Sendo a política uma ciência que tem por objecto a organização e administração do Estado, e o homem o objectivo, segundo Aristóteles, de atingir a felicidade, isto significa para o referido filósofo que só em sociedade o homem poderá ser feliz. Na medida em que é um animal político, e é precisamente isso que o distingue dos outros animais, o homem cria leis de forma a que direitos e deveres se equilibrem, isto é, constrói um sistema de trocas. Por isso concluí que o homem que não quer viver em sociedade ou é um deus ou uma besta.
Esta posição é algo interessante, pois os extremos tocam-se na diferença abissal que os separa. É que se há seres que estão tão acima do comum dos mortais que já superaram a necessidade de viver em sociedade, outros há que estão tão abaixo que ainda não conseguiram ver nela o seu caminho para a construção de si próprios, enquanto indivíduos. Digamos que a estrutura política da sociedade coloca-nos num plano intermédio entre o superior e o inferior, não confundível com a noção de Platão, o seu mestre, de Alto e Baixo. O Alto é o mundo ideal arquetípico, o Baixo é o mundo terreno como sua representação. Em Aristóteles não temos esta estrutura, até porque, para ele, dizer que o mundo real é o mundo das ideias e que este é uma sombra mais não é que “fazer metáforas poéticas.” (Metafísica)
A política revela a nossa capacidade organizativa, confere-nos um estatuto de superioridade de tal forma que eu só sou indivíduo na medida em que tenho consciência de outros indivíduos que são, tal como eu, outros eu para si mesmos. Na falta desta estrutura, caímos numa desorganização onde os instintos tomam o rumo da vida, reduzindo o homem ao estado de mero animal irracional, isto é, anula-se enquanto indivíduo, uma vez que a felicidade deixa de ser o objectivo principal cedendo lugar à lei da força.
Com mais ou menos nuances, a política tornou-se progressivamente mais elaborada, acompanhando as novas necessidades organizativas, mercê da maior complexidade social. Ela ditou desde sempre as regras da vida em comunidade dentro dos Estados, política interna, e entre os Estados, política externa. Definiu interesses, estabeleceu regras, ergueu preceitos e valores, continuando, em minha opinião, a objectivar a felicidade como fim supremo. E parece-me que não há outro, ser feliz é o fito máximo do indivíduo, o móbil de todas as acções.
A partir da Segunda Guerra Mundial, entramos num processo de decadência, cuja agudização se situa no último quartel do séc. XX, com as novas noções de cidadania, não já o indivíduo da polis, um Estado um país, mas com o surto dos ideais de globalização cujo poder vigente é o económico, a bandeira o dinheiro e o hino as moedas mais fortes. Ser cidadão foi progressivamente tornando-se sinónimo de habitante de qualquer parte do planeta, ainda que ele nada tenha a ver com o espaço geográfico em que se encontre.
Daí o desenvolvimento de uma disciplina que até então não o era, pelo menos com o cinismo com que é estudada hoje, a Sociologia. Ser cidadão tornou-se ser capaz de se adaptar às condições sociais mais adversas, e não o ser que está empenhado em conquistar a felicidade, sua e dos seus compatriotas. A pátria deu lugar a uma geografia amorfa e insípida, a polis morreu e com ela o eu, não deus nem besta, mas tão simplesmente o indivíduo que quer evoluir numa sociedade em que se sente com-responsável entre semelhantes. O novo cidadão socializado é aquele que aceita e consegue conviver com a diferença, nem que ela vá ao arrepio dos seus interesses e convicções. A diferença e o diferente deixaram de ser o outro eu, o outro indivíduo diferente de mim mas tal como eu e comigo empenhados na construção de uma sociedade melhor; passaram a ser aqueles que vêm de um lado qualquer e que impõem os seus critérios numa sociedade que lhes é estranha, tentando com isso sobreviver.
Com tudo isto, morreu a organização política como o garante de justiça, equidade entre os cidadãos, educação e saúde ao serviço de todos e, principalmente, como a estrutura responsável pela feitura de leis. Quem dita as regras é o poder económico, ao qual está completamente submisso o que resta da política muribunda. Os indivíduos já não são os pensadores, os que discutem política, mas os cidadãos adormecidos, que não precisam de pensar pois têm quem pense por eles, uma vez que o poder económico construíu pensadores de carreira, uma casta pseudo-política rendida ao poder económico.
