no Infinito a alma gêmea da sua, companheira divina para a viagem à gloriosa imortalidade.


            Criadas umas para as outras, as almas gêmeas se buscam, sempre que separadas. A união perene é-lhes a aspiração suprema e indefinível.” (p.185).

            Por seu lado, a Entidade respondente a Kardec esclarece:

 “298. As almas que devem unir-se estão predestinadas a essa união, desde a sua origem, e cada um de nós tem, em alguma parte do Universo, a sua metade, à qual um dia se unirá fatalmente?

Não; não existe união particular e fatal entre duas almas. A união existe entre todos os Espíritos, mas em graus diferentes, segundo a ordem que ocupam, a perfeição que adquiriram (...)” (O Livro dos Espíritos, p.171).

E J.H. Pires afirma, peremptoriamente:

Deus não cria almas aos pares. Elas brotam do chão, como as flores, na misteriosa dialética da Natureza, e a afinidade que as une vem de longo desenvolvimento nas vidas sucessivas, não raro com penosos intervalos de desencontro, nos quais a solidão de ambas é marcada pela aspiração do possível reencontro. A fusão de duas almas numa só é um mito que simboliza afinidade perfeita, pois cada alma é um Ser que se destina à universalidade do Amor e não ao exclusivismo a dois.” (Pesquisa sobre o Amor, p. 52).



Ao ler os trechos, verificamos que em Emmanuel há um desacordo em relação à obra de Kardec o que, no nosso entender, não é grave. Como sabemos, o Espiritismo é evolucionista e corrigir-se-à no que estiver errado. Isto significa que qualquer estudioso, seja em que plano for da existência, pode e deve corrigir o que não estiver bem. Porém, não é esse o caso. Emmanuel não consegue sobrepor-se à Entidade respondente a Kardec, dando uma resposta que nos parece relativamente pobre.

Por outro lado, é importante salientar que “Almas Gémeas” é dos grandes temas do inconsciente colectivo, muito abordado nos meios esotéricos (e exotéricos), na Literatura, nos Contos Infantis, no Cinema Fantástico e não só, e que, talvez por isso, o próprio codificador não tenha querido deixar em branco o pronúncio da Doutrina a esse respeito. Ao fazer alusão à dimensão universalista do Amor, a Entidade respondente a Kardec quis com isso demonstrar que não estamos acorrentados a um ser para toda a eternidade; ninguém foi criado para a posse exclusiva de outro.

Isto pode-nos parecer muito bem, no entanto o bom senso e a razão, que nos são tão caros e tão frágeis quanto falíveis, baseiam-se muitas vezes em falsas ilacções e conduzem-nos a conclusões irreflectidas. Queremos dizer com isto que, no próprio Kardec, a problemática não escapa à crítica, senão vejamos o cap. II, Elementos Gerais do Universo, “I – Conhecimento do Princípio das Coisas”, e atente-se sobre a pergunta de Kardec e na resposta da Entidade:

“17. Pode o homem conhecer o princípio das coisas?

Não. Deus não permite que tudo seja revelado ao homem, aqui na terra.” (KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, p. 70).

Temos aqui várias coisas a considerar:

1ª A pergunta refere-se a princípio e não a começo. A palavra princípio tem sentido absoluto, significa que algo surge sem que se saiba de onde ou como. A palavra começo, contrariamente, refere-se ao surgimento de alguma coisa a partir de materiais pré-existentes. Parece que Deus não fez o mundo como uma criança faz trabalhos manuais na escola, a partir dos materiais que o professor lhe facultou.

2ª A palavra coisas não especifica nada, isto é, refere-se a tudo quanto existe. As coisas são os existentes, o que nos aparece aos sentidos, entendendo por sentidos os comuns, chamemos-lhes assim, e o chamado extra-sentido ou sentido mediúnico. Quer num caso quer noutro não temos acesso ao princípio de coisa alguma. Até porque a pergunta não alude a planos existenciais, coisas visíveis ou invisíveis. Limita-se a ser generalista.

