domingo, julho 21, 2024

RACISMO E ESPIRITISMO II

 



“Homens, irmãos a quem amamos, aqui estamos junto de vós. Amai-vos, também, uns aos outros e dizei do fundo do coração, fazendo as vontades do Pai, que está no Céu: Senhor! Senhor!... e podereis entrar no reino dos céus.”

O Espírito de Verdade*

 

            Seria de todo o interesse saber quando, onde e como surgiu o racismo. É claro que estabelecer marcos é extremamente difícil, há sempre o perigo de aplicar os nossos conceitos e valores a factos que lhes estão distantes. Os nossos critérios estabelecem marcos não raro discutíveis porque, sem nos darmos conta, os nossos erros de leitura e apreciação caiem, inevitavelmente, na nossa vivência pessoal. A distância que nos separa do passado, ainda que recente, não é apenas espácio-temporal, mas principalmente de mentalidades. Somos portadores de sentido, sob a influência do meio, mas também de uma ancestralidade que é muito antiga, sedimentada ao longo das múltiplas existências que tivemos.

Perguntar quando é que algo começou é interrogar: Quando é que começou factualmente ou quando é que começou na minha cabeça? São coisas diferentes. Mercê da manipulação ideológica, da crescente imposição das minorias, das políticas de género, e na ânsia de mudar os nomes às coisas, tudo passou a ser racismo, xenofobia, discriminação. O racismo está tão na moda hoje como estava a palavra fascismo a seguir ao 25 de Abril. Por outro lado, quer-se à viva força transpor a significação dos conceitos de hoje para o passado, bem como as fobias, os complexos de inferioridade, os inevitáveis choques civilizacionais consequentes da globalização, assim como as diferentes formas de estar na fé.

Com tudo isto, e mercê de ver o que não existe, há racismo por todo o lado. Criando a confusão nas mentes, o que dá muito jeito aos manipuladores da opinião pública, com o andar da carruagem até o homem das cavernas era racista, o que torna imperioso destruir a pintura rupestre, os museus de Arte Antiga, todos os vestígios arqueológicos desses tempos, e tudo o mais que faça lembrar que os mais fortes, superiores na força e na técnica de guerrear, eram inevitavelmente os vencedores.

Assim, antes de continuar, e em jeito de notas, vejamos:

 1. Na Antiguidade e na Idade Média falava-se em vencedor e vencido, não em raças superiores ou inferiores. A ideia de superioridade fazia parte, sobretudo, do discurso religioso, principalmente aquando do expansionismo europeu.

2. Na Idade Moderna (século XV), já se fala de superioridade da raça europeia, porém, a questão da escravatura não é de ordem racial. A escravatura remonta a 3500 a.C., na Suméria e Mesopotâmia. Com as guerras otomanas, séculos XIV a XX, temos, na Europa, escravos cristãos, além de uma escravatura que se estende ao mundo árabe, persa, grego; a pessoas de pele clara e de olhos azuis (no nazismo). Quanto a hoje, só para se ter uma ideia, “Há mais escravos atualmente do que em qualquer outra época histórica, numa estimativa de cerca de 40 milhões, ou 1 em cada 200 pessoas, segundo a Organização Internacional do Trabalho e a Fundação Walk Free.” (Wikipedia) (1)

3. Há quem pretenda igualizar racismo e etnocentrismo. São, no entanto, distintos. Por exemplo, os hebreus referiam-se aos que não eram hebreus como gentios; os helenos (gregos) referiam-se aos selvagens citas e aos egípcios, mesmo reconhecendo neles a influência civilizacional, como Bárbaros (o que significa estrangeiro/estranho). (2) O racismo não tem nada a ver com isto. É outra coisa.

4. O racismo, semelhante ao que conhecemos hoje, surge no século XX. Em 1902, uma revista francesa, Revue Blanche, publica um artigo assinado por A. Maybon intitulado Racisme; em 1936, a palavra inglesa racism refere-se à política nazi alemã. No entanto, o termo remonta ao século XIX com a doutrina do “racismo científico” que pretendia “justificar a colonização e exploração de povos não brancos pelos europeus, promovendo a ideia de diferença e hierarquia racial.” (3)

O racismo científico defende a existência de uma hierarquia racial com base em características físicas, tais como, cor da pele e formato do crânio. Os seus justificativos eram também de ordem tecnológica, política e principalmente religiosa. Porém, no que diz respeito à componente religiosa, esta enfraquece ao longo do século XVIII.

