terça-feira, fevereiro 25, 2020

A Máscara Tapa o Corpo, Mas Revela a Alma




            Os filósofos gregos da Antiguidade diziam que a verdadeira natureza das coisas gosta de ocultar-se. Só que o oculto, para ser oculto, tem que revelar alguma coisa, caso contrário não seria possível dar notícia dele. Ora, nesse jogo entre oculto e revelação temos o Homem que é quem, por natureza, mais gosta de o fazer.
            Se tomarmos como exemplo a linguagem, temos o símbolo, as formas de estilo, a poesia, as epopeias que vão contando a história uma inter-acção entre humanos e deuses; mas se nos virarmos para a História, então temos as lutas, guerras, revoluções movidas por forças interiores inexplicáveis. Porém, se tomarmos os sonhos como referência, então é aí que tudo começa.
            O onírico é um dos traços mais fortes do edifício psicológico e espiritual, construindo o sentido da vida em camadas que se vão sobrepondo com o fim de trazer felicidade. Ou seja, mais que conseguir concretizar um sonho é dizer que se sonhou e com quê.
            E aqui entra a máscara como esse oculto que se esconde e se revela. Tapar o corpo e o rosto, trajá-lo de uma indumentária fora do comum, estranha, movimentar o corpo em dança, tudo isso são indícios reveladores de uma vivência que se não aprendeu em sociedade,  mimetismo de uma realidade, tão real como a social, mas a que só dessa forma  se tem acesso.
            Dizer que é uma força do psiquismo, embora seja algo verdade, não o é de todo. A força que assim se revela impõe-se à própria pessoa, muito embora  a use enquanto corpo metafórico. Por exemplo, “este corpo mascarado é o meu corpo que é tão meu na medida em que é doutrem, disto que se manifesta.” A máscara também é, como se vê, uma cilada: “Onde estou eu e onde está aquela coisa que se manifesta?” A máscara é uma linguagem que manifesta duas realidades, a do corpo e a de outra coisa.
            Usar a máscara para se esconder totalmente é completamente impossível porque a escolha não é arbitrária. Mascarar-se de um boneco estranho, desfilar pelas ruas ao som de tambores é revelador de uma espiritualidade incisiva e forte, presença de algo que quer ou está a dizer alguma coisa.
            Estar socializado, contrariamente ao que muitos pensam, não estar des-mascarado. Muito pelo contrário. Trata-se de sobrepor uma máscara a outra, a do social que se impõe com toda a força, e a escolhida pelo socializado como forma de integração. A escolhida por ele, no entanto, revela-o sempre, o que significa que é impossível viver completamente oculto da sociedade e esta, enquanto tal, tem que estar receptivàs particularidades.
            Mas escolher a máscara não é fácil, tal como não é fácil escolher o modo de a usar nem o momento. Para isso, inteligentemente, foram criados momentos mais especiais do que outros. O Carnaval e o o Halloween, com toda a sua riqueza, são desses momentos, talvez os mais reveladores de todos. Eles visam exorcizar o medo do oculto, do terrífico, do invisível, do incomensurável, do ilícito; pretendem impôr-se pelo desmedido, o sem fim de um tempo muito longínquo, ma fundura sem princípio e sem fim. Eles são o atemporal, amoral, a exclusão do juízo de valor.
            O religioso carece desta máscara para existir. Um ritual, qualquer que ele seja, é sempre um exorcismo; a organização religiosa apenas e tão somente uma forma peculiar de o interpretar. Daí a importância da máscara, que faz remontar ao tempo do profeta ou do deus, num mimetismo que visa transportar o crente a esse tempo, a esse exemplo de espiritualidade e de vivência que se materializa no plano terreal.
            No religioso, a máscara pode ser o paramento, um modo de o crente se apresentar no recinto do ritual, templo ou garagem, por exemplo, a importância é a mesma, como pode ser a própria liturgia, o vastíssimo campo simbólico, a alegoria, a metáfora, o mito; a música, os gritos ou os cânticos, as danças ou a imobilidade; os alimentos, as comunhões, etc. È o campo da mimética como meio de transporte a outras vivências, muito antigas, tão antigas que transcendem o próprio mundo cujo acesso só é possível mascarado.
            Em suma, a máscara é reveladora de um “eu” qualquer, agigantado, maximizado, que afirma e simultaneamente nega uma realidade que se manifesta na convergência de um corpo enquanto mecanismo vivo, anímico e finito, mas que, pela acção da mesma se torna infinito. A máscara maximiza o corpo escondendo-o, ao cobri-lo, mas revela a natureza da alma que a enverga. A máscara somos nós no mais íntimo de nós mesmos, porque ela é o que é autenticamente. Usando o corpo e simultaneamente negando-o, é a alma que enverga a máscara.

            Margarida  Azevedo

domingo, fevereiro 16, 2020

VOLTANDO AO GÉNERO





 O problema é vastíssimo. Senão vejamos. Muito longe de ficar circunscrito a questões de natureza sexual, até bem há pouco tempo identitárias de homem e de mulher, masculino e feminino, ou conflitos psicológicos, afirmação de propósitos de vida considerados desviantes, o género bípede primata homem/mulher vai mais longe. O processo em curso, de empobrecimento do ser humano mas cheio de virtuosismos para muitos, com o nome de liberdade de identidade de género, contempla também uma identificação  com o reino animal.
            Cansado de ser humano, desgostoso com a sua espécie e/ou com a sua geração, quem o desejar tem o direito de rejeitar a idade, ou de se identificar com o animal da sua eleição. Assim, se um dia alguém chegar ao seu posto de trabalho e disser aos colegas, contente e feliz da vida: “ A partir de hoje sou uma centopeia!”, não se admire nem julgue que está perante um distúrbio mental, um desajuste nervoso, ou um impulso neurótico. Não é esquizofrenia, nem bipolaridade, nem qualquer outra coisa com nome pomposo. Não, não. Está perante uma nova apresentação de um qualquer género masculino ou feminino, muito feliz porque já tem liberdade, finalmente, de se apresentar como verdadeiramente é. Muito curioso, de facto.
            O contrário também se verifica. Um homem pode, a dada altura, dizer que é uma menina de cinco ou seis anos e comportar-se como tal. Pedir para ser adoptada, querer um papá ou uma mamã porque está sozinha no mundo. E não falta quem a adopte. Há sempre alguém que, por saudosismo ou por outra coisa qualquer, esteja ansioso de pôr lacinhos no cabelo de alguém muito pequenino, ainda que com bigode,vestidinhos airozinhos, ou calções com pistolas à cintura para brincar aos cowboys, e levar a passear ao parque e comprar um gelado à criancinha que até já pode ter maminhas. Pois é, a menina que vai pela mão pode ser um homem de quarenta anos ou um idoso de oitenta e tal, ou então uma jovem de vinte. Isso não quer dizer nada porque estão todos muito felizes.
            “Como definir ou distinguir o patológico da sanidade mental?” Por outras palavras: O que é estar bom da cabeça? Se esta questão foi sempre difícil, agora é intransponível, porque se o factor socialização foi uma das determinantes para a inteligibilidade da complexa definição, agora é o social que se por ventura não aceitar tal comportamento está em situação de exclusão, logo, doente.
 Se o mal está em quem o vê, diz-se com algum acerto, a distinção existencial entre o patológico e o saudável está em quem a vê, naturalmente. Andar vestido de burro passeando-se pelas ruas é tão natural como andar de fato ou de t-shirt e calças de ganga. Quem fôr contra isto, evidentemente, não se diz que é fascista porque a palavra caiu em desuso e seria muito forte, diz-se antes que é xenófobo, ou então que sofre de um desajuste sociológico de propensão separatista e desintegracionista, do tipo psicótico, defensor do passado, logo um perigo para a sociedade, um maluco qualquer. Numa palavra, estupidificante.
            Dizem por aí os entendidos nesta matéria, que se uma pessoa cumpre os objectivos laborais, se faz o que lhe é pedido, se cumpre as regas do trabalho, então é porque está bem, isto é, está bom da cabeça, muito embora se diga uma aranha ou um crocodilo, isso não interessa para nada. Se, contrariamente, não se identifica com nenhum animal, se se afirma como homem ou mulher, sexo feminino ou masculino, no sentido tradicional dos termos, arcaico, portanto, mas não cumpre os requisitos laborais, então ter-se-á que investigar o facto pois é-se bem capaz de estar em presença de uma pessoa que não regula bem. Por outras palavras, a preguiça ou a incompetência passaram para o estatuto de género, animal homem/mulher indefinidos que subverte(m) as leis e as boas práticas do trabalho. .
