RACISMO E ESPIRITISMO IV
“Para todas as
coisas <há> um tempo;
E <há> um
tempo para todo o assunto debaixo do céu.”
Eclesiastes*
Temos
muita dificuldade em compreender, definir ou dizer qual é o nosso tempo. Traçar
um caminho, rumar a um objectivo, desenhar
linhas de conduta é um desafio e tanto. Estamos embrenhados no modo como nos
organizamos, não nos damos conta das influências que recebemos, que vão interferir
no que rejeitamos, bem como na forma como reflectimos as grandes questões.
Efectivamente,
vivemos o dramatismo das questões sem resposta: Como definir a nossa era? Para
onde caminha a História? Para onde é que eu vou? E na incerteza que se faz ao
largo, a nossa grande companheira de todos os dias, sentimo-nos encurralados numa
apocalíptica desconfortável que, no receio de perdermos identidade, nos faz
dissidentes.
Para
alguns, essa dissidência está a construir discursos de ódio que, impulsiva e
irreflectidamente, pretende dar ao passado um aspecto denso e soturno, do tipo eu quero libertar-me da vergonha de que me
acusam, ou, vamos deitar abaixo estes
tipos que nos exploraram. Com isto se pretende um conceito de eternidade
sem passado, como se o eterno fosse algo do domínio do aparecente, sem
referencial, em que cada vida é qualquer coisa que surge por acaso. Ora, todos
os povos, toda e qualquer pessoa, qualquer animal ou planta está marcado por uma
anterioridade que lhe dá sentido. Temos a História Humana como temos a História
Natural. A Vida é um curriculum evolucionista em que tudo e todos estão
fatalmente implicados.
Ninguém
pensaria que no século XXI estivéssemos a viver fracassos, desilusões como as
que vivemos. Aquilo de que o ser humano precisa é de uma mudança de mentalidade,
de uma conversão à vida. Como diriam os Gregos, uma metanoia. Não é a Deus que
temos primeiro que nos converter, mas à nossa História, onde Ