segunda-feira, junho 27, 2022

SE OS GRUPOS RELIGIOSOS NÃO MODIFICAREM RAPIDAMENTE OS SEUS COMPORTAMENTOS E DISCURSOS O MUNDO ESTÁ PERDIDO

Não é apenas a componente teórica que tem que se modificar e investir num discurso compatível com a complexidade dos novos tempos. A crueldade e a violência religiosas estão longe do apagão definitivo. A luta pela supremacia ideológica, pelo lugar ao sol na sociedade, o tomar as rédeas da acção social, enfim, o mundo religioso está nas mãos de discursos e práticas que pouco ou nada têm a ver com a verdadeira função salvífica, ou seja, a construção de um universo de esperança baseado na liberdade de crer, na construção de um caminho que só é possível com o outro. Crescem os movimentos pacifistas dentro e fora das mesmas, com os seus floreados, um bando de gente à procura da paz estável. Porém, na hora da verdade, a conjuntura despacha-os rapidamente para lugares decorativos. Ou seja, podemos afirmar que até hoje algo se tem feito, mas nada com uma dimensão de peso de forma a debilitar o ambiente subversivo. De igual importância, temos os materiais da natureza que são utilizados na ritualística. Vejamos: deitar florestas abaixo para utilizar a madeira na cremação, contribuindo para a desertificação e aridez dos solos; despejos de restos de materiais utilizados nos rituais nos rios e oceanos, nos campos e serras; fazer peregrinações a pé lançando as embalagens dos lanches para as bermas dos caminhos, ficando estes em autênticas lixeiras a céu aberto. Enfim, nada disto é, com toda a certeza, um acto religioso. Por outro lado, as grandes temáticas, entre elas a da fuga do inferno, entendido como um lugar nos confins terríveis do universo e do qual a Terra faz parte (mas parece que ainda não é o pior), resultou na desvaloração do nosso planeta. Com isso, o sacrificial impôs-se, a par do domínio do Homem sobre a Natureza, o que deu naquilo a que chegámos: a Vida pouco vale, porque esta não é a verdadeira vida e porque estamos de passagem. Dito de outro modo, esta casa em que vivemos é um lugar de forças maléficas, a vida que se valora, e mal, é a humana, não a Vida em si mesma, com toda a sua diversidade. O Homem é o ser superior que tudo domina, um micro-deus criado à imagem e semelhança de Deus. Vê-se o resultado. Assiste-se a uma vivência do religioso de forma desprofetizada. Os profetas têm sido esquecidos como mestres de vivência, de fé, de caminhos para Deus. Com isso, uma questão se impõe: Estaremos a viver uma crise de entendimento das mensagens proféticas? A Bíblia Hebraica chegou ao fim porque os crentes a deixaram tombar no silêncio da razão, da sensibilidade, da praxis complexa da existencialidade? A Cristã também? Ambas terão continuidade? É preciso escrever mais? Quem continuará a escrever? Ou, pelo contrário, já está tudo escrito, não há mais, acabou? Não serão os crentes que, renitentes no ego do tamanho do mundo, teimam em não aceitar a evidência da ignorância, do ridículo de pensarem em superioridades que não possuímos e com as quais as respectivas bíblias nos confrontam? Como é que nós lemos (Lc 10:26), aí é que está a grande questão. Precisamos de uma nova gramática do religioso, um novo campo lexical. É chegada a hora da verdade se impor. O ser humano tem que começar a desejar a liberdade de fé, caso contrário nunca conseguirá caminhar em ao lado do outro. Sem liberdade viveremos sempre encostados ao outro, não com ele. Deus libertou-nos para sermos livres (Gl 5:1), para deixarmos de fazer da fé uma dependência de crendices maquiavélicas ao serviço do charlatanismo. A crise de valores, com que muitos se desculpam, não é de hoje. O Primeiro e o Segundo Testamentos dão-nos disso o exemplo. Veja-se o livro de Jeremias ou Paulo em Gálatas, Actos dos Apóstolos, por exemplo. Digamos que a grande temática destes textos é precisamente a libertação humana que será, um dia, o grande acontecimento da humanidade: fusão com Deus, santificação, fraternidade. Por enquanto, ainda não temos a noção do que será uma fé totalmente livre, um crer de que já não se fala porque a maior das evidências é Deus. Por que existem as religiões? Não se sabe. Mas há binómios existenciais que lhes dão corpo: a relação do infinito com o infinito; o infinitamente pequeno e o infinitamente grande; a vida e a morte; a relação dos mortais com o Imortal; a esperança de que há algo todo Bem, Bom e Belo, infinitamente Justo; a curiosidade da morte, o que é que haverá depois; se há algo para lá desta vida, o que devo fazer e como fazer para lá chegar? A natureza tem que se tornar intocável, entenda-se, inviolável, na medida em que é uma criação de Deus, possuindo tudo o que precisamos para viver. Sem a natureza o religioso não é possível. É difícil de compreender como é que se pode desejar a felicidade, seja em que plano for e independentemente das diferentes formas de crença, sem ter em conta que primeiro está a nossa sobrevivência física e a vida do próprio planeta. E igualmente difícil compreender como o sadismo tem reinado no religioso através de torturas, interesses de toda a ordem, transmitindo aos crentes uma coisa e aos líderes outra. A avareza pelo poder, honrarias e lugares privilegiados, as manipulações das vulnerabilidades, a promessa de uma resposta para todos os problemas e de uma fusão com Deus no outro mundo, enfim, fazem das religiões um cálculo tenaz do que será a vida com Deus para aqueles que as seguem. Por outras palavras, as religiões sabem tudo, e os seus líderes os privilegiados de Deus. Teme-se o fim da religião como uma identidade espiritual e social, o fim da sua verticalidade na vivência da fé, o que é errado. Deve-se, isso sim, abraçar a vida religiosa como uma prática sempre em aberto, na procura da santificação aqui e agora, no tangível, no finito, no limite. Deve-se objectivar o fim da banalização de Deus (Ex 20:7), bem como a noção de posse do tipo “Deus é nosso, só nós O entendemos!”, a que tão bem as religiões monoteístas nos habituaram. Perguntamo-nos tantas vezes “onde está Deus neste mundo de crueldade? Deus não o pode ter feito assim!” Pois não, porque a crueldade não está no mundo que Deus criou, mas no coração humano. A banalidade e a conotação pejorativa atribuídas a Deus, a ausência de luta pela modificação interior, a fé cega e fanática, retiraram o caracter festivo da descoberta permanente de Deus em nós. Há que tornar a religião algo surpreendente. Vivemos em um sub-terrâneo cheio de verdades feitas que nem Deus nos tira. Urge uma mudança colectiva nesta sociedade que se globalizou, envolta em sistemas binários do tipo eu e os outros, ou só a minha religião ou igreja é que é boa, as outras são obra dos demónios, o que na prática faz do outro um diabo, um ser a abater. As guerras religiosas e os respectivos homicídios, até hoje, ficaram por resolver. A sociedade capitalista capitalizou as religiões. Ou são organizações lucrativas ou não interessam e estão votadas ao silêncio. O que é mais importante: defender a felicidade, ou a ambição que conduz à avareza e faz das religiões organizações ao serviço das forças capitalistas do deus cifrão? Nesta óptica, as religiões monoteístas, ou não, (temos dificuldade em perceber a diferença, mas isso será outra reflexão) continuarão a debater-se com grandes questões existenciais, a saber: O que é mais importante, a integridade humana ou o monoteísmo/politeísmo? A Natureza ou a Cultura e a Ciência? O que é determinante, aquilo em que acreditamos ou o modo como nos comportamos perante a vida e na vida? Ser crente implica uma prova da existência de Deus, do Absoluto, de que há algo que sobrevive à morte? Encontramos essa prova nas religiões? Cabe-lhes essa tarefa, ou seremos nós que nos espelhamos numa organização a que chamamos religião ou igreja, com o objectivo de que nos transfigure como a Jesus no Tabor? (O que é a transfiguração?) Conduzida a que tem sido