            Este expoente máximo de democracia, este podium de valoração do humano, este problema característico do Primeiro Mundo, pode muito bem chegar à tabela salarial. Assim, o cavalo é pago a fardos de palha, o caracol a folhas de alface, o canário a alpista.
            Dirão os espiritualistas convictos, no alto da sua sapiência, que tudo isso pode ser muito natural pois os seres humanos estão ainda muito ligados ás suas origens ancestrais do reino animal. Assim sendo, ter-se-á muita dificuldade em distinguir a burrice do burro, isto é, aquilo que faz com que o burro seja burro, questão de raízes aristotélicas, mas deturpada, animal sóbrio e inteligente, que pasta pelos campos, do colega de trabalho que com ele se identifica e firma o nariz, perdão, o focinho ou o bico, no monitor. Qual dos dois é mais burro, ou o que é que há do burro no indivíduo que está um dia inteiro ao computador, num banco, por exemplo, e que o identifica com o que se passeia pelos campos? Imagine-se um frente ao outro.
            E com isto se vão passando os dias e as noites, num mundo de contrastes cada vez maiores, de escravatura no pico mais alto de sempre, segundo antropólogos alemães, de miséria a crescer, de riqueza desmesurada e doentia de uns quantos, esses sim, humanos que envergonham a própria espécie. Assim se vai vivendo, criando falsos conceitos de tolerância, falsos direitos, e assim se vai fazendo das mentiras verdades e das verdades mentiras.
            É a falta de objectivos sãos e altruístas, o desgaste de quem não espera mais nada da vida, o rebentar do balão da exploração humana, mas é, lamentavelmente, e acima de tudo, o grande falhanço das religiões, que não souberam impôr-se como forças ao serviço da humanidade mas dos seus interesses económicos e das políticas interesseiras.
            São os dirigentes religiosos, fanáticos e intolerantes, que sempre espalharam violência e agressividade, alucinados e a falarem em nome de deus, esse deus miudinho e incongruente, des-humano, um deus que não interessa a ninguém.
            Quem assume esta loucura? Quem fabrica a intolerância ao crescimento do humano como o maior dos valores? Quem responderá pelos crimes de fé? Quem assume a responsabilidade das loucuras religiosas? Ergueram-se sociedades cada vez mais complexas e elaboradas. Desenvolveu-se a Tecnologia, a Ciência trouxe novas respostas, mas o ser humano continua nas cavernas, territorial e  animalesco, de falsa fé continuamente à procura de milagres.
Onde está a fé libertadora? Se a fé não olhar para a Natureza como a sua mãe, fonte de adoração/oração, caminho sem fim, obra-prima do Criador, ela estará perdida. Podemos ler os textos reveladores desse Criador Supremo, podemos esmerar-nos em exegese, teologia, saber línguas, decompor, agrupar, reagrupar, interpretar, ler e reler, mas se o amor pela Vida não for prioritário, é tudo como o sino que tine.
É chegado o momento de perguntar: O que é que o homem fez de si mesmo? Onde está o seu universo de esperança e de glória? O que é que verdadeiramente quer? São passageiras, é um facto, mas as religiões têm que se impor, aqui e agora, como canais de ligação entre o homem e os seus desejos de felicidade. Se as religiões não mudarem de rumo, quanto às suas práticas de fé, numa resposta contígua à Ciência, geradas pelo mesmo ser, o Homem, deixarão de crescer perdem o comboio do desenvolvimento e caiem no ram-ram do ritual estéril.
O Homem não é um animal qualquer, é um ser humano, centelha divina, um ser deslumbrante. Que Deus tenha piedade dele e o ampare nas suas fragilidades de fé.


