quinta-feira, abril 25, 2024

25 de ABRIL - 50 ANOS

 



            Tinha eu 13 anos. Lembro-me como se fosse hoje, afinal estes 50 anos passaram tão depressa. A manhã estava bonita, o sol brilhava no céu muito azul e a temperatura do ar era suavemente fresca. Foi no Baixo-Alentejo, vivi por lá 10 anos.

            Pouco tempo depois, houve profundas convulsões sociais. Terras e casas de grandes proprietários foram apanhadas. Instalou-se um período de medo de falar contra essas atitudes, desconfiança e perseguição. Tudo o que se dissesse ou fizesse tinha que ser meticulosamente pensado porque caía no risco de ser considerado fascismo, e ninguém queria passar por fascista, ainda apor cima sem razão. Percebi que todos estavam felizes com a Revolução, porém segundo caminhos diferentes.

            Lembro-me de no dia 25 de Abril as pessoas falarem em cochicho. “Diz-se que lá para Lisboa há uma revolução de sangue e mandam as pessoas estar em casa.” Isto de manhã. Mas lá para a tarde, o pessoal veio para a rua. Os mais afoitos gritavam slogans como “Morte à P.I.D.E.”, mas nenhum slogan superou este “O povo unido jamais será vencido”.

            Lembro-me de a minha avó ter um AVC ligeiro que lhe apanhou a fala, motivado pelo medo constante de que nos apanhassem a casa onde vivíamos, ela, a minha madrinha e eu, porque era uma casa muito grande. Também foi nesta altura que percebi porque é que a minha família materna estava quase toda no estrangeiro: um, por motivos políticos, outros, na procura de melhores condições de vida.

            Depois vieram os retornados. Eu não sabia que na aldeia havia tanta gente com família em África. A única coisa que eu sabia era o sobressalto em que as famílias viviam quando se aproximava a idade de os filhos irem à tropa. Toda a gente temia a guerra do Ultramar, principalmente a Guiné. Dizia-se que era o pior. Lembro-me do luto carregado de famílias que perdiam os filhos na guerra lá fora. Os gritos naqueles funerais ainda hoje os tenho na memória; famílias destroçadas no vazio, namoradas de coração partido e filhos que não nasceram, madrinhas de guerra inconsoláveis. Os retornados, esses, eram mal vistos por muitos, geralmente do Partido Comunista, porque “andaram a explorar pretos”, era assim que diziam, muito embora eles dissessem que não, que em África trabalhavam no comércio, na indústria, nos serviços e na educação. Porém, havia quem não os acreditasse, chamando-lhes fascistas.

            Como havia saneamentos por todo o lado, a Igreja não escapou. A minha madrinha era presidente da legião de Maria lá da aldeia. Quiseram saneá-la, mas como eles não percebiam nada da Legião, ela naturalmente resistiu. As missas passaram a ser mais politizadas, e a palavra liberdade surgia com a regularidade que o padre achava conveniente. Percebi isso mais tarde.

            Enfim, entre clivagens sociais, conflitos, discórdias e lutas renhidas por uma vida melhor, tudo se foi equilibrando com o tempo. Surgiram os casamentos entre ricos e pobres, sem que ninguém precisasse de fugir pelo receio de desagradar à família, muito embora o desagrado ainda prevalecesse em alguns casos, e começou a haver divórcios com frequência.

            Em suma, o 25 de Abril é uma daquelas datas que se sobrepõem à própria História. É um kairós que atravessa a normal e mais comum cronologia. É um momento que só pode acontecer aqui e agora, que não se pode deixar passar, que implica um sentido de oportunidade apuradíssimo, uma mestria. Eu diria que é a páscoa política e social de Portugal, a grande passagem da opressão para a democracia.

            Celebrar o 25 de Abril é celebrar a sabedoria de mestres, a coragem, a vontade férrea de vencer sem medalhas, mas com flores, uma flor, um simples cravo vermelho. Quantas vezes neste mundo a mudança se poderia celebrar assim?! É o mesmo que dizer: “ A revolução começou no jardim”, que é onde as crianças brincam, os idosos descansam e os namorados se abraçam.