a desejar ser anjo, entidade de luz, ser puro, etc., a humanidade tem perseguido o mais terrível dos ideais, a pior das tentações. A humanidade não pode continuar em busca de ideais que não são para ela, imaginando condutas e prazeres que não são reais. A tentação de querer ser anjo, e com ela a ilusão de que está possuído da verdade suprema, é o grande inferno deste mundo. A humanidade precisa simplesmente de se encontrar: sejamos o que nós quisermos ser enquanto homens e mulheres, porque ser homem e mulher não é uma condenação existencial. Vamos voltar a ler, mas em conjunto. Reinterpretar é fazer aparecer, dar lugar a uma nova possibilidade. Não é uma procura sobrenatural, mas uma nova visão histórico-antropológica que é, por natureza, uma novidade a cada nascer do Sol. A religião tem-se ocupado com o seu poder no mundo, não mais que o papel do insensato, aquele que se julga importante. Reinterprete-se o binómio religião/mundo, ou religião/natureza humana, aqui e agora. Por outro lado, a religião não pode reportar-se eternamente às práticas ancestrais, aos seus métodos, discursividades, forma de confecionar produtos, etc. Para isso temos o rito, um acontecimento teatralizado que lembra o tempo remoto, um tempo original, impulsionador de outra ou nova visão do mundo e/ou da vida, caracterizado por grandes acontecimentos metafísicos, extraordinários, em que o invisível tomava o lugar chefia, com poder de decisão, interferindo de forma absolutizada na vida quotidiana. Os acontecimentos históricos, perdidos na noite dos tempos, confundidos quantas vezes com as verdades de fé, são, um referencial identitário. Porém, a vida de hoje é caracterizada por clivagens geradoras de mudanças profundas. Estamos a construir uma outra realidade antropológica. Uma Entidade, com alguma evolução, hoje, jamais diria a um crente que destruísse fosse o que fosse para agradar a Deus e purificar almas e espaços, ou melhorar a vida dos crentes. Nem em nome do passado. A maior limpeza espiritual será sempre o bem-fazer, cada vez mais reportado à educação da mente humana. Já não se pergunta apenas como é que tu lês, acrescentou-se muda os teus pensamentos para começares a ler de outra forma. A leitura nunca chega ao fim, assim como a nossa modificação. Vivemos num espaço sempre em aberto, e nisso consiste o infinito finitizado dentro de nós. O que é o humano? Um portador de Deus e da Humanidade. O ritual é um elo de ligação com uma ancestralidade identitária de um povo, uma linguagem, uma cultura. Um mistério que é sempre uma memória. Porém, mercê das rápidas quão fantásticas descobertas científicas e dos avanços tecnológicos, o misterioso sofreu uma purga de tal forma que houve uma transposição do imaterial para o tangível e material, do metafísico para o físico. O religioso está a ser empurrado para a sua mesma transformação por um processo de purificação a que os líderes são renitentes. O binómio visível/invisível já não é o mesmo. A memória aprimorou-se e cresceu face à sua representação do passado, isto é, está constantemente a ser coada por uma peneira muito fina que só deixa passar um pó muito subtil. Chamemos-lhe um transfert. O sensível também tem a sua pureza, também contém a salvação. Observar uma flor e nela ver Deus tornou-se uma outra forma de oração. Deus está agora no lado de cá, como em qualquer ponto do universo plural. Deus tornou-Se percebido pela ignorância, porque a ignorância é o que de menos ridículo tem o ser humano. Só os sábios dizem que Deus está num plano muito superior. Por isso Jesus afirmou que Deus escondeu estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelou aos “que não podem falar” (Lc 10:21. Mt 11: 25), ou, dito de outro modo, “O segredo do SENHOR é para aqueles que o temem, e a sua aliança é para os levar ao conhecimento.” (Sl 25:14). O centro da religião não é Deus, mas os homens e as mulheres no caminho... O radicalismo, inconsequente e temeroso, o olhar desconfiado o outro, uma observação do mundo com frieza, uma absolutização do discurso, a criação do fosso entre homem e mulher, e superlativamente do grupo religioso face à humanidade no seu todo, que é vista como um bando de gente que perdeu o norte, numa intolerância inaceitável para com os erros humanos, eis o descalabro a que o séc. XXI está assistir. Em suma, olhares que matam, palavras que matam. Estamos cansados de matanças purificadoras das religiões, limpezas étnicas, da criação de assassinos em massa, de psicopatas, de gente que quer o mundo só para si. Esta antropologia dualista, não apenas corpo/alma, mas homem/mulher, em alguns casos numa distância abissal entre si, puro/impuro, certo/errado, anjos/demónios, nem tão pouco é bíblica. O Antigo Testamento não se apresenta em termos dicotómicos: eu não tenho um corpo, eu sou um corpo, eu não tenho uma alma, eu sou uma alma, porque corpo e alma são inseparáveis. Ninguém é bom/boa, mau/má por exclusão. A nossa luta existencial deve perseguir um ideal de encontro, connosco próprios e com o outro. Chegar à consciência dessa necessidade já é muito bom. Isso implica que urge a criação das condições necessárias para que o bem prevaleça, em mim e no mundo, porque eu sou inseparável do mundo e o mundo de mim. O bem não vence nem se impõe magicamente. Há toda uma conjuntura que tem que lhe ser favorável que começa dentro de nós. Enquanto se pensar que o bem é um prémio, um favor pago por Deus; enquanto a caridadezinha acontecer para agradar a Deus, enquanto o religioso não se impuser e se excluir dos meandros da avareza das teias do económico/financeiro, tudo continuará como o sino que tine. Não há maior manipulação que a de prometer o céu e a felicidade eternas a quem sofre, mediante o uso do outro como se de uma coisa se tratasse. Os sistemas religiosos têm que proceder a uma reorganização material/espiritual da existência humana, repensá-la historicamente mediante uma discursividade que se redescobre todos os dias perante a literalidade dos textos. Comecemos por Não matarás, que no Ocidente significa não cometerás homicídio. Enquanto uma gota de sangue escorrer, o mundo pode dizer que tem fé, que acredita em Deus, mas nunca que tem o Divino interiorizado, que Deus habita dentro de si, que a fé é um agradável silêncio; nunca poderá dizer a prática da fé se confunde com amor. O fim da religião é o seu próprio fim, ou seja, a passagem da humanidade a outra coisa, porque “questionar a existência de Deus é tão absurdo como aceitar a existência de Deus.”* Por isso temos a permanente releitura, porque não há dois dias iguais, porque Deus é sempre novo, e o Sol quando nasce é para todos. É bom lembrar. Margarida Azevedo *Joshua Ruah, https://observador.pt (26/3/2022)

quinta-feira, junho 16, 2022

UMA MOCHILINHA E UM ANIMAL DE ESTIMAÇÃO

“A raça humana terá que sair da Terra se quiser sobreviver. Stephen Hawking * “Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?” Mt 12: 48 A loucura é o móbil das grandes transformações. O que seria a vida sem essa alavanca para a expulsão da zona de conforto (expressão tão interessante), sem os impulsos delirantes? Esses momentos tanto podem ocasionar impressionantes picos de lucidez, como serem a fonte de horrores. O problema, porém não é esse, mas até quando a loucura se irá impor como o grande móbil. Até quando a razão irá continuar a falhar, a coerência; até quando a avareza da ambição deshumanizante será justificada pelo passado, pela História que é reescrita sem fundamentos consistentes, pelo efeito de uma memória que lembra o passado como exclusivamente um mal?! Falamos tanto de experiências ditas metafísicas como de limpezas étnicas, ideologias políticas e religiosas homicidas, prontas a abater tudo o que se lhes opor em nome de um super-poder de que só os avaros são capazes. Os outros, os anónimos, os que pagam com a vida, numa fusão entre realidade e imaginário, peões no silêncio