3ª A primeira resposta é um não peremptório, o que significa que não podemos conhecer o princípio das coisas, quaisquer que elas sejam.

4ª A palavra revelado é oposta a conhecer. A revelação é do domínio da fé e o conhecimento do da ciência. Isto significa que há a possibilidade da obtenção de conhecimentos através de ambos, fé e razão. A primeira não é obra de estudo, tal como o entendemos. Ora, esta dicotomia nem tão pouco surge no item. Ao longo das respostas, tudo aponta para o merecimento, com estudo e trabalho, mas não signica nem afirma que há revelação de tudo.

5ª Por fim, essa revelação não é dada ao homem, aqui na terra, o que quer dizer que há revelações fora do plano em que nos encontramos. Por outras palavras, só depois da morte teremos acesso a outras informações referentes ao princípio das coisas.

Assim sendo, perguntamos nós: Como é que mais à frente (perg. 298) é respondido a Kardec, com tanta certeza, que não há almas gémeas porque Deus não cria almas aos pares? Como é que sabe? A resposta não é de todo convincente. Uma Entidade pode ser muito elevada, estar muito unida a outras e ter uma alma gémea. É uma hipótese a considerar. É que, a partir da pergunta 17, simplesmente não sabemos,. Nem não, nem sim.

Há que ter em consideração que estamos entregues à nossa sensibilidade distorcida, ao tal perigoso bom senso, à imperfeita razão, à falibilidade dos nossos sentidos, à nossa ignorância científica, à nossa falta de amor.

E, assim, por via da coerência, se é que temos alguma, nós preferimos dizer com o Povo, porque a voz do Povo é a voz de Deus, que o que Deus faz, como faz e por que faz ainda não o “revelou” a ninguém, e só a Ele diz respeito. Ponto final. Tudo o mais é matéria de fé, e a fé não se impõe nem se discute.

Quanto a Emmanuel, achamos interessante a firmeza com que responde, imprópria de uma Entidade superior; verificamos que não reformula a resposta, não por ir contra Kardec porque, quanto a nós, Kardec não é Deus nem os que com ele se comunicaram, portanto não é intocável, mas por responder daquela forma.

Por outro lado, a posição de Emmanuel face às críticas quanto à divergência com Kardec, que tem todo o direito de a ter, não é resolvida da melhor maneira. Tenta escapar ileso, minimizando o problema, limitando-se a remeter as causas do “lapso” para Xavier, aludindo que “Devo o pequeno equívoco observado, concedendo à matéria certos ascendentes que só pertencem ao espírito, a perturbações do método de “filtragem mediúnica”, onde o nosso pensamento foi prejudicado.” (F.C.XAVIER, o.c., Nota à Primeira Edição, p.233). ou seja, a culpa é do trabalho do médium.

Além de não se tratar de um pequeno equívoco, consideramos que a explicação dada está numa linguagem confusa, como aliás confusa é toda a obra. O erro é, quanto a nós, demasiado grosseiro para uma Entidade tão iluminada como nos querem fazer acreditar.

           Face ao exposto, discordamos da veracidade desta obra, não apenas relativamente ao problema das almas gémeas, mas a outros conteúdos que, de momento, não vêm ao caso, por ir ao arrepio da coerência do discurso, apanágio da Doutrina, pelo menos como a estudamos e com a qual estamos em inteira sintonia, por induzir o leitor em confusão, por não transmitir um pensamento evolucionista em bases kardecistas, muito embora a Doutrina nos mereça as nossas críticas, como deixámos bem claro do que ficou explícito acima, mas também tendo em consideração a distância científica, social, económica e política que separa a época em que foi erigida daquela em que nos encontramos.