            Nos tempos que correm, a democracia está cada vez mais fragilizada, o que leva a que muitos culpabilizem, erroneamente, o 25 de Abril. A Revolução nada tem a ver com a falta de carácter, com aqueles que vendem até a alma por qualquer preço, fazendo perigar os ideais mais nobres da vida. A democracia não se compraz com o politicamente correcto, uma forma de fascização como outra qualquer, um impeditivo do progresso, uma autêntica aberração política. Não. O politicamente correcto é o silenciar dos cidadãos, o calar perante a injustiça e o erro crasso, a perda do direito de discordar.

            A hora não é de cruzar os braços, mas de dar continuidade aos ideais de que um simples cravo vermelho se tornou símbolo identitário, a voz poética de um povo cuja senha revolucionária foi uma canção que o representou num festival europeu.

            25 de Abril, sempre. E… tragam os poetas.

            Margarida Azevedo

domingo, abril 21, 2024

AS MANIFESTAÇÕES CONTRA O RACISMO SÃO MANIFESTAÇÕES RACISTAS

 


O carácter baseia-se em ações virtuosas que são fundamentadas na verdade. A verdade é, portanto, a fonte e a base fundamental para todas as coisas que são boas e grandiosas. Assim, a busca resoluta e sem medo do ideal da verdade e da conduta correta é a chave da verdadeira saúde, assim como de tudo o resto.

Gandhi*

 

            Com 50 anos de doutrinação política deformadora, onde abundam os clichés e perigosamente dualista, isto é, dualidades do tipo bom/mau, branco/preto, azul/verde, a sociedade foi sedimentando atitudes e modos de estar que, chegados ao século XXI, estão a dar os seus frutos amargos e nocivos.

            Doutrinados para não pensar, tentam apagar as benfeitorias construídas em séculos de história, na formatação mental que foi sendo construída ao longo de décadas. Sedimentando-se o discurso do ódio, confundido com um discurso emancipador portador de uma reacção cheia de sentido face a um explorador sanguinário que tem que ser abatido, impôs-se uma segregação jamais existente na sociedade portuguesa. Hoje diz-se o que nunca se pensou dizer, em uma estranheza de cada um perante si próprio.

            Confundindo Racismo e Escravatura, pretende-se apagar uma era, sob pretexto de com o apagão se acabar com o mal, dando uma imagem do presente como algo que surge de geração espontânea, sem passado, isto é, sem uma linha condutora como é próprio da História. Com isso se pretende dar ao presente um aspecto limpo e atractivo, fazer dele um período de inauguração de novos tempos cheios de virtude, camuflando o próspero negócio do tráfico humano, de todas as raças, acrescente-se.

Antropólogos alemães chegaram à conclusão de que nunca houve tanta escravatura como hoje. Podemos não ter o ferro com o número, podemos não ter perdido uma batalha ou uma guerra e ficarmos à mercê de um senhor, mas temos a segregação, a riqueza cada vez mais centrada em um punhado de espertos, terrenos férteis incultos, fogos postos nas florestas com a culpa sobre bodes expiatórios, fome e miséria a aumentar a olhos vistos, em nome de uma vontade esquizofrénica de criar um exército de gente disponível para tudo o que se quiser fazer. Assim se constroem-se barreiras contra o progresso civilizacional, cria-se o fosso entre pobres e ricos, implementa-se a alienação mediante um conceito de felicidade baseado no consumismo poluidor. É a virtude e a felicidade do desnecessário. Compram-se produtos baratos e fazem-se fortunas a troco de trabalhadores com salários de miséria, a viver em condições miseráveis, faz-se figura de rico só porque se tem nas mãos um produto electrónico, produzido nas cadeias obtusas de produção sem direitos humanos (em todas as raças). Mas isto não é tema para as manifestações.

Porque culpabilizadoras de uma só raça, Branca, confusas e manipuladas, as manifestações contra o racismo alimentam a discriminação e a segregação ao invés de a combaterem. Mercê do clique que nos expõe ao mundo através da internet, os problemas específicos de uma sociedade depressa se tornam endémicos. As nossas sociedades tornaram-se caricaturas, generalizando problemas e modus operandi. Deita-se abaixo uma estátua de um traficante de escravos, em Inglaterra. Muito bem. E o resto, também veio abaixo? Há uma atitude igualmente repulsiva contra os comerciantes de gente que, em qualquer parte do mundo, vendem os da sua tribo/casta/desempregados/mulheres/crianças aos traficantes (de todas as raças)? Mas isto não vai às manifestações. É que, no próspero e escandaloso negócio de pessoas, não há raça nem nacionalidade. Há os poderosos e há os outros, em qualquer parte do mundo, em qualquer época, prova de que a evolução civilizacional não se pode confundir com revolução tecnológica. Lutar contra o racismo é lutar contra todos os comportamentos desviantes por motivos raciais, venham eles de onde vierem.