próprio de quem está no terreno e é protagonista a sério, caiem rapidamente na esperança psicológica de que isto vai acabar depressa, que algo milagroso vai acontecer, que Deus a tudo provê e que vai matar os maus. É nesses momentos que se veem cair por terra as grandes e belas teorias, calam-se os discursos e máximas, moralidades, éticas, doutrinas religiosas de toda a ordem, políticas nem se fala. Tudo cai, findam as pregações. Destroem-se os símbolos, significantes e significados confundem-se, fecham-se os livros, param as investigações. Resta a Arte. O ser humano perdeu o sentido do importante, do indispensável como uma virtude. Até perdeu o sentido da doce ignorância no facto incontestável de que não é capaz, porque não está ao seu alcance, de ter conhecimento de tudo o que se passa no mundo, nem em tempo real nem em diferido. Ainda que esteja munido do melhor dos telemóveis, do computador mais rápido, o mundo total não lhe é possível porque a realidade é outra coisa. Não o conseguir tornou-se uma angústia baseada na dependência: da máquina que sabe tudo; do limite na procura de se ilimitar; da entrega total à nova escravatura como a melhor das bem-aventuranças. Mas o outro sou eu, para o eu que é o outro; não estamos no tempo, somos tempo; não estamos no mundo, somos mundo. Se há um que desmorona, desmoronamos todos. De repente, pelos motivos mais variados, deixamos tudo: por problemas de alterações climáticas, regimes políticos totalitários, escassez de recursos, nomeadamente, água, terrorismo, guerras quando e onde menos se espera. Neste inferno dantesco, à rapidez do relâmpago, tudo começa a arder. O mundo e a vida mostram-se exactamente como são: uma casca de ovo. Os haveres tombam por terra em cinza, a casa desmorona-se. Tudo fica para trás: os projectos, os desejos, as contas bancárias, as férias de sonho; a pele seca ou oleosa deixou de ser um problema, o amaciador do cabelo já não faz falta, uma humidade no tecto da sala já não tem importância alguma. Tudo fica reduzido a uma mochilinha com um pouco de nada, ao animal de estimação; proteger a família e fugir… para onde não interessa. É o trágico nu e cru a sorrir daqueles que pensam que têm alguma coisa, que são alguma coisa, que sabem alguma coisa. É urgente a implementação de um padrão de valores real, uma fé ecológica, uma paz com a Natureza. Mais urgente ainda implementar o civismo, o equilíbrio, estabelecer normas que a todos cheguem. Suplantar interesses avaros de tudo querer só para si, do sadismo de ser indiferente à miséria com o objectivo de reduzir o outro a nada. O Cristianismo pica pedra há 2000 anos a pregar milagres, a construir santos, o que dá dinheiro para alguns grupos, na suposta procura da resolução transcendente do que só o humano pode resolver na sua materialidade. Por que está o mundo a revoltar-se contra ele, reescrevendo, e mal, a sua história? Porque a sua doutrina, os evangelhos e a vida de Jesus são totalmente incompatíveis entre si. Criou-se um fosso entre os textos e a prática religiosa; outro entre os que dirigem e os crentes, cuja prática e objectivos não falam a mesma linguagem. Não é de moralidades que o Cristianismo precisa, já chega de falácias. Precisa-se, para ontem, de fraternização, universalização, Amor. Alfred Loisy disse que Jesus pregou o Reino de Deus e o que apareceu foi a Igreja**. Interessante. Condenações, homicídios, impunidades, super-poderes, política e influências sem fim. Ainda hoje, em Portugal, se um grupo espírita quiser registar o Centro espírita, ou uma instituição de acção social, filantrópica, vê-se em papos de aranha. A maioria são chumbadas. A discursividade cristã, dos alguns cristãos, não se impôs pela resistência ao Mal, mas criou outro mal: um colégio sacrificial como forma de o combater, tipo luta de titãs. Andar com uma pedra no sapato ou chicotear-se não é nada agradável. Porém, se com isso for prometida a conquista do céu para sempre, quem o não