Não pomos em causa as condições técnicas da mediunidade nem o ambiente espiritual de F.C. Xavier, não temos nada a ver com o que se diz das Entidades que com ele comunicaram, nem nos interessa se eram de facto expoentes máximos de luz ou não. Para nós também não são importantes os nomes pelos quais as respectivas Entidades se identificaram, identificação contra a qual temos as sobejamente conhecidas advertências de Kardec. Apenas nos interessam os conteúdos.

Assim, sobre O Consolador, tiramos duas conclusões. A primeira é que, além do assunto “Almas Gémeas”, os conteúdos não estão expostos com objectividade; são raríssimas as respostas directas às perguntas que são colocadas; não revela um índice de conhecimentos que se sobreponham aos que já dominamos. Não é uma obra inovadora nem explicativa. A segunda conclusão tem a ver com a falta de clareza de linguagem, não tem brilho, contradiz-se.

Assim sendo, das duas uma: Emmanuel não tem a luz que lhe atribuem, e está, ainda, no nosso plano existencial, ou não foi ele que respondeu a Xavier.

Apesar de verificarmos que há mais medo em criticar Xavier que em criticar os Evangelhos; que lhe são feitas mais preces que a Deus e a Jesus; que as obras tornaram-se autênticas bíblias, sobrepondo-se à Codificação e aos Textos Sagrados, facto que lamentamos profundamente, tal não foi impeditivo de expor aquilo que por hora é o nosso parecer.

Nada tememos, apenas a falta de Deus nos nossos corações e a ignorância, ou seja, cegos a guiar cegos.

Quanto a Herculano Pires, o nosso objectivo foi o de apenas ilustrar a temática com outra opinião, a qual merece o nosso aval.

Margarida Azevedo
Referências bibliográficas

KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, CEPC, Lisboa, 1984, Livro I, cap. II, “Elementos Gerais do Universo, I – Conhecimento do Princípio das Coisas”, perg. 17, p. 70; Livro II, cap. VI, “Vida Espírita, VII – “Relações Simpáticas e Antipáticas dos Espíritos. Metades Eternas”, p.171.

PIRES, J.H., Pesquisa sobre o Amor, DICESP, São Paulo, “IV Amor e Convivência”, p.52.

XAVIER, F.C., O Consolador, FEB, RJ, 1998, “III Amor, União, p. 185; “Nota à Primeira Edição, pp.231-233.

domingo, julho 24, 2011

ALMAS GÉMEAS E METADES ETERNAS I


            Sempre tão actuais, estes assuntos continuam a merecer a nossa atenção pois reflectem parte significativa das preocupações referentes aos nossos afectos, nomeadamente entre casais, pais e filhos.

            Mas não só. Fazem, ainda, depender as manifestações afectivas de uma constituição psicológica onde a temeridade da perda do objecto amado é o móbil de todo um edifício fantasmático, ao qual a própria manifestação religiosa e espiritual não é alheia.

            Por outro lado, a afectividade é toda psicológica e não manifestação de sentimentos livres, emanados de uma outra casa que não a da nossa estrutura psíquica. E aqui surge a primeira questão: Será que o género humano é capaz de amar independentemente do seu psiquismo? Até que ponto podemos falar de um amor inteiramente livre, desligado de objectivos, fins, fitos? Ou, inversamente, que funções tem o nosso aparelho psíquico? Fica-lhe apenas reservado o prazer, a concretização de objectivos, ou seja, a efectivação de projectos, sendo que, interrompidos os processos/meios através de obstáculos que impeçam que os mesmos sejam atingidos, o sujeito entra em ruptura fazendo perigar o seu equilíbrio, tornando-se agressivo, com problemas com a realidade, entre outras patologias?

            É próprio do sujeito que ambas as realidades interajam, porém, tal nem sempre acontece da forma mais satisfatória. O amor possessivo, o ciúme e o medo de ser enganado pelo outro são sinais de perturbações que requerem uma análise objectiva levada a efeito por profissionais.