Em Inglaterra, a Revolução Industrial (século XVIII), deu origem na Europa, e em França muito concretamente, ao aparecimento de novas classes sociais e ao urbanismo. A França impôs-se de tal forma que o francês tornou-se a principal língua europeia, representando toda uma nova civilização com os seus ideais de liberdade, espírito crítico, ciência. Sedimentando as ideias do Iluminismo, grande revolução no pensamento na Europa e na América do Norte (do último quartel do século XVII ao último quartel do século XVIII**), chamado também Século das Luzes, Idade da Razão ou Era da Razão, emerge uma nova abordagem do tipo: tudo se pode questionar; há que controlar as emoções e combater a superstição; filosoficamente, interroga-se sobre qual a melhor forma de viver em sociedade e qual a forma de governo ideal, retomando a antiga problemática aristotélica, a saber, o grande objectivo do Homem é a felicidade.

Quanto ao século XIX, este foi rico em profundas transformações das quais emergiram novas ideologias e melhoria na economia; foi quando surgiram actividades de lazer, parques, museus, edifícios imponentes, a par das grandes descobertas nas áreas da Medicina, Física, Química, e também das grandes reflexões filosóficas, sociológicas e políticas; em França, é construído o Museu de História Natural de Paris. Por tudo isto, o século XIX é chamado o Século das Ciências.

Kardec, filho da sua época, viveu o fascínio pela razão. Esta consiste numa capacidade superpoderosa, das maiores dádivas de Deus, de tal forma que tudo o que não for racional é excluído. Fé e razão formam um binómio libertador do sentido primário da fé, associado ao milagreiro, porque desprovido de confirmação racional. É nesta base que escreve: Não há fé inabalável, senão a que pode encarar face a face a razão, em todas as épocas da Humanidade. À fé, uma base se faz necessária e essa base é a inteligência perfeita daquilo em que se tem de crer. Para crer, não basta ver, é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega já não é para este século. É precisamente ao dogma da fé cega que se deve o ser hoje tão grande o número de incrédulos, porque ela quer impor-se e exige abolição de uma das mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio.” (“O Evangelho Segundo o Espiritismo”, In: Obras Póstumas, p.17) (4)

Essencialmente crítico da igreja Católica do seu tempo, assente numa teologia defensora de penas eternas, sedimentando o medo com a teoria do céu, inferno e purgatório e da máxima de que fora da igreja não há salvação, bem como de que tudo na vida é mistério, Kardec defendeu a fé raciocinada como a grande alavanca de libertação humana, quer do espírito de crendice quer do medo. Crer torna-se compreender, o que significa que o ser humano acredita em Deus porque compreende que só um Ser muito superior seria capaz de construir o mundo em que vivemos e dar o ser ao próprio Homem. Dito de outro modo, o espírita acredita em um só Deus, Todo-Poderoso, criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis, Uno e único. Acredita porque compreende que o universo é regido por um conjunto de leis imutáveis, eternas e perfeitas, às quais todo o ser vivente está sujeito.

Quer se goste, quer não, a Codificação Espírita é um trabalho europeu, francês, filho de uma época de grandes revoluções dos saberes, assim como Os Lusíadas são portugueses, a República de Platão é grega, os Evangelhos foram escritos por judeus em ambiente profundamente helenizado, a Bíblia Hebraica era a bíblia de Jesus, os Judeus são o povo escolhido e Jerusalém é a Cidade Santa, sede dos três principais monoteísmos. É assim. Porquê? Não se sabe. Cada coisa surge onde tem que surgir, dentro de uma conjuntura que lhe é favorável.