A Política, subsidiada pela História, Direito, Antropologia e, pela mais recente, Sociologia, desenvolve critérios de justiça e uma maior equidade entre as classes sociais. É nela que se debatem interesses, cuja satisfação deverá culminar em progresso das sociedades, maior produtividade, melhor gestão dos recursos naturais, melhor Educação, com consequente repercussão nos meios técnicos e tecnológicos. Ora, ao esmagarem a organização política, os interesses económicos põem em causa a soberania dos Estados, pois sai sempre vencedor o mais forte economicamente, implementando a deshumanização.
Entre tudo o que se perde, temos o fenómeno religioso que, perante fiéis na confusão do emaranhado de interesses que são artificialmente criados e impostos, não sabem para que lado se virar. Vendo-se confrontados com novas realidades que lhes põem à prova e em causa a fé em que sempre se apoiaram, dão consigo perdidos numa amálgama de crenças que não sabem gerir.
Assim, e por via das dúvidas, há quem vá à missa de manhã, à reunião das Testemunhas de Geová depois do almoço, à meditação budista antes do jantar, terminando o dia com meditação transcendental. Isto para se sentir muito Zen, muito In ( a forças positivas até são Yang), muito positivo, com muita energia.
No entanto, considerando que a actividade religiosa é composta por três grupos de fiéis distintos:
Primeiro, a hierarquia dirigente, grupo minoritário, que dita as regras e estabelece aquilo em que e como devem os fiéis acreditar. É um grupo de poderosa influência política, cuja presença visivelmente se constacta, pois não raro assume o poder ou, quando na sombra, prepara leigos que o represente. São estes o alvo principal das críticas de Jesus, os que devoram as casas das viúvas, vestem-se de longas vestes, fazem longas preces e procuram ser respeitados pelas populações através de todo um aparato vistoso.
Segundo, o grupo maioritário dos seguidores, aqueles que vêem na religião o caminho salvífico, os que seguem a doutrina e procuram o alívio dos males. Estar bem com Deus e com os homens são os seus grandes objectivos. Seguem os preceitos ritualísticos com rigor e oferecem grandes dádivas; são os que alimentam e mantêm economicamente as religiões, enriquecendo-as com os tesouros das oferendas tentando com isso angariar um lugar no céu. No tempo de Jesus constituem as multidões compostas por seguidores e simpatizantes, pois eram os principais ouvintes da sua pregação, como por exemplo, o episódio da multiplicação dos pães e dos peixes, do Sermão da Montanha, (em Lucas é na planície), entre outros.
Por último, temos o grupo restrito dos que se impõem à religião, mas mantêm-se dentro dela. Não procuram que lhes traga a salvação, nem um bem estar terreno. Trata-se de um grupo pio, que busca a santidade, que trabalha pelo bem e para o bem, procurando atingir um mundo de beatitude junto de Deus, único fundamento da sua existência. Não raro se confundem com os profetas, porém ser profeta não significa ser pio, mas ser pio implica ser um profeta num sentido amplo, isto é, pregar a Deus, o Bem, e todas as demais virtudes constitui uma mesma coisa. Os Evangelhos falam-nos de João Baptista, referem Elias e Isaías, e é posta na boca de Jesus a referência, aquando dos Mandamentos, de que o primeiro e o segundo encerram toda a Lei e os profetas. Contudo, João Baptista desempenha na tradição exegética um papel não só de profeta mas também de santo. Por isso se diz que veio preparar o caminho para Jesus, de quem foi mestre.
Constatamos, desta forma, que nos tempos que correm esta situação está em profundas convulsões. Continuando a fazer referência à Segunda Guerra Mundial, ao ser dividido o mundo em dois blocos distintos, a Guerra Fria dá origem ao tipo de debate político gradativamente empobrecedor e de que somos hoje herdeiros. A manifestação religiosa passa à clandestinidade, de um lado, e a uma falsa liberdade, por outro. É quando se começa a confundir a livre manifestação da fé com o pôr em causa todo um projecto beatífico, no amor incondicional a Deus, como fundamento último de todo o crente.
