DISGRAFIA, UM PROBLEMA PSIQUIÁTRICO DE SOLUÇÃO POLITICA
Portador de problema e complexidade, o ser humano transporta consigo várias formas de os manifestar, formas essas que são inatas, intransmissíveis, irrepetíveis, portanto únicas. A Ciência, obviamente, agrupa-as segundo apresentações semelhantes, baseada em análises quantitativas, como por exemplo a indispensável leitura estatística.
Contudo, na impossibilidade de contabilizar parte significativa das nuanças mais singulares, estatisticamente pouco ou nada relevantes, um número considerável de problemas ficam sem resposta. A disgrafia é um deles.
Em que consiste? A disgrafia consiste na total ilegibilidade da letra.
Trata-se de um sintoma bastante perturbador uma vez que não depende de medicação (não há fármacos para ter uma letra legível), torna o paciente duplamente rejeitado pois que veio agravar a sintomatologia, tornando-se mais um problema, além de complexo, inesperado e fora de controlo.
A disgrafia, que vai muito para além do que o senso comum chama “escrever mal”, é sintoma de que alguma coisa não está bem no indivíduo e que carece de análise pormenorizada, atenta e rápida. Quanto mais depressa for detectada melhor e mais eficazmente pode ser ultrapassada.
Por exemplo, se o corpo, através da singularidade dos seus traços e linhas como são a configuração das unhas, o tipo de pele, mais húmida, mais ou menos seca, mais macia ou mais áspera; a massa muscular mais densa ou mais franzina, mais ou menos flácida, características que dividem os indivíduos em endomorfos (muito gordos), mesomorfos (quantidade de massa muscular mediana) e hectomorfos (massa muscular muito reduzida ou indivíduos excessivamente magros); se a linguagem e o gesto constituem igualmente um vasto material auxiliar de análise, pois são formas de “mostrar” um psiquismo que de alguma forma traduz o modo como o indivíduo está no mundo, como o define, como se relaciona com ele afectivamente, não são os únicos e como tal não abrangem a totalidade da observação. Outros elementos terão que ser introduzidos, sendo imperioso que o analista desperte para novas observações.
Dito de outro modo, a disparidade de traços psíquicos que se manifesta no “desenho” físico de cada indivíduo não é apenas visível por meio de nuanças da voz, elementos lexicais e gesticulares, humor, ou por aquilo a que o senso comum vulgarmente chama “feitio”. A sua grafia é uma mostra tão importante como qualquer outra.
Tratando-se de uma situação de total ilegibilidade, se não for corrigida a tempo, fica para o resto da vida. Não tem que ver com o tipo de vocábulos, técnica linguística, maior ou menor clareza de linguagem. Esses aspectos, entre outros, são igualmente representativos das características psíquicas do indivíduo, mas nem sempre são visíveis. Grandes escritores há que, portadores de aprimorada técnica redactorial, têm quadro de psicose, depressão, ou outros.
O quadro de disgrafia, que muito contribui para a mostragem do tipo de personalidade do indivíduo e seus problemas, e que nos últimos anos tem sido alvo de pesquisa científica, ainda que um pouco tímida quando comparada com as demais áreas, começa agora a ser analisado com a objectividade que merece, segundo determinados parâmetros que agrupamos do seguinte modo:
1. meio familiar, escolar e profissional - externos ao indivíduo;
A disgrafia surge como resultante de uma variedade enorme de situações, que, apesar de comezinhas para qualquer indivíduo, são, no entanto, intransponíveis para o paciente. Na óbvia impossibilidade de as descrever todas, fiquemo-nos pela desintegração escolar de alguns alunos em resultado de diferentes áreas de interesse das da maioria dos colegas, ou dificuldade em acompanhar o ritmo de trabalho no exercício da profissão. Estes elementos traumáticos, muito criticados pelo meio e criadores de estigma, conduzem a picos de angústia que culminam em grafias completamente ilegíveis, resultado de reacções tais como: recalcamento, revolta contra si próprio e contra o meio, sintoma de exclusão, introversão/isolamento bastante perigosos (o indivíduo pode desenvolver ideias de tal modo angustiosas que podem conduzir ao suicídio); auto-rejeição em situações como por exemplo, ser obrigado a estudar piano, porque os pais a isso o obrigam, quando gostaria de praticar karaté.
Na escola, o aluno depara com a falta de tempo para a realização das provas (para o paciente disgráfico o tempo é sempre insuficiente pois não consegue controlar/ordenar o fluxo de ideias que lhe surgem abruptamente) culminando em baixo rendimento. Quando isso acontece, o problema agrava-se na medida em que o paciente auto-culpabiliza-se, revolta-se, isola-se. Perante este quadro, a situação pode evoluir para situações drásticas, uma vez que o aluno não consegue o feedback.
No caso de um trabalhador o problema está um pouco mais disfarçado dado que, se tiver uma profissão em que esteja ao computador, a disgrafia só se manifesta quando tiver que assinar documentos ou quando, esporadicamente, tiver que manuscrever um texto.
Um outro aspecto de capital importância tem a ver com factores de violência doméstica. Crianças que viveram em lares de grandes confrontos físicos entre adultos, ou que foram espancadas com extrema violência, que eram vulgarmente mandadas calar por serem mais novas, ou simplesmente por serem crianças; a desatenção para com as manifestações de desagrado da criança por alguma coisa que tenha acontecido e que para ela era importante, mas irrelevante para o adulto, pode conduzir a distúrbios de ordem gráfica.
Estes e outros factores são geradores de processos de clivagem, ruptura com o meio, desintegração e isolamento, marginalização, evoluindo para quadros depressivos e de ansiedade que se manifestam, entre outros, em indisciplina; no ambiente de trabalho, o indivíduo torna-se de difícil trato, nada está bem, tudo critica.
2. afectividade, objectivos, os mecanismos de concretização dos mesmos - internos ao indivíduo.
Na sequência do que acabámos de referir, há indivíduos que tomam uma atitude diferente. Verificam que a grafia piora, esforçam-se por corrigi-la, porém não o conseguem. Sem o saber, estão a combater o resultado, não a raíz do problema. Daí que, como em qualquer outra sintomatologia, não cabe ao paciente “tratar” o problema, nem tão pouco desenvolver a capacidade de viver com ele, se tal for imperioso. Tudo isso requer meios técnicos levados a efeito por especialistas. A acção da vontade é sempre insuficiente. Ela é apenas, e já não é pouco, um móbil da acção terapêutica, mas não o tratamento na sua totalidade. Factores inconscientes impõem-se e o paciente precisa de todo o apoio. Essa tarefa é para o analista.
Outro factor insere-se directamente com a vivência afectiva. O indivíduo não consegue relacionar-se com ninguém, possui uma baixa autoestima, autoexcluindo-se; por outro lado, tomando uma aparência contrária, desenvolve traços de inacessibilidade social ao criar padrões de uma suposta autoestima aparentemente tão elevada que chega a atingir capacidades de chefia e liderança inaceitáveis pelos colegas, que transformou em subalternos silenciados. São as vulgares apresentações de indivíduos que pretendem exibir-se, sobrepor-se, evidenciar-se, pôr-se em relevância sempre que o meio lhes pareça favorável, mas sem que o factor competência, formação ética, respeito, etc., sejam tidos em consideração. São os falsos líderes.
Porém, a disgrafia não surge apenas em pacientes que manifestam um quadro depressivo, de ansiedade, de frustração, dislexia, falta de afecto, etc. Ela resulta, nalguns casos, da própria medicação. O tratamento psiquiátrico não provoca apenas sintomas como aumento de peso, sonolência, alterações psico-motoras, reflexológicas, cognitivas, etc. A medicação pode provocar também alterações da grafia. Como? Inserida no quadro de contraindicações ou efeitos colaterais do medicamento. Exemplo: O paciente está a fazer determinada medicação ansiolítica. Um dos efeitos secundários é a sonolência impedindo-o de conduzir, estudar, trabalhar, etc., culminando em índices reduzidos de produtividade. Vendo-se limitado para atingir os objectivos que lhe são naturalmente exigidos ou que ele próprio se auto-propôe, entra em angústia. É o caso de alunos que, ao dormirem 12 a 15 horas diárias, baixam as notas porque não conseguem acompanhar o ritmo das aulas, por um lado, e por outro o punho não acompanha o turbilhão de ideias que surgem em catadupa, desordenadas e fugazes, de tal forma que o escrevente começa a redigir demasiado depressa para que as ideias não escapem (de um modo geral escreve textos muito riscados, com letras muito grandes e irregulares, muito juntas ou muito espaçadas).
Outro exemplo muito comum é o do indivíduo com quadro de alucinação ou de problemas com a realidade. Quando não consegue superar as barreiras do meio; quando a integração no ambiente familiar, escolar ou profissional falha, conduzindo-o ao isolamento; quando tem dificuldade em concretizar objectivos tais como fazer-se aceitar na sua singularidade, gostos e tendências; quando não satisfaz espectativas ou possui comportamentos fora da norma, o modo de escrever pode evoluir para um quadro disgráfico.
Assim, através da grafia o indivíduo fala muito de si próprio, dos seus recalcamentos, insegurança, remete o analista para o seu passado, mais ou menos recente, entre outros, mas sempre para características particulares e que terão escapado aquando da observação de outros elementos da análise.
Quais as saídas possíveis para a disgrafia, socialmente falando?
Seja uma situação inata ou adquirida, e com o objectivo de colmatar o problema da forma mais eficaz, os alunos disgráficos deviam fazer os testes e os exames por computador. Aliás, com disgrafia ou não, é para essa realidade que nós caminhamos. Se tudo está a ser processado por computador, as receitas médicas, os processos dos tribunais, não se percebe porque é que os testes e exames não o são ainda. Além de ser mais fácil e rápido de ler, facilita uma maior justiça na classificação.
Ora, esta resolução passa pelas políticas educativas que, paradoxalmente, ainda não despertaram com veemência para a informatização, apesar de a implementarem. Se se pretende uma Escola inclusiva, se o Ensino está ao serviço de todos os cidadãos, independentemente das suas particularidades, então há que implementar uma filosofia de escola onde todos se sintam inseridos.
Isto significa que, ao fazerem o exame por computador, todos os alunos estão em idênticas circunstâncias, ninguém é penalizado por causa da letra e o aluno disgráfico, concretamente, não se sentirá discriminado.
Por outro lado, escrever por computador jamais irá anular o indispensável manuscrever. Sabendo utilizar os meios técnicos adequadamente, esse problema nem se coloca.
Em suma, a vontade política deve impor-se na defesa de uma sociedade de diferentes e onde as minorias têm cada vez mais expressão. Todos sabemos que a Escola é um espaço pluralista onde se começa a construir a consciência da cidadania.
Margarida Azevedo