Kardec, na linha de Descartes, filósofo que continua a ser um pensador incontornável na cultura francesa, faz da dúvida a ferramenta mais eficiente para não se ser enganado pelos Espíritos; com Erasto, discípulo de S. Paulo (a que faz referência em O Livro dos Médiuns, cap. V, item 98), e a quem é atribuída a máxima “Mais vale rejeitar dez verdades do que aceitar uma única mentira, uma única teoria falsa”, apela à coerência, aquando das comunicações dos Espíritos, como a grande palavra de ordem do Espiritismo, bem como a grande salvaguarda contra os falsos profetas ***. Assim, os Espíritos caiem do pedestal absolutista de que tudo sabem, inclusivamente o nosso futuro, e são relativizados quanto aos seus saberes e comportamentos, a ponto de, em muitos casos, serem até mais ignorantes do que nós. “Os Espíritos conhecem o princípio das coisas? – Conforme a sua elevação e a sua pureza. Os Espíritos inferiores não sabem mais do que os homens.” (5) E na mesma onda cai por terra a crença em homens-deuses, gente espiritualmente acima da média que tem acesso a Espíritos que mais ninguém tem, porque ninguém é superior a ninguém, desmascarando os charlatães.

Mediante esta nova abordagem, o pensamento religioso não voltará a ser o mesmo na França livre. Cai o suposto poder nas fórmulas mágicas para atrair forças invisíveis poderosas, o poder dos talismãs, é ridicularizada a crendice. “Qual pode ser o efeito de fórmulas e práticas com as quais certas pessoas pretendem dispor da vontade dos Espíritos? – O de as tornar ridículas, se são de boa-fé; no caso contrário, são tratantes que merecem castigo. Todas as fórmulas são charlatanice; não há nenhuma palavra sacramental, nenhum signo cabalístico, nenhum talismã que tenha qualquer acção sobre os Espíritos, porque eles são atraídos pelo pensamento e não pelas coisas materiais.” (6)

            É neste ambiente de profunda revolução científica que é construído o edifício da Codificação Espírita. Nada cai do céu de pára-quedas. Desta forma, há que perceber que ler um texto é ler uma época, com tudo o que a caracteriza. Há o contexto do texto, sociológico, político, religioso, antropológico, psicológico. Com Kardec, percebe-se perfeitamente o cientismo que fascinou o homem europeu, que se julgou um privilegiado com as suas descobertas, com a complexificação da sociedade, com a melhoria das condições de vida em geral. Pergunto: Isto é mentira?

            Não é a hierarquia racial desta época, bem como outros aspectos, que devemos combater, porque à época era assim, não era possível viver séculos à frente (uma época que não viva na sua época o que é? Uma impossibilidade); a civilização, e nada na natureza, dá saltos. O desconhecimento do homem pelo homem leva-o a divisões que por vezes nos chocam. É a nossa ignorância a falar. Apesar de lento, avanço espiritual é uma realidade. Há quem se choque com o passado, o que se disse, o que se fez, o que se escreveu. Muito bem. Penso que seria muito mais proveitoso direccionarem as suas preocupações para as barbaridades do presente. Investir no entendimento entre todos os homens é a maior espiritualidade.

Combatam a proliferação saudosista dos valores de outrora, tidos como a grande referência para a vida de hoje. Somos uma sociedade armadilhada. Está a assumir-se uma esquizofrenia generalizada como virtude: no século XXI já ninguém é responsável, individual ou colectivamente, pelos seus próprios actos. Já não há ladrões, facínoras, exploradores. Num restauro infeliz da ingénua teoria do bom selvagem, ninguém nasceu mau, foi a sociedade que o tornou assim. De facto, no séc. XVIII, Rousseau acreditava no homem, que nasce bom, é a sociedade que o corrompe. Esta fuga de si próprio caracteriza-se pela culpabilização do outro, permeabilizada pelos fantasmas do passado; no séc. XXI, foram os colonos. Ultimamente, vale tudo, toda a gente nasce boa, não se pode corrigir uma criança sob pena de esta ficar traumatizada. Por outras palavras, ser selvagem está na moda, a brutalidade um direito.

            Porque a Codificação foi elaborada em França, e porque se baseia na comunicação dos Espíritos, e como aborda o natural ponto de vista sobre o humano, à época, conclui-se que os Espíritos são trevosos, e que o racismo da doutrina é o grande calcanhar de Aquiles dos espíritas. Meu garanto que não é, porque, actualmente, eu não conheço sociedades sem racistas.