Entrados no séc.XXI, virificamos a perigosa substituição do insubstituível, a saber, já não sendo mais a política que dita as regras, calou-se o debate e conferiu-se às manifestações de desagrado uma temeridade como se de um bando de saltimbancos se tratasse. Com o desmoronar da política é promovida a aridez ideológica, levianamente submissa aos interesses económicos, e a Humanidade ruma, assim, ao descalabro. Vão longe os debates de ideias, vão longe os valores que as religiões a custo erigiram e, nesta amálgama onde tudo se inverte, estamos a constactar que o Homem é um ser cada vez mais insatisfeito, logo mais infeliz porque despolitizado, perdido na sua fé e cada vez mais distante de Deus porque lhe faltam os princípios beatíficos que a Ele conduzem.
Todos sabemos que religião e política se entrecruzam. Porém, a laicização dos Estados, responsável por um salto qualitivo notável, permitiu que as religiões, ávidas de poder, se constituíssem como partidos políticos e, como dispõem de grande aparato económico, mudaram de discurso: já não são caminhos para Deus mas para o mundo. Chegar até Deus, além de ser discurso de segundo plano, é assunto vocacionado quase exclusivamente para os insatisfeitos, os excluídos e todos aqueles que procuram agarrar-se a algo que os proteja e lhes garanta o pão de cada dia. Por isso o caminho para Deus já não se faz por meio de oração, jejum, meditação, ajuda ao próximo e restantes actos de bem-fazer, tornou-se sulcooso. Para chegar até Deus basta convencer os fiéis, que agora se tornaram o eleitorado crente, de que votando em tal partido têm garantida a via directa para a felicidade neste mundo, o que se tornou sinónimo de Deus.
Ora, jamais poderemos confundir a felicidade terrena com a Luz Divina. Um indivíduo pode ser feliz no mundo porque tem o que de melhor a sociedade lhe facultou, porém ser vazio dos mais elementares valores espirituais. O que se pretende é que ele seja portador de ambos, o que significa lutar por merecê-los, conquistando o Bem em plenitude.
A religião, ao tomar o lugar da política e prometer a felicidade na terra, conduz a que já ninguém ore pedindo a santidade, a bondade e as demais virtudes beatíficas; as novas orações pedem a aceitação por parte do líder e um emprego bem remunerado. Quanto ao voluntariado, basta contribuir para instituições perfeitamente identificadas pelas novas redes económico-sociais, cujos dirigentes são criteriosamente escolhidos por estas pseudo-religiões.
Desta forma, as religiões e as igrejas disputam entre si os melhores lugares na sociedade rendida ao poder económico e, consequentemente, vendem tudo a quem quer comprar: já não apenas estatuetas dos seres devocionais ou outros artigos sacros, mas armas, pornografia, prostituição, droga, entre outros produtos similares. Traficam influências, desenvolvem o compadrio, manipulam as mentes. E ainda que possamos dizer que desde sempre o tenham feito e que agora tudo está mais divulgado, o certo é que não nos podemos ingenuamente deixar manipular por tal posição. É que, caso não tenham alguns em consideração, a complexidade social implica um aprimoramento da moral e da ética. Somos confrontados todos os dias com situações novas, ou pelo menos com novas apresentações de um mesmo problema. A ideia de progresso espiritual não é apanágio desta ou daquela igreja ou religião. O progresso espiritual é uma constante dentro de todos os grupos religiosos e do qual não podem prescindir.
Se a política trata das coisas da terra rumo à felicidade, a religião trata das coisas do espírito rumo a Deus. A política tem um fim, a religião tem um princípio. É que encaminhar as almas para Deus não é um fim, porque Deus não é um fim. Deus é um eterno princípio.
Com tudo isto, estão a surgir novas formas de fé e com elas novas formas de estar na religião, portadoras de novos conceitos de igreja. São as organizações, não já filhas da polis nem da cidade cosmopolita, mas de um espaço aldeão globalizado. Na ausência de um pastor que as encaminhe para Deus, são dirigidas por líderes que lhes prometem a terra, pois que, de um ponto de vista da espiritualidade, já ninguém acredita em ninguém. Cada um tornou-se pastor de si próprio, o que é tão nocivo como se, de repente, todos tornassem médicos de si mesmos e automedicassem. Há excepções? Mau seria se as não houvesse, mas estão silenciadas em quase todos os grupos religiosos.
Tudo isto está a conduzir a picos de fundamentalismo preocupantes, pois o senso comum religioso é tão perigoso como outro qualquer, uma vez que há quem tente com todas as forças impedir o contágio benéfico de outras ideologias religiosas, recorrendo, se necessário, à força. Quanto ao fundamentalismo, ele tem aspectos positivos, se encarado como aquilo que verdadeiramente é: o regresso aos fundamentos, mas isso é outra coisa de que a poucos interessa falar.