Sabe-se que é próprio da multidão os ânimos à flor da pele, a emotividade, o grito reivindicativo, quantas vezes irreflectido. Porém, porque manipuladas por interesses escusos, pouco ou nada definidos, as manifestações são multidões de gente que diz o que não pensa, que muitas vezes até vai contra os ideais e interesses dos manifestantes. Os ímpetos não são bons conselheiros e, como tal, não podemos permitir que, em nome de um ideal, se anulem outros de grande valor civilizacional tais como sociais, económicos, espirituais. As manifestações contra o racismo não podem ser um chorrilho de discursos de ódio contra raça nenhuma. Pelo contrário, devem ser momentos de convergência de ideais nobres, objectivando o progresso de uma sociedade que se quer pluralista e inclusiva.

            Vão longe os tempos em que as manifestações, que apesar da emotividade característica das mesmas, se moviam impulsionadas pelo desejo de mudar alguma coisa, de trazer à praça pública o descontentamento com injustiças sociais, laborais, perda de direitos, ou a luta pela conquista dos mesmos. Hoje, o descontentamento é arma de arremesso nas mãos dos manipuladores que, sem escrúpulos, o utilizam para desviar a atenção da verdadeira raiz dos problemas.

E uma das verdadeiras raízes é o facto de todos querem vir para a terra do antigo colonizador, porque na sua se tornou insuportável viver. Certamente porque na Europa ainda há um fundo de esperança de uma vida melhor, uma vida com alguma dignidade, é onde ainda é possível sonhar. Porém, vítimas do embuste, não são poucos os que caiem nas mãos do vigário. Quanto à sua terra, porque em guerra, porque com regimes insuportavelmente corruptos, ou por outras razões, se não é um lugar onde se possa viver com a dignidade que um ser humano merece, então o melhor é partir. Eu sei o que isso é. Também sou filha de emigrantes, aliás, estou numa família de emigrantes (tenho família em França há 60 anos, a maioria nem português falam. No entanto, jamais se disse algo contra o país/países que os receberam).

            Na manifestação grita-se que o racismo está a aumentar em Portugal. Será? Não seria melhor reflectir por que muitas pessoas se revoltam contra determinados comportamentos? Este é outro problema. A associalização é o móbil da discriminação, criando uma sociedade de hostis. Aquilo a que estamos a assistir é ao crescimento da aceitação forçada de comportamentos, quando praticados por uma raça ou etnia, mas que são penalizados quando praticados por outra.

            Com leis cada vez mais desculpabilizadoras do erro, em nome de uma falsa noção de tolerância, põe-se em risco a identidade social, cria-se a tensão entre os cidadãos e culpa-se a democracia como sendo um regime falhado. Efectivamente, a continuar assim, chama-se democracia, porque é um vocábulo simpático, a um regime que não é carne nem peixe. Ora é essa “coisa” indefinida que interessa aos manipuladores.

Um dos problemas que a sociedade global levanta é precisamente o da identidade. O que é hoje a identidade racial? Não se sabe. Quando uma pessoa sai do seu país de origem e vai viver noutro, deve ir receptiva ao que irá encontrar. Dito de outro modo, não são apenas os outros que devem aceitar quem chega, é também quem chega que deve tornar-se aceitável para os outros. Até porque, parece, é impossível manter os mesmos comportamentos e costumes em locais e momentos completamente diferentes (o aqui e agora são determinantes para as atitudes que tomamos). Há sempre mudanças estruturais que implicam qualquer coisa do género: sair de um lugar para outro é deixar para trás alguma coisa e abrir-se a novas realidades. Tem sempre que haver uma adaptação, uma mudança. Não há sociedades sem contágios culturais. Todos somos emissores e receptores, todos damos e recebemos alguma coisa.