            Ora, baseando-me na própria estrutura dos ensinos de Kardec, já o disse anteriormente, o Espiritismo não foi elaborado por Entidades de luz, quero dizer, muito distantes de nós na elevação espiritual. Veja-se os nomes dos Espíritos comunicantes em O Evangelho Segundo o Espiritismo. Mesmo a referência a Erasto, como Espírito protector de um dos médiuns com que Kardec trabalhou (O Livro dos Médiuns, o.c. item 98), a ser uma Entidade de relativa elevação, é natural que se refira a um elemento da sua linha de trabalho, dentro da falange a que naturalmente pertence. As Entidades tomam os nomes dos seus mentores. O mesmo acontecia com os seres de carne e osso. Tomemos o exemplo do teorema de Pitágoras, por ser o mais conhecido. Há quem diga que não é de Pitágoras, mas de um dos seus discípulos, porque estes davam aos seus trabalhos o nome do seu mestre, o mesmo para as cartas de Paulo, que tinha um escrivão, como era habitual na altura. É muito discutido entre os exegetas a problemática da autoria das referidas cartas.

A Doutrina baseia-se em depoimentos, testemunhos vivenciais sérios que nos revelam alguns aspectos da vida além-túmulo, bem como da nossa vida actual (época do leitor). Essas Entidades, ao serviço de Deus, comentaram algumas passagens dos Evangelhos, responderam a perguntas que lhes foram colocadas, segundo as suas possibilidades, mas principalmente segundo o nosso entendimento de seres tão pequeninos a viver num planeta de provas e de expiações. O Espírito de Verdade, através desses seres, já nos disse bastante, muito embora algumas coisas estejam desfasadas para o momento actual. Porém, não nos deixemos iludir com falsas questões de racismo, observadas pela lente dos nossos dias. Quem nos dera que fosse apenas e somente esse aspecto de algumas discrepâncias, por ignorância histórica. O espírito de crendice, o racionalismo exacerbado, a frieza com que abordam o sofrimento das pessoas, os ares de superioridade que alguns trabalhadores tomam, e o facto de fazerem da Doutrina uma perfeição absoluta, vai ao arrepio do Cristianismo, em geral, e da Doutrina, em particular.

Os espíritas não são seres diferenciados no mundo, possuidores da chave-mestra do céu. Ninguém tem acesso a seres de uma elevação espiritual distante da que se vive na terra. Mas isso não significa trevas. O Espírito de Verdade a que se refere Kardec é uma Entidade colectiva que se manifesta por toda a parte. “O Espiritismo se nos depara por toda a parte na antiguidade e nas diferentes épocas da Humanidade. Por toda a parte se lhe descobrem os vestígios. Nos escritos, nas crenças e nos monumentos. Essa a razão por que, ao mesmo tempo que rasga horizontes novos para o futuro, projeta luz não menos viva sobre os mistérios do passado.” (7) E para que não restem dúvidas para os defensores das grandes luzes, para salvaguardar o endeusamento de médiuns iluminados e reluzentes, bem como dos respectivos Espíritos, acrescenta: Como complemento de cada preceito, acrescentamos algumas instruções escolhidas, dentre as que os Espíritos ditaram em vários países e por diferentes médiuns. Se elas fossem tiradas de uma fonte única, houveram talvez sofrido uma influência pessoal ou a do meio, enquanto a diversidade de origens prova que os Espíritos dão indistintamente seus ensinos e que ninguém a esse respeito goza de qualquer privilégio.” (idem, ibidem)

Não há aqui qualquer referência a Entidades de luz, nem discriminação seja de que tipo for. A veracidade da Doutrina advém da concordância das suas posições, porque os textos foram recebidos por médiuns diferentes, e não por médiuns de altíssimo gabarito. O objectivo é trazer esclarecimento quanto aos Evangelhos, dissipar preconceitos quanto à natureza dos Espíritos, não fazendo deles sábios a quem devemos obedecer cegamente. Isso nunca. Porém, independentemente da pluralidade de médiuns, é sempre de ter em consideração que tudo o que foi recebido mediunicamente teve como pano de fundo a mentalidade da época, na Europa. “Para que um Espírito possa comunicar-se é necessário que tenha atingido o grau de evolução do mundo em que é chamado, “pois do contrário será estranho à cultura desse mundo e não disporá de meios de comparação para exprimir-se.” (8)