            Aqui impõe-se a escolha criteriosa do profissional escolhido pelo paciente ou pela família. A análise científica não pode recorrer a outros processos que não os científicos, ou, no caso de introduzir outros até então não utilizados, estes devem ter sido devidamente investigados pela comunidade científica.

            Ora, o que se verifica muitas vezes é à introdução de outros mecanismos de análise, livremente escolhidos pelo terapeuta, à revelia da comunidade científica e por isso não devidamente testados, criando uma dependência do paciente face a este. Abusando da sua fragilidade e insegurança, o terapeuta deixa-se endeusar, alimentando por sua vez a vaidade e tornando-se como que uma peça insubstituível para o equilíbrio do paciente.

            Em suma, surge a obsessão do próprio terapeuta, e não são poucos os casos, e um aumento da perturbação psíquica do paciente que, sem se dar conta, não está a ser tratado mas complexificar o seu problema.

            No que diz respeito ao modus operandi dos Centros Espíritas, a situação é inversamente idêntica. O trabalhador do Centro, ainda que possa ser terapeuta, não pode nem deve usar de outros meios que não os preconizados pela Doutrina. O trabalho deve ser sempre em grupo, em ambiente recatado, em prece fervorosa, com paciência, amor e respeito por parte de todos sem excepção. O ambiente deve ser despreconceituoso, mediado, sempre, pela mais cerrada confidencialidade. Por seu lado, cabe ao profissional de saúde deixar para trás as suas posições religiosas, ou outras, e proceder à análise recorrendo exclusivamente à ciência e não a outros processos. Centro é Centro, consultório é consultório, e nada de confusões.

              Se isto não acontecer, a pessoa entra em perturbação, o que a leva a picos muito altos de fantasia, culminando em conflito com a família e a sociedade que passam a barreiras entre o sujeito e os objectivos pretendidos. Daí resulta, entre outros, a criação de teorias estapafúrdias, inconsequentes, por vezes tão bem erigidas e explanadas que chegam a criar adeptos. O nosso assunto em epígrafe é disso exemplo vivo.

O mau relacionamento com a família na infância, a rejeição por parte dos pais e /ou irmãos, dificuldades de socialização e integração em grupos, nomeadamente na escola ou no emprego, as diferenças físicas acentuadas, entre uma infinidade de outros factores, levam o indivíduo a investir a sua carga afectiva para fora do meio, muitas vezes até para além da estrutura corpórea.

            As almas gémeas são isso mesmo. Não sendo capaz de resolver o problema, o indivíduo imagina que há, algures no espaço, uma alma que foi criada ao mesmo tempo que a sua. Só esse ser é que o ama, só ele o compreende, só ele o satisfaz. Viver mais não é que procurá-lo.

            Estes pacientes apresentam um quadro de perturbações complexo ao nível da concentração, são assocializados, de tal forma que o outro é uma ameaça; nos casos mais graves, descuidam a aparência física, a higiene pessoal, o que os torna mais rejeitados.

            Por isso apelamos aos trabalhadores dos Centros que tenham a máxima atenção para com estas pessoas, tenham uma atitude acrítica, sem censuras, pois têm entre mãos alguém que precisa mais de afecto que de uma atitude de censura, como por vezes, infelizmente, acontece.

            Margarida Azevedo

quarta-feira, julho 20, 2011

A MUNDIVIVÊNCIA DOS NOSSOS AFECTOS

(Continuação)
Eles não sabem, porque a escola não ensina, mas um dia vão aprender que há desemprego porque muitos trabalham horas a mais; eles vão aprender na vida que a ambição faz das pessoas números; eles vão aprender que, para que uns quantos possam viver “felizes”, outros há que não têm o necessário; eles vão aprender que a muitos nem tão pouco lhes é facultado poder amar porque não têm vida própria, ou porque não têm casa, ou porque não têm disponibilidade para eles mesmos.

