À PROCURA DO MILAGRE
Movidos pelo muito sofrimento e pela fé milagreira, ou pelo
inexplicável a que chamam os nós da vida, peregrinam rumo aos santuários em
busca de consolo, procurando uma bênção super-poderosa que faça a vida rumar a
outros portos.
Por
seu lado, o desespero converte as estradas em caminhos de esperança, rotas cujo
fim é o encontro com forças incomuns e com a multidão, aquela massa gigantesca
de gente com muitas coisas para contar, o que confere ao acontecimento uma
energia fabulosa, tornando o momento num acontecimento partilhado em que todos
estão unidos pela dor, ou por uma história rocambolesca que não ata nem desata,
aguardando um final feliz.
Dizem que é a fé que os move. É relativamente verdade.
Mas é a fé na solução radical dos problemas, levada a efeito, creem, por uma
Entidade ou por várias Entidades super-poderosas. Deus, para os que se dizem
monoteísta (?), como para os politeístas, tem um papel idêntico: passa para
segundo plano. O desejo incondicional do milagre e a força do sofrimento estão
completamente fora desses assuntos de Deus, deuses, Entidades e Forças
Superiores. Libertar-se do problema é mais importante do que perder-se em
questões teológicas ou teístas. Há um poder tão forte que é capaz de acabar
definitivamente com a dor, o problema, o sofrimento, tudo, e é isso que
importa.
Entre
velas, fórmulas e talismãs, lágrimas e mágoa profunda, a oração pede o fim de
uma dor que se não quer, que ninguém quer, ou uma limpeza radical da vida, o
desejo de toda a gente. É esse o móbil. Quando o sofrimento é forte, é só isso
que nos importa a todos. É que o sofrimento, por si só, já impõe regras que
desconhecemos, nomeadamente a relativização das nossas crenças, das nossas
doutrinas, reduz a magnânima sabedoria à sua verdadeira natureza: a ignorância
total. Quando a dor dói mesmo, nada faz sentido; acabar com ela é o objectivo
principal. O mundo pára, a razão pára, a fé fica em suspenso e tudo passa a
outro: dor e sofrimento transportam-nos a outro mundo, outra razão, outra fé.
Na verdade, em que é que realmente acreditamos? Em momento de calmia, pode ser
no verde. Em momento de tempestade, acredita-se até naquilo em que nunca
pensámos acreditar. Por isso se diz que o sofrimento e a dor nos fazem
despertar para outros mundos, abrindo-nos outros caminhos e novas perspectivas.
Na verdade, no muito sofrimento e na dor mais
aguda tem-se outro léxico, surgem sentidos novos, uns mais mágicos do que
outros; é quando a vida se reveste de objectivos diferentes daqueles quando nada
acontece, tal como um rio quando o ser humano quer à viva força desviar o seu
curso natural. Efectivamente, vivemos ou movemo-nos entre linguagens que se nos
impõem mediadas pelo aqui e agora, que manipulam a nossa mente e os nossos
sentimentos. Tudo o que dizemos é interna ou externamente vivencial, de uma
forma ou de outra. Isto é, o que dizemos, o que gostaríamos de dizer e o que
possivelmente nunca diremos fazem de nós marionetas dos acontecimentos cuja
linguagem é um mecanismo por eles manipulado, em todos os sentidos. São os
factos que determinam tudo, mentais, vivenciais, de fé, de não fé. Factos e
mais factos dos quais a linguagem anda ao sabor, como uma caravela ao vento.
Infinitamente
mais pobre que os factos, a linguagem, uma força metafísica poderosa do nosso
ser, é impotente para transmitir a totalidade do que acontece. Há sempre um
resíduo, um algo de não dito. Por isso os místicos preferem o silêncio, assim
como a sabedoria popular que diz que a palavra é de prata, mas o silêncio é de
ouro.
Não havendo romarias a Deus, o que implicaria
um encontro baseado na Palavra liberta e libertadora, e, portanto, na oração
nua e crua, também não há romarias a pedir a modificação interior. Eis o grande
e único milagre humano, a saber, deixar de se ser o que se é e passar-se a ser
outro.
Fazer
uma romaria para pedir a Deus a graça de não mais ser violento nem agressivo,
não mais ser invejoso nem maledicente; pedir a abertura de espírito à
diversidade e ser tolerante; empenhar-se em ser útil dentro das suas
possibilidades, e querer ser hoje melhor do que ontem e amanhã melhor do que
hoje…, eis o grande milagre humano.
E
ainda, combater a vaidade ridícula, a ambição desenfreada, o instinto de
açambarcamento, a ganância, o querer privilégios só para si e ser servido, tudo
isto e muito mais são os elementos que constituem o milagre da negação que
ninguém, ou muito poucos, pede a Deus.
As
romarias podem continuar. O ritual vai-se repetindo ad infinitum. Enquanto o ser humano persistir na lonjura das
virtudes divinas, nada feito. O bem, nos nossos corações, ainda está por fazer.
As mentes continuam direccionadas para o imediatismo, e Deus, Jesus e todos os
profetas condenados ao milagreiro que ofusca as verdadeiras virtudes.
Porque
é que os problemas não desaparecem definitivamente, apesar de tantas romarias?
Porque as pessoas não se modificam, para melhor, acrescente-se. Enquanto o
interior continuar em ebulição porque ocupado com supérfluos, nada mudará. Podem
continuar a negociar com as divindades ou a Divindade oferecendo ouro,
dinheiro, adquirir todo o tipo de talismãs, na sua diversidade simbólica, tudo
isso é como o sino que tine. Como diz o salmo: “Os ídolos deles são prata e ouro, obra das mãos dos homens”.* Com
o nome de tolerância, chama-se fé à crença nos ídolos, que cada vez são mais, o
que vai ao arrepio do que se esperava para o século XXI. Elementos
aprisionadores da fé, na tentativa de fazer esquecer que amar a Deus acima de
todas as coisas e ao próximo como a si mesmo encerra toda a Lei e os profetas.
A
verdadeira fé não é prisioneira de coisa alguma, impõe-se pela liberdade de
crer. Paulo adverte: “É, com efeito, à
liberdade que vós, irmãos e irmãs, fostes chamados! Somente não transformeis
esta liberdade em base de operações para a Carne. Em vez disso, através do
amor, tornai-vos servos uns dos outros.”** (Gl 5:13) Ora há os que fazem do
próprio Deus um ídolo do terror, da guerra, do nihilismo. Em que se baseia o
ser humano quando quer impor ao outro a sua forma de crer? Urge o milagre do
servir com amor, do desprendimento, da liberdade de fé.
São
múltiplos os caminhos para Deus que, por muito diferentes que sejam, têm em
comum o amor que nos deve unir e a paz em que devemos viver. Uma alma sem amor
e sem paz é uma alma atormentada. É nosso dever a ajuda incondicional a quem
vive no tormento, e atormentados somos todos nós, de uma forma ou de outra, de
forma totalmente gratuita: sem esperar recompensa alguma, sem fazer do outro um
caminho para si, para atingir objectivos pessoais, sem a fragilidade da
imposição de ideologias. Qualquer ser humano vale mais que todas as ideologias
juntas.
Precisa-se,
com urgência, do milagre de uma fé livre, qual ligação directa a Deus, na
alegria infinita do encontro com o outro. Que as nossas orações vão nesse sentido
Margarida
Azevedo
*Conferência
Episcopal Portuguesa, Bíblia, Os quatro
Evangelhos e os Salmos, Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã,
Lisboa, 2019, Sl 115: 4.
**Trad.
Dimas de Almeida, polic., s/data.