            Quanto aos Espíritos, não podiam falar de outro modo. “Seria, portanto, desnecessário querer antecipar o momento que a Providência designou para cada coisa, pois que os Espíritos verdadeiramente sérios recusam de forma positiva dar o seu contributo. Porém, os Espíritos levianos, pouco se preocupando com a verdade, respondem a tudo. É por esta razão que, sobre todas as questões prematuras, há sempre respostas contraditórias.” (9) É de Espíritos sérios que se fala, são esses os superiores, e isso já nos basta, porque a seriedade também é uma força divina, uma grande virtude que está muito em desuso.

(cont.)

            Margarida Azevedo

Referências

*KARDEC, A., O Evangelho Segundo o Espiritismo, FEB, RJ, 1981, PREFÁCIO, p.24.

**Consultar https://www.worldhistory.org/trans/pt

(1) https://pt.wikipedia.org.

(2) Dante A. Puzzo, in: Wikipedia.

(3) In: Copilot

(4) KARDEC, A., Obras Póstumas, FEB, RJ, 1978, BIOGRAFIA DE ALLAN KARDEC, p.17.

(5) ___________ O Livro dos Espíritos, CEPC, Lisboa, 1984, Livro 2, cap. VI, VIDA ESPÍRITA, III – PERCEPÇÕES, SENSAÇÕES E SOFRIMENTOS DOS ESPÍRITOS, 239, p. 153.

(6) __________, idem, cap. IX, INTERVENÇÃO DOS ESPÍRITOS NO MUNDO CORPÓREO, XII – PODER OCULTO, TALISMÃS, FEITICEIROS 553, p. 242.

(7) ___________, O Evangelho Segundo o Espiritismo, FEB, RJ, 1981, INTRODUÇÃO, I – OBJECTIVO DESTA OBRA, p.27.

(8) ___________, O Livro dos Médiuns, CEPC, Lisboa, 2001, cap. XXV, DAS EVOCAÇÕES, item 282, PERGUNTAS SOBRE AS EVOCAÇÕES, 3, p.305.

(9)____________, L´Evangile selon le Spiritisme, II – AUTORITE DE LA DOCTRINE SPIRITE, Contrôle universel de l` enseignement des Esprits, p.23, trad. M. Azevedo.

***Nota: Consultar: Rom 16:22; 1Jo 4:1; O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XXI, além das perícopas do Novo Testamento referenciadas no respectivo capítulo.

 

 

sábado, julho 06, 2024

RACISMO E ESPIRITISMO




         Ideias feitas são ideias assassinas.

Pr. Dimas de Almeida 

            De repente, o mundo parece desabar tornando periclitantes os alicerces mais profundos. Já nada parece estável. O imediato veio para ficar, assim parece, com a sua militância na fragilidade. Ser forte tornou-se sinónimo de ser capaz de sobreviver todos os dias sob o véu translúcido de que tudo pode desabar a qualquer momento.

Os mais radicais pretendem a todo o custo passar uma borracha sobre o passado histórico na procura ansiosa de uma espécie de pureza social, toda presente, toda actual, num agora imaculado que aparece do nada, ou seja, por geração espontânea. O que somos hoje nada tem a ver com progressão histórica. Isto significa que defendem um criacionismo social em que fomos postos na existência por mero acaso; é como se as sociedades, na sua crescente complexificação, não tivessem passado por um percurso evolutivo, quer ao nível das mentalidades, quer ao das relações intersubjectivas.

Em consequência, pretende-se uma igualdade de alguma forma patológica quando, diga-se em abono da verdade, ninguém quer ser igual a ninguém. Aliás, nem poderia. Somos irrepetíveis num mundo que é de todos.