Mas tem que lhes ser dito, e a História prova-o, que ao longo de centenas de anos os homens têm cultivado o seu próprio sofrimento. A Humanidade está a apostar com todas as forças na ambição, prestigiando o ter, o muito possuir, não importa por que meios, não importa à custa de quantas vidas. Tudo isso em resultado de uma falsa concepção de felicidade, consequência lógica de um desconhecimento total das forças do Espírito. Por isso, a Humanidade está em situação de calamidade espiritual, obsessão e fascinação, de tal modo que bem poucos são os que falam em nome das Forças do Espírito.

A educação cria falsos conceitos, entre eles o da nossa importância. Ora, nós não somos nada, rigorosamente nada face à totalidade do Universo. Somos o que somos até Deus querer, e de um momento para o outro, esta vida esvai-se em pó, cinza e nada. Com ela, vão-se as ambições idiotas, as falsidades, os devaneios, as ilusões.

Porque a técnica não responde a questões existencialistas, tão prementes como complexas, a saber, porque sofremos? Porque estamos aqui? De onde vimos? Para onde iremos? Quem somos?

A educação exclusivamente técnica não impõe nem defende a necessidade de uma arqueologia. No fundo, desconhece que educar é conduzir à pesquisa da nossa mesma arquê. Procuramos o fundamento último da nossa existência. É urgente, por isso, criar novas relações do homem com o outro homem, do homem com a Natureza e do homem com o seu futuro.

Primeiro, é fundamental ensinar as regras da humildade, isto é, a força que tem o perdão e o quanto ele compreende um acto de coragem nobre. Perdoar não é apanágio de fracotes, mas de nobreza de carácter. O perdão implica reconhecer que todos cometemos idênticas faltas, que todos temos muito que ser perdoados. Perdoar é fazer amigos.

Segundo, é fundamental saber estar com a Natureza para respeitá-la. Saber que ela é a voz das Forças Superiores, causa do espanto que todo o seu vastíssimo aparato fenoménico nos provoca. Estudar a Natureza conduz à compreensão de que não há duas naturezas, uma “normal” e outra “sobrenatural”, mas que tudo, absolutamente tudo, faz parte das mesmas forças, da mesma Energia, e provém da mesma Inteligência. O insólito nada tem de incomum. Ele nem tão pouco existe. É a nossa ignorância que lhe chama assim. Ele é tão banal e tão espantoso como a água se apresentar em neve deliciando-nos com o espectáculo de cristais magníficos. Estudar e esclarecer-se é lutar contra disparates e endeusamento de pessoas, animais e lugares. Verdadeiramente sublime e sagrado só Deus.

Terceiro, o momento histórico que atravessamos não está para brincadeiras. A componente formativa da educação é urgentíssima. Os homens estão a ter muita dificuldade em entender-se. Caminhamos para um crescimento dos conflitos. Preparar cada um para ser um cidadão honesto, e ensinar que a honestidade é um valor, fará desses alunos homens e mulheres conscientes da mudança evolutiva e consequente preparação para superar conflitos.

A ambição impôs-se e pretende transformar as virtudes em erros, nomeadamente a liberdade. Ora, a máquina, contrariamente ao que pensam alguns, está a conduzir a novas componentes reflexivas, introduzindo novas questões, construindo um novo léxico no nosso aparelho conceptual. É o lado certo do que se pensa errado e sem concerto. É o saber tirar um bem daquilo que parece irremediavelmente um mal.

Quanto à reencarnação, o seu papel é este: reencarnar significa submergir na ignorância. Por seu lado, desconhecer o passado tira-nos, de alguma forma, parte considerável da culpa. Porém, desvendá-lo não é aconselhável, pois corremos o risco de cair na loucura.

Posto isto, sobra-nos viver segundo os parâmetros que só a Educação pode facultar. Na sua dupla componente informativa e formativa, cabe-lhe a tarefa de moldar o Espírito a um querer com propriedade.