Esta agonia religiosa, a pior que se pode ter, faz das religiões movimentos sem Deus, sem fé, sem respeito pelo Homem e onde o nome Deus é usado em vão. Tornaram-se redutíveis, mesquinhas, interesseiras. No entanto, muitos tentam impôr-se a esta realidade. São os novos perseguidos, os isolados na sua fé, o novos hereges, mas que muito nos podem legar.
Com a morte da política vão-se os valores da laicidade, que tão caros nos são, tais como a Saúde e a Educação ao serviço de todos, o direito à liberdade religiosa e ao respectivo discurso emancipado, a defesa das minorias, etc. Isto significa ainda que foi iniciado todo um processo de silenciamento, em que pensar é uma actividade perigosa, a começar no seio das próprias religiões onde quem pensar de forma relativamente diferente depara-se com a possibilidade de ser excomungado.
Se alguns espíritas teimarem em fazer da Doutrina um partido político, cavam a sua sepultura, pois que o Espiritismo não é, por sua própria natureza, compatível com este estado de coisas. Há que ter em conta que a Doutrina pretende restaurar o Cristianismo Primitivo, por outras palavras, cumprir o mais fielmente possível as máximas de Jesus Cristo, enquanto o grande profeta de Deus, no entanto respeitando todos os outros, sejam eles profetas ou pensadores, como é o caso de Sócrates e Platão, de Moisés ou João Baptista, etc. O Espiritismo é uma doutrina de espírito aberto, pluralista, cuja origem se perde na noite dos tempos.
A Doutrina existe para servir e não para ser servida. Não tem interesses, sejam eles quais forem, não exerce influências de espécie alguma. Pode haver políticos espíritas, como os há de outras organizações religiosas, porém isso não significa uma organização partidária espírita.
Podemos ser felizes neste mundo? Há que perceber que, quando se fala de felicidade, em Espiritismo, não estamos a falar de um conceito político aristotélico. É claro que todo o ser humano tem direito a conquistar a felicidade no plano em que vive, como por exemplo, ter melhores condições de vida, melhor educação e todas as demais coisas a que socialmente tem direito. No entanto, quando se fala em felicidade, segundo a Doutrina, estamos a remeter o conceito para uma plenitude. Ser feliz é ser bom, é ter encontrado qualquer coisa que está acima de todas as coisas. Esta noção de felicidade é tão abrangente e tão vasta que é praticamente um chavão da Doutrina dizer que “a felicidade não é deste mundo”. Isto significa que, ainda que eu viva num país de grande justiça social, um país onde me são dadas todas as oportunidades, eu não sou totalmente feliz, por melhor que eu seja. Esta felicidade implica o outro, isto é, eu sou feliz na medida em que tudo e todos, ao meu redor, estão bem.
O objectivo social do Espiritismo é tornar o ser humano melhor e encaminhá-lo para essa plenitude. Isso só é realizável na medida em que o outro é um parceiro, um colega de caminhada, o que torna o jugo mais leve porque partilhado.
A entreajuda é tão gratificante para quem dá como para quem recebe. Uma troca de sorrisos, um brilho nos olhos constituem uma felicidade indizível. E a santidade, para um espírita, deve começar precisamente aí.
É certo que precisamos de conquistar a felicidade da terra e do céu. Mas para lá de tudo isso, é infinitamente mais importante que a terra se torne no espelho do céu. Só aí a felicidade e o bem são um só, a Plenitude.
Margarida Azevedo
____________________________________
Bibliografia aconselhada
ARISTÓTELES, Metafísica
_____________, Política
Novo Testamento: Mt 5:1; 9:8; 10;15:1; 20:29; 22:41; 23:1; 24;1
(entre outras cit.) Mc 2:2; 2:13; 4:1; 4:36; 5:31; 6:1; 6:33; 6:45; 7:14,17; 8:1; 8:27; 9:2,14; 15:40;
Lc 8:3; 9:1-11; 10:1-6
Jo 12:1-8
KARDEC, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Introdução; cap. I; XXI.
________, O Livro dos Espíritos, Livro Terceiro, cap.I;VII; VIII; X. Livro Quarto, cap. I, Penas e Gozos Terrenos, I Felicidade e Infelicidade Relativas.