Margarida Azevedo
           
           
           
             

domingo, fevereiro 09, 2020

LIVRA-NOS,SENHOR, DE QUERERMOS CONVERTER O MUNDO



            As nossas convicções são uma maquilhagem como outra qualquer.  Estar convicto não é sinónimo de estar correcto, de ter a certeza de alguma coisa ou de estar no caminho certo. A convicção é como uma casa aparentemente muito limpa e arrumada mas que, na verdade, tem o lixo escondido debaixo do tapete.
            O convicto raramente ouve o outro; finge ouvi-lo, mas está distante, certo de que este nada ou muito pouco tem a ensinar-lhe. Não encara a diferença como uma algo natural, mas uma fraqueza de quem ainda não atingiu o seu nível.
            No campo da religiosidade, o problema agudiza-se quando as religiões do Livro, ou assim designadas habitualmente para as diferenciar das da Natureza, têm-se imposto pela violência e agressividade em nome de um propósito salvífico. É a insensatez a impor-se na sua máxima ignorância objectivando um mundo a preto e branco; é o crente a pensar que transporta consigo a ideologia que vai mudar o mundo; é o fanático que se julga a voz de Deus ou que as Entidades que se manifestam na sua doutrina são todas de luz.
            A História das Religiões, a mais ensanguentada de todas as Histórias, e são muitas as que temos, mais não tem sido que o percurso da intolerância levada a cabo por gente perturbada, distanciada das boas práticas de respeito pelo outro. A certeza de que tem dentro de si a voz de Deus, que sabe o que Deus quer e não quer, o que gosta e não gosta, tem sido, como não poderia deixar de ser, o mais bélico dos pensamentos.
            Isto conduziu a que o outro fosse perseguido na sua natural alterabilidade, a sua fé rebaixada e vista como sem sentido e o mundo, no seu todo, passasse a ser visto no espartilho de uma dualidade entre politeístas (retrógradas, atrasados e infiéis) e monoteístas (iluminados, sábios e fiéis).
            As convicções criaram o super-homem, o feliz e risonho porque já descobriu deus dentro de si, e sábio porque tem a certeza absoluta do que vai encontrar no outro lado da vida quando lá chegar, isto é, grandes prémios, grandes prazeres, tudo à grande. É de lamentar, pois o insensato desconhece que não temos a mínima noção, a mínima que seja, do que se passa no outro lado. E ainda bem, caso contrário a situação seria ainda bem pior.
            É impossível, assim parece, dissociar a Natureza de Deus e vice-versa. Criatura e Criador estão acoplados existencialmente. São noções-ferramentas com que vamos moldando a nossa vida, fazem parte de nós mesmos quais órgãos que formam o nosso corpo permitindo-lhe estar vivo.
Deus não cabe nas nossas cabeças. Descobrimo-Lo com o outro, com a Natureza, magnífica na sua diversidade. Ninguém está no mundo para converter ninguém, e as religiões fazem falta porque ainda não chegámos à fé livre. Quando a fé fôr um estado de graça, quando a fraternidade fôr a grande vivência social, quando não mais houver interesses pessoais por oposição a colectivos, quando aprender o respeito pelo Outro fôr a principal disciplina escolar, quando a Natureza fôr a grande Mãe, então atingiremos o fim das religiões. Não haverá convertidos nem ninguém para converter, nem gente a gastar o precioso tempo a estudar o modo como há-de convencer o outro a vir para a sua doutrina. Nessa altura compreender-se-á que converter significa convencer o outro à nossa mesma finitude como o fim máximo, fazendo-o abdicar de si mesmo, e que as doutrinas, todas, têm um termo. Felizmente.
A convicção é uma máscara. Só faz sentido num dado momento.

Margarida Azevedo