A educação tem tudo isto por fazer.
(Continua)

Margarida Azevedo

sexta-feira, julho 08, 2011

NA RELIGIÃO, QUE LUGAR PARA A FÉ?


Ao reflectirmos sobre o fenómeno religioso e os seus meios de divulgação, facilmente constatamos que o mesmo tem sido o grande erro da humanidade.

Em nome da religião, de falsos conceitos e vivências da fé, se têm proibido os avanços científicos, as ideias novas, criado distâncias entre homem e mulher, impedindo assim uma vivência despreconceituosa, livre e saudável.

No que diz respeito à exegese e teologia das chamadas Religiões do Livro (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), quantos não têm sucumbido nas mãos dos líderes para os quais a novidade interpretativa é uma ameaça? Estabelecendo um clima de terror, muitos estudiosos não manifestam livremente as suas ideias sob pena de não continuarem vivos.

Na maioria dos casos, pretendendo uma uniformização mediante um discurso a uma só voz, pensam alguns que o fenómeno religioso implica, dentro de uma mesma organização, vivências da fé em moldes idênticos, calibrados como peças de um maquinismo qualquer, de tal forma que faltando uma substitui-se facilmente por outra.

Assim, não mais que revelador do lado alucinado do ser humano, o fenómeno religioso é um bom exemplo de distúrbios psicológicos, pois cada religião julga-se detentora da verdade, o que só por si é gerador de discursos incoerentes e por isso pouco credíveis, o que a torna intransigente e inflexível. Movidos por uma certeza inquestionável, os líderes crêem que o seu discurso é o discurso de Deus, a sua voz a única que chega ao céu. Desconhecendo que o discurso religioso, como qualquer outro, é permeável a outros discursos, que sofre influências pois nada surge do nada, e que a religião tem que acompanhar a evolução dos tempos, lutam sem tréguas por uma suposta pureza doutrinária que mais não é que a manutenção de uma hierarquia longe dos fiéis, abstracta e surda, e onde a fé nada, ou muito pouco, significa ou representa.

Ora, o contágio não significa perda de integridade, enfraquecimento ou laxismo. Pelo contrário, é representativo de crescimento, evolução e adaptação do discurso aos novos sentidos da linguagem, tornando-se perceptível a todos os fiéis, e não perdido e restrito a um pequeno grupo. Por outras palavras, tornado voz de uma elite poderosíssima, o discurso unidireccional do fenómeno religioso tem erigido muros à fé, impedindo que cada um de per si se sinta caminho e não escolho dentro da organização religiosa.

Levado às últimas consequências, este fenómeno tem desenvolvido a xenofobia, nós somos os únicos enviados directos de Deus, o racismo, somos uma raça escolhida, a ideia de superioridade, nós somos os mais inteligentes, de poder, só nós temos a verdade e há que espalhá-la por toda a terra.

O culminar destes comportamentos alucinados tem sido revelador de uma humanidade cuja natureza é profundamente homicida, e à qual o fenómeno religioso tem dado livre expansão, uma vez que matar torna-se mais fácil porque encoberto sob o véu da religião. Segue-se depois o desfilar de injustiças, tais como a impunidade e o assumir da situação como um acto de coragem e de fé, construindo heróis que devastam e aterrorizam tudo o que se lhes oponha, sendo os derrotados os infiéis perigosos.

Desta forma se compreende que matar em nome de mais não é que o rosto dos perigosíssimos fundamentalismo e totalitarismo, em que a vida não é o maior dos bens, a diferença é encarada como uma ameaça que faz desmoronar a boa moral e os bons princípios, a emancipação das mulheres como uma fraqueza e ameaça para os homens. Tudo isto abafa o sublime direito à vida, o dever de respeito pelo outro que, em vez de ser encarado como um filho de Deus, é tido como um vírus destruidor.