Porém, cada vez mais as pessoas se vão calando a situações absolutamente intoleráveis, comportamentos inaceitáveis. Está instalado o medo de falar, de dizer “não está bem”. Atrever-se a falar é sujeitar-se a ser chamado de racista, xenófobo e, quem sabe, candidatar-se a um processo judicial, e até perder o emprego e ser lançado na marginalidade – ter ou não razão, nem sequer é questão que se levante -. Por outro lado, são conferidas regalias, direitos e deveres com os quais na sua terra nem sonhavam, a indivíduos que, não poucos, odeiam quem lhos oferece e quem os paga com os seus impostos. Assim se alimentam comportamentos arrogantes, olhares de ódio movidos por complexos de inferioridade racial, e não só, se criam tensões que dificilmente se apagam, tendo como pano de fundo os silêncios da revolta, ou a revolta silenciada. O resultado é o virar das costas, o olhar distorcido, o implementar da indiferença.

As manifestações contra o racismo, que se confundem com reacções contra a raça Branca, desculpabilizam as restantes, vitimizando-as, fazendo dos Brancos os maus da sociedade, da vida e do mundo. Dividindo os cidadãos entre santos e diabos, este tudo e nada culmina numa instrumentalização das mentes, em uma ausência de valores de tal forma que quem é odiento e complexado com a sua cor de pele sai de lá ainda pior.

            O racismo é transversal à humanidade e só pela educação se pode combater. Ele existe em indivíduos de todas as raças, isto é, não há raças sem racistas, infelizmente. Ora, a educação é o aprendizado de regras, entre elas a do respeito mútuo, da tolerância e da igualdade perante a Lei. O que na prática, mercê da desculpabilização agoniante e do silêncio forçado, não está acontecer.

            Lamentavelmente, aquilo que verdadeiramente se deveria combater, a ideologia Racismo, permanece intocável, e isso é que é preocupante. Ninguém parece estar interessado em educar, formar, fazer convergir num mesmo ideal, a saber, o de uma sociedade com lugar para todos, onde todos os cidadãos têm os mesmos direitos e deveres. Pelo contrário, inventam-se culpados e vítimas, constroem-se sensibilidades à flor da pele, implementa-se a desconfiança e o atrito de tal forma que as pessoas se olham com indiferença e revolta. O medo está instalado. Ninguém se conhece nem se quer conhecer. Vive-se compartimentado e segregado. A própria sombra assusta.

            As manifestações, porque são um mar de gente, podiam ser momentos de grande abordagem conjunta do motivo que as incentiva, motivo que se deseja emancipado e livre. Isso não seria impossível. Tudo iria depender do líder que as dirige. Só que isso iria implicar uma luta genuína por um ideal colectivo, sem manipulações, uma reconfiguração do que deve ser uma manifestação, bem como uma abordagem dos problemas isenta.

            Em matéria racial não há só vítimas e só culpados. É a nossa ignorância quanto ao diferente, e a ignorância cria a temeridade, que leva a atitudes repreensíveis. Face a isso, há todo um aprendizado que tem que ser feito, que tem vários caminhos, mas com toda a certeza o do medo não é um deles. Uma sociedade onde impera o medo, o silêncio, a discriminação, seja ela por que motivo for, jamais se pode chamar democrata.

            Ninguém se está a tornar racista. Nem são os cidadãos que criam o mal-estar. A culpa está em quem os manipula, em quem decide, em quem aplica a Lei. Se isso não mudar, não se perspectiva uma sociedade tolerante. E a tolerância é o pão da democracia.

 

            Margarida Azevedo

 

            P.S. É claro que não se revêem neste texto os daltónicos, os pacifistas, os reencarnacionistas, que acreditam que em uma vida somos de uma raça e noutra seremos de outra; nem aqueles que se consideram seres em evolução, cheios de defeitos, mas lutadores contra os seus maus pendores. Também não se revêem aqueles que se dizem muito ignorantes, que vivem em aprendizado permanente, que dizem que passamos pelo planeta em jeito de lição, rumo à Luz e à Fraternidade. Nem se revê aquele que vive em paz consigo próprio, com o outro e com Deus.

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*MAHATMA, G., O Caminho da Paz, 4 Estações Editora, lda., Parede, 2020, 2. A verdade é a fonte do carácter, p.54.