 Efectivamente, de continente para continente, de país para país há diferenças que os definem, uma identidade que os caracteriza. Se assim não fosse, e numa linguagem espírita, reencarnar no ponto X ou Y seria completamente indiferente. Ora, não é assim. A reencarnação acontece onde o espírito reencarnante precisa, em termos do seu percurso evolutivo, quer na terra, quer até em outros mundos. “ As nossas diversas existências corporais acontecem todas na terra? Não, mas nos diferentes mundos. As deste planeta não são as primeiras nem as últimas, são, no entanto, das mais densas e das mais distantes da perfeição.”* Ir ao arrepio desta realidade, a saber, que não é arbitrário nascer aqui ou ali, é ir contra a máxima de que nada acontece por acaso. Tudo tem uma razão de ser face às necessidades evolutivas de cada Espírito: nacionalidade, cultura, cor da pele, profissão, classe social… e ainda que numa mesma vida transitemos de um país para outro, que mudemos de profissão, que subamos ou desçamos na classe social, as características do indivíduo estarão sempre lá. Se de pobre passou a milionário não mudou, com isso, de grupo sanguíneo, nem de cor da pele, nem esqueceu a língua materna; o mesmo se de analfabeto passou a doutor, se mudou para outro grupo religioso, para outro partido político, se se divorciou e voltou a casar com outra pessoa.

Não é porque transitamos, de reencarnação em reencarnação, de um país para outro, de um continente para outro, de um mundo para outro que perdemos a nossa individualidade. Nós apenas vamos burilando o nosso espírito rumo a mundos mais elevados. Além disso, há quem se esqueça de que somos nós que, chegados a determinado grau evolutivo, escolhemos onde queremos nascer. Diz Kardec: “ O Espírito desligado da matéria, e na erraticidade, escolhe as futuras existências corporais segundo o grau de perfeição que tenha atingido.”**

            O grande e grave problema humano é não aceitar as características com que nasceu, ou, pelo contrário, enaltecê-las tendo-se como superior aos seus semelhantes. São esses complexos que vão estar na base dos conflitos. Os desajustes interiores são de tal forma que a pessoa sente-se perdida na diferença, diluída, ou até mesmo agredida. Se esta situação passar para o colectivo, geram-se os problemas étnicos/raciais e sociais, e até temporais. Hoje, o passado de há centenas de anos é o responsável pelo modo como se está na sociedade presente. Porém, culpar o passado é, antes de mais, culpar-se a si mesmo. Numa linguagem espírita, nós somos os nossos antepassados, os nossos tetra avós. Quem hoje vive no sul já viveu no norte, quem hoje fala uma língua já falou outra, quem hoje fala contra a colonização pode ter sido colonizador. Aprende-se na Doutrina que fomos piores no passado do que somos hoje, apesar de ninguém ser bom, bom, só o Pai…… Há que perceber que somos todos alunos e professores uns dos outros, no aprendizado da vida, o que só acontece com o outro. De facto, somos colonizadores e colonizados, nesta sequencialidade em que, inevitavelmente, experienciamos a riqueza do contágio cultural. Defender um discurso de ódio contra o passado, numa suposta limpeza de mentalidades, usos e costumes, não acaba com a degradação humana. Pelo contrário, demonstra que ainda se está muito longe de perceber os fundamentos da progressão espiritual. Tudo o que se passou em tempos mais ou menos remotos é o espelho do nosso grau evolutivo.

            Não é semeando um clima de tensão em que se pretende salvar a actualidade de uma imagem de desgraça que foi o passado que tornamos o presente mais feliz. Aqueles que gritam bem alto a falta de valores, a fragmentação dos laços de família, as clivagens sociais, a perda da estabilidade política são o exemplo disso. Os que defendem uma imagem totalmente negativa do passado têm a ilusão de que o futuro está sob controlo, o desconhecido está tecnicamente dominado e as fobias que o acompanhavam estão perfeitamente anuladas.

            De uma rajada, ergueram-se as vozes dos que se julgam senhores do passado, que querem matar, e do futuro, que supõem que vai acontecer exactamente como o imaginam segundo os critérios que povoam as nossas fracas cabeças. Implementou-se o fascínio do poder e da ilusão de que nada nos vai fazer parar. Resultado, vamos matar os que são de outra religião e de outro partido político, vamos esmagar o europeu colonizador, vamos acabar com a História. Valores?! Mas que valores? Acabaram-se os homens e as mulheres, há géneros, já não há pais nem mães, há progenitores, já não há raças, há só etnias. Vamos derrubar o passado, reescrever os textos de outrora ou queimá-los, aniquilá-los de vez para que ninguém caia no perigo de os ler. Vamos publicar edições adulteradas, mas chamadas anti-racistas. Vamos reescrever segundo as nossas ideias, mentalidades, políticas, religião, fé. “Eu não quero estes textos assim. Quem quiser ter acesso a eles, tem que os ler como eu quero.” Só que este eu está a tornar-se uma entidade colectiva demasiado grande.

Inaugura-se, assim, um novo modelo, e mais perigoso, de inquisição. É caso para perguntar: Não serão os inquisidores da Idade Média que ainda estão a viver resquícios dessa época? Não se estará a reviver uma realidade que ainda não se conseguiu apagar? A colonização teve erros e qualidades. Pese-se no prato da balança uns e outras, faça-se uma avaliação isenta e séria; deixem falar os mais idosos, aqueles que sobreviveram a tantas convulsões, deixem-nos dar o seu testemunho.

            E ainda que sejamos, possivelmente, os nossos antepassados, se não evoluímos não é por culpa da ancestralidade riquíssima que nos acompanha, mas pela nossa renitência, pela preguiça que nos caracteriza, pelo egoísmo e pelo orgulho de que não fomos capazes, ainda, de nos despojarmos. A fascinação que tão bem nos define, a manipulação mental característica dos nossos tempos, a falta de força para implementar o bem e a desconfiança que se instalou entre as pessoas está a levar a um desentendimento tal que o mundo não se entende. Nada está bem.

            É insuportável viver num mundo em que tudo é mau. É insuportável viver na negação existencial, olvidando a nossa natural vulnerabilidade. Em todas as épocas, em todos os males, em todos os erros, em todos os defeitos há a permeabilização das grandes forças do bem. Lá diz o povo, em sua magna sabedoria: “Há males que vêm por bem.” Aquele problema, aquele obstáculo, aquela dor são o grande móbil para quantos momentos de sublime elevação. Não é fazer a apolologia do sofrimento, longe disso, mas justificar que o humano é um ser de problematicidade.

            O Espiritismo não tem uma doutrina do mal, chama-lhe ignorância. É isso mesmo, não passamos de ridículos pseudo-sábios, fascinados com o nosso falso saber. A ignorância é o que mais eficazmente nos caracteriza. O ser humano tem dificuldade em perceber que é tão pequenino.

            Hoje, tudo é xenofobia e racismo. Instalou-se o medo. O que se ouve com mais frequência ultimamente é: “Agora não se pode dizer nada. Temos que ter cuidado porque podemos ser mal interpretados. “ Pois eu digo, calem os complexos de inferioridade, que não fazem sentido nenhum.

As pessoas calaram-se. Ir ao arrepio desta onda de apagão está a ter o preço demasiado alto da revolta calada. Assim se implementam os extremismos, assim se tenta calar uma doutrina de paz e de bem-fazer. Porém, quando o sofrimento bate à porta, quando o filho cai doente numa cama, quando a vida parece desabar, quando falta o ordenado em casa, qual racismo qual quê. “Livrem-me disto, que eu não estou para politiquices.”

As negatividades são subtis, astutas, sábias. Os arabescos de espiritualidade libertadora são salpicos de justiça. É bom lembrar a máxima kardecista de que mais vale rejeitar nove verdades do que aceitar uma mentira. Não silenciemos a nossa luta pela paz, pela vida, pelo bem. Sintamo-nos ávidos de luz, de palavras partilhadas. O silêncio do medo é a maior força da negatividade.

(cont.)

Margarida Azevedo

*KARDEC, A., Le Livre des Esprits, Les Editions Philman, Saint-Amanid-Montrond, 2002, LIVRE 2, MONDE SPIRITE OU DES ESPRITS, chap. 4, PLURALITE DES EXISTENCES, Incarnation dans les différents mondes, 172, p.68, trad. M. Azevedo.

**________idem, LIVRE 3, LOIS MORALES, chap. 10, IX – LOI DE LIBERTE, Résumé théorique du mobile des actions de l`homme, 872, p.321, trad. M. Azevedo.