Os fantasmas impedem que haja uma aproximação ao outro, uma vez que o único e exclusivo objectivo é o de criar milhões de adeptos e não milhões de amigos. Aqui impõe-se uma questão: O que é mais importante para mim, relacionar-me com o outro enquanto possível seguidor das minhas convicções, ou como cidadão, crente ou não, reconhecendo-lhe o direito de traçar o seu próprio caminho? O que é mais importante, o outro enquanto pessoa ou enquanto crente?

Ora, a dimensão de pessoa é sempre mais abrangente. Ela engloba antes de mais o cidadão, o que é inegável, pois até o próprio discurso religioso assenta no facto de que Deus nos deu um mundo para habitar, sendo a Humanidade uma irmandade porque todos somos Seus filhos; engloba a inter-relação com o outro, o que implica partilha, a que o fenómeno religioso não se cansa de fazer alusão; engloba as relações entre homem/mulher, afectos, paternidade/maternidade, relações de filiação, de que a religião sobejamente se ocupa; engloba as relações laborais e toda a sua complexidade, e sobre as quais a religião emite os seus pareceres.

Porém, não redutível a um pequeno espaço, religioso ou não, a dimensão de pessoa engloba todos os aspectos, religioso, estético e político, alarga horizontes dando espaço ao livre pensamento, promove a inter-subjectividade, dinamiza e alarga objectivos nas mais diversas áreas, tais como científicas, técnicas e tecnológicas, confere ao ser humano a possibilidade de se revelar enquanto ser único, transmissor de um potencial riquíssimo que só em liberdade pode manifestar-se. Ser cidadão é ser responsável, donde o espanto perante a Natureza e todo o vasto campo fenoménico, do qual o outro é sempre parte integrante, consiste no despertar da incómoda quão atraente noção de que caminhamos para um mais onde nada se confunde mas participa e colabora.

Contrariamente, a dimensão de crente é redutível a um único aspecto, a saber, a adesão a uma organização religiosa. Resultado, a cidadania, relações inter-pessoais, afectivas, laborais e outras, ficam drasticamente dependentes da mesma, uma vez que o cumprimento dos deveres sociais, familiares, etc, confunde-se com os deveres religiosos.

Poderão fundir-se cidadania e religião? Se isso viesse a acontecer ficaríamos sem ambas. Quando temos no Evangelho a expressão de que não é quem diz Senhor, Senhor que entra no Reino de Deus, mas quem faz a Sua vontade, somos conduzidos a uma novidade grandiosa, a saber, a fé não é do domínio do dizível, mas do vivencial, mostrável, expansível, pois a capacidade de agir é infinita. Com Jesus, não estamos no plano da discursividade mas da vivência interior da fé, plano esse que supera tudo o que o fenómeno religioso defende. O texto refere-se a comportamentos e não a fórmulas; é uma qualidade e não uma análise quantitativa. Para Jesus, sendo que toda a humanidade é filha de Deus, logo o que conduzirá cada um ao Pai não é o cumprimento das práticas exteriores (o mostrar que se é crente), mas toda uma vivência discreta da fé. Por outras palavras, se o fenómeno religioso continuar de costas viradas para a sociedade, com todo o pluralismo que a caracteriza, temendo-o, em pouco tempo perderá todo o sentido, tornando-se as religiões resíduos, uma espécie de tábua de salvação fantasmática para os problemas que protagonizamos, e não um espaço de conversa com Deus no recato da fé.

Crer que uma religião é forte só porque tem muitos adeptos, é reduzi-la a muito pouco. A sua força mede-se pela tolerância e pelo amor a Deus que promove, acima de todos e quaisquer interesses. Tal como a fé não é grande em quem muito fala, ou muito ora, mas em quem pretende bem agir.

A religião não esgota a fé, mas é a fé que esgota a religião e a supera, transpondo o homem para lá da discursividade.

Margarida Azevedo