fará? Lamentavelmente, ninguém se lembrou de apedrejar a mentira e as calúnias, os enredos e intrigas politiqueiras, ninguém se lembrou de chicotear a indomável inveja, o ciúme ou o ódio. Quanto aos planos sacrificiais, estes não surtiram efeito e a deshumanidade apenas tomou outro rosto, vestiu-se com outras cores, porque ainda não se queimou o medo, nem destruiu o egoísmo do eu sacrificial em prol da partilha libertadora, a começar num respeito total pelo corpo, templo do Espírito. Por mais e maiores que sejam as razões políticas para a guerra que está a acontecer na Europa, ela representa acima de tudo o chumbo do Cristianismo. Onde está o que tanto pregam nos púlpitos, arrogantemente como verdades universais, mas que, na prática, não passam de rudes formas de fé? O cristão jamais deve pactuar com interesses económicos escusos. O económico faz parte da vida como a fé. Têm muito em comum, isto é, carecem de vigilância atenta, crítica e reflexão. Se isso ainda não acontece, então é porque o Cristianismo ainda não existe, tão simplesmente porque ainda não foi implementado o amor universal como a única forma de paz estável, o Reino de Deus ainda não é o valor máximo, a linguagem de Jesus uma utopia. As florestas ardem, os animais extinguem-se, as guerras dizimam, o sofrimento impõe-se e fala mais alto. De mochila às costas de parcos haveres e com muita esperança, de animal de estimação como a companhia fiel, aí se vai correr mundo. Para algum lado se há-de ir, a pernoitar como as toupeiras, debaixo da terra, em caves e búnqueres. Os oportunistas, esses, estão felizes. Jogam em todas as frentes: inflaccionam os preços dos produtos, traficam mulheres e crianças, escravizam tudo o que lhes aparecer pela frente, impunes. Impõe-se cruamente como o valor máximo: “Vão-se os anéis, fiquem os dedos,”. Nada mais a propósito. A tragédia da injustiça tornou o mundo peregrino à força. Não porque procura Deus em outro lugar, lá muito longe, mas na procura da salvaguarda da vida. Também não é, consequentemente, na procura da imortalidade, porque essa não pertence à Terra, mas na terra, à procura do prolongamento da vida na imortalidade do Bem, pois essa luta já faz parte da Terra, ainda que incipiente, residente algures no coração de um voluntário só voluntário, apenas humano, crente ou não em Deus, mas de certeza crente na humanidade que ainda é possível salvar. Nesta fusão entre rico e pobre, a oração é o que resta no traço que é comum a todos: sobreviver. Deixar a casa, o trabalho, a escola, os hobbies, enfim, é entrar no vazio e descobrir novos sentidos da vida noutros rostos, com outros idiomas, novas paisagens, novas famílias. Os lares abrem as suas portas, os corações escancaram-se, o espanto de um amor que se desconhecia manifesta-se nos sorrisos e nos abraços dos desconhecidos. O conceito de família expande-se, efectivamente. “Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos?”, já não é apenas uma abstracção, mas uma vivência bem real numa espiritualidade bem visível num pacote de bolachas ou numa tigela de sopa quentinha no outro lado da fronteira. O vazio vai-se preenchendo. Basta apenas desprender-se, desvalorar, despojar-se do seu que é uma falsa posse. A guerra cria a ressurreição, o ressurgir em qualquer outro lugar, em espírito ou em corpo, transportando na mochilinha os haveres materiais e espirituais, parcos mas é o que há. Quem sabe se nós, ao reencarnarmos aqui, não seremos também refugiados, fugidos de algum lugar sombrio, de um Adamastor fero e medonho, à procura de acalmar a sede em uma fonte de água cristalina, preferindo o desconhecido e a tempestade à monstruosidade impiedosa?! Somos seres que vimos de algum lugar, perdidos no tempo, em fuga, não tenhamos dúvidas, para quem as entranhas da terra ainda parece ser o mais seguro. Não admira, é dela que somos feitos, e por isso só ela nos pode acolher. Margarida Azevedo *https://brasil.elpais.com **https://www.dn.pt