O FUTURO DA FÉ OU A FÉ DO FUTURO
Se
estivéssemos sobre uma ponte a olhar para baixo, uma ponte sobre uma
auto-estrada, por exemplo, observaríamos automóveis a rolar nos dois sentidos
num movimento sem fim. Perguntar-nos-íamos, certamente, qual o seu destino.
A
nossa vida trilha um rumo de alguma forma idêntico. Percorremos um caminho sem
fim, nem todos no mesmo sentido, numa panóplia de objectivos, tantos quantos os
transeuntes. Por vezes, enganamo-nos e temos de mudar de caminho, às vezes até
voltar atrás e recomeçar de novo.
Se
pensarmos que, entre o infinito de combinações moleculares possíveis, eis-nos
na vida para a maior certeza que temos, para muitos a única, experimentarmos a
morte, isto dá-nos que pensar. Ora, como a razão, sózinha, parece impotente
para descortinar tais mercês, entramos no campo da fé. Esta, porém, não nos
oferece melhores perspectivas na medida em que traça horizontes
inter-estelares, projecta-nos no espaço, criando escalas de níveis comportamentais,
supostamente mais ou menos assertivos, face ao Desconhecido. Assim, voltámos ao
ponto de partida, melhor, nem de lá saímos. Por outras palavras, vivemos uma realidade
sem fim, em torno das mesmas preocupações existenciais, as dos homens das
cavernas, a saber, a luta pela sobrevivência, em dois sentidos, principalmente:
não se deixar devorar pelas feras e espantar-se com a grandiosidade da abóboda
celeste.
Entretanto
o humano vai girando entre ódios e amores; vai agindo na natureza, que foi
posta à sua mercê, diz-se, sabendo de antemão que não age para com ela da
melhor forma; vai construíndo uma segunda forma de vida, mecânica, baseada em
tecnologia cada vez mais complexa, inteligências arificiais sofisticadas, a tal
ponto que lhe dão ordens tão “perfeitas” que sem elas seria o descalabro, basta
imaginar o que seria uma cidade sem semáforos. Enfim, a nossa organização
mental, a par da social e política, está
directamente, e cada vez mais, dependente da máquina.
Mas
não só. A afectividade também. A realização pessoal, a estabilidade emocional e
conjugal, as relações sentimentais. Tome-se como exemplo um casal estéril. É
infeliz porque não consegue ter filhos, que agora se diz biológicos, tal como
os nabos e as demais hortaliças e frutas e animais... Dantes dizia-se que é
Deus que assim o entendeu e, como tal, há que aceitar o desígnio de Deus. Ora a
ciência e a tecnologia, conjuntamente, sobrepõem-se a essa vontade, e hoje só
não tem filhos quem quer. A solução é bastante diversificada: aluga uma barriga
a alguém que precisa de ganhar uns trocos jeitosos; toma drogas para fazer
aumentar a produção de óvulos ou de espermatozóides; a mulher recebe óvulos de
outra mulher, o marido exporta espermatozóides que são depositados no útero de
outra mulher, enfim, a inseminação artificial, etc.; ou então adoptam, o mais
trabalhoso, juridicamente, porque não depende do laboratório nem precisa de
ambiente aséptico, mas de passar à
lupa a vida económica e os hábitos do casal, o que não se verifica para os
anteriores, para os quais basta ter uma conta bancária bem recheada.
Assim
sendo, vamos ter uma humanidade dividida em dois: os filhos da vontade de Deus, os naturais, e os filhos da técnica, os dos
tubos de ensaio. Os primeiros com todas as nuanças que a Natureza lhes confere;
os segundos perfeitamente escolhidos segundo a engenharia genética, onde é
procurada a superlativa inteligencia e o corpo forte e perfeito, prontinhos
para ganhar a tudo o que lhes aparecer pela frente, quer os da própria
“espécie”, quer os “naturais”.
Imagine-se,
numa escola, o preenchimento de uma ficha no computador: Nome:….,; filiação:
laboratório 21, avenida 7349, Parque Tecnológico do Robot 35. Encarregado de
Educação: um casal simpático; Morada: rua dos Pregos Cabeça-de-Tremoço, n.º21,
4,ºesq., Bairro dos Campeões, 20143-111 Aço Inoxidável.
Porém,
continuamos sem saber o que é o Cristianismo, não superámos os textos do Antigo
Israel, estamos exactamente ao mesmo nível dos homens e mulheres da Bíblia
Hebraica, continuamos sem saber quem somos, … e, a continuar assim, o ser
humano está cada vez mais longe de o saber. A máquina está a abafa-lo e a
conduzir à desvaloração dessa pesquisa. Por outro lado, ter que comer tornou-se
o mais importante, num mundo onde a pobreza e a fome estão a tomar proporções
assustadoras. Este pormenor há muito que devia de ter sido superado, pois a
sobrevivência há muito que devia estar fora das nossas preocupações. Por outras
palavras, a máquina criou a ilusão de que estamos diferentes dos homens das
cavernas, mais compreensivos, mais unidos, mais civilizados. Puro engano.
O
Evangelho tornou-se um conjunto de textos impraticáveis, dar a outra face é
idiotia, orar actividade de velhos e, se estudado, o Novo Testamento é livro de
argumentação de fés cada vez mais fragmentadas, perdidas nas ideologias
intransigentes dos líderes religiosos.
A
máquina está a tirar os reflexos, a capacidade de pensar, está a debilitar os músculos
criando inaptidão para tarefas tão simples como subir e descer escadas. O ser
humano tornou-se uma espécie dependente de botões, geradora de virtualidades,
coleccionadora de solidões. Aquilo que poderia ser uma libertação está a
tornar-se numa praga na medida em que, se não souber impor-se, o humano não irá
suportar a solidão, tornar-se-á perigoso para si mesmo uma vez que a vida foi
relativizada enquanto valor supremo.
Pergunta-se:
qual a sustentabilidade do humano face às mudanças tão radicais da nossa
modernidade? Em que se fundamenta este desejo de perfeição tão estranho e
simultaneamente o desejo de regressar ao mundo natural, espontâneo e selvagem?
Repare-se que já não basta a questão para onde iremos, projectando-nos no para
lá, numa vida relativamente feliz ou atormentada e sequencial à vida carnal, mas,
muito incisivamente, para onde caminhamos cá deste lado.
O
mundo natural está longe de ser uma procura ecológica, apenas. É, e muito mais,
a tentativa de um regresso à vida intra-uterina, da psicanálise. É um mecanismo
de fuga face ao pânico generalizado da suspeita de estar fora de controlo, face
à máquina. Com isso, a internet tornou-se o lugar onde se expõem publicamente
os desejos mais íntimos, nomeadamente o de partilhar a vida com o desconhecido,
o oferecer-se para ser amigo de alguém, querer ser amado ainda que virtualmente.
Quem o faz pretende que a sua vida seja importante para alguém no lado de lá do
écran. É o mundo da disponibilidade sem fim.
Stephen
Hawking informa que a destruição da humanidade far-se-à de três formas: através
da inteligência artificial, porque a evolução humana é mais lenta que a tecnológica,
e é provável que as máquinas atinjam o domínio completo da humanidade; pelos
extra-terrestres, milhões de vezes mais avançados do que nós, e dominar-nos-ão
facilmente; pela agressividade dos homens, uma vez que podem acabar com a
própria humanidade através de uma guerra nuclear.
Por
isso, não é tão descabido assim que a humanidade esteja a sobrevalorar o lado
milagroso de Deus, caindo numa fé cega. Deus criou o mundo, diz a fé, mas a
razão alerta que somos os seres mais destruidores, logo os mais perigosos da
Criação.
Interrogarmos
qual o nosso comportamento para com a natureza, para com o semelhante e para
com Deus passa, efectivamente, por uma vivência da fé enquanto força
libertadora, não propriamente do mundo, porque não sabemos o que significa viver
fora dele, mas especificamente no campo do
amor.
Ainda
há quem diga, em jeito de cliché, que
no tempo tal a humanidade não tinha maturidade para comprender certas coisas e
que são chegados os tempos de serem feitas muitas revelações porque foi atingida
essa maturidade. Mas qual maturidade? Haja alguém que a defina. A nossa distância
das cavernas é a de um fio de cabelo. Continuamos sem percebeer as coisas mais
elementares, e não é por alguns não aceitarem a reencarnação que são mais
atrasados, primários ou primitivos. Como muitas outras coisas, a reencarnação
está na moda. O ocidente, ao importá-la, não a compreendeu. Não se pode
atribuir ao um passado esquecido, por graça divina, tudo o que no presente nos
acontece. A vida de hoje é também ela construtora das suas respostas,
embrenhadas na funcionalidade que o tempo impõe. Mas quem o não diz a respeito
do para lá? Kardec advertiu sabiamente, que os Espíritos não são mais que as
almas dos que por cá andaram.
Resta
saber em que medida os reencarnacionistas são mais avançados do que os seus
opositores, se possuem respostas para as nossas questões exitenciais. Dizer que
somos oriundos das estrelas, do universo sem fim, que voltamos para o mundo dos
Espíritos é não dizer nada na medida em que isso não é uma explicação, tal como
dizer que dói a cabeça não explica nada da cabeça nem do corpo. Ninguém
explica porque é que existe vida, algo
em vez de nada, porque coramos quando nos sentimos pouco avontade. Mais,
ainda que haja uma explicaçao plausível, resta sempre a questão de saber porque é que é assim.
Um
dos perigos da humanidade é dormir sobre doutrinas, encará-las como a
explicação para todas as coisas, supor que têm respostas para tudo. As nossas
doutrinas são tão passageiras como nós: nascem, vivem e morrem connosco.
Vivemos de passagem uma vida efémera num mundo emprestado, com as nossas
doutrinas aconchegantes, por vezes perigosas, quando levadas demasiado a sério.
Caracteriza-nos
o mistério, e não é aquilo em que acreditamos que nos torna melhores ou mais
sábios. Em Kardec, temos fé humana e divina. Ela é sempre fé, e as leis do
univrso são as leis do universo. O nosso acreditar nelas ou não é indiferente
ao universo. Ao Criador, é suposto ser mais importante a relação que temos uns
com os outros.
No
futuro, como será a oração? Será qualquer coisa do género (?): “ Senhor, que este robot goste de mim. Dá-me
saúde e trabalho para que eu o possa manter sem
que nada lhe falte. Amen?...”, ou será antes a continuidade do que
tem sido para muitos: “Senhor, que a cada
dia que passa eu me torne melhor. Que o mundo tenha paz e que eu seja parta
importante dessa construção. Que eu siga o exemplo dos profetas e que Jesus, o
Cristo, seja o meu guia de todas as horas?”
A
aceitação do Deus dos milagres é a de um deus da fantasia, do ilusionismo das
grandes ilusões tipo “Mulher Serrada”; o abandono do Deus dos milagres afasta
das Dulcineias, das Lenoras, de todos os poetas e dos pedidos do tipo: “Senhor, faz com que eu seja hoje melhor do
que ontem e amanhã melhor do que hoje. Sem a Tua força nunca conseguirei
sê-lo.” Que fazer? A Carta aos Gálatas ensina que, libertados por Deus para
a fé, temos a fé de livremente crer.
Se
a humanidade não sobreviver, como refere o cientista, também a sua fé não irá
sobreviver se, entretanto, não olhar para o outro como um amigo, um parceiro de
existência. E isto não é uma questão doutrinária particularista. É uma questão universal.
O
futuro da fé, a consequente sobrevivência do humano, reside no amor
incondicional pela vida, antes de mais, acreditando que ainda vamos a tempo de
salvar os almas que nos habitam, quer do ódio destruidor e bélico, quer de um
futuro de lágrimas, seja onde for neste vasto universo. O humano sem a fé é
impensável; o humano onde uma máquina pense por ele e lhe dê ordens deixa de
ser humano; o humano sem o amor pela Vida não é um crente em Deus.
Pergunta-se:
O que de nós queremos que sobreviva?
Margarida
Azevedo
Bibliografia
consultada:
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A.C., A Vida no Século XXI, Publicações
Europa-América, Mem-Martins, 1990.
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KARDEC, A., L´Evangile selon le Spiritisme, Les
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SCHROEDER,
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Ciência e Religião, Cientistas, teólogos
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Lisboa, 1996.
WARD,
K., Deus, Fé e o Novo Milénio, A crença
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__________,
Deus, o Acaso e a Necessidade, A resposta
ao “GENE EGOÍSTA”e ao “RELOJOEIRO CEGO” de RICHARD DAWKINGS, Publicações
Europa-América, Mem-Martins, 1998.
Novo
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de ALMEIDA, J.F.
Sites:
https://www.youtube.com/watch?v=cn2BMXpDm5E
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/24/ciencia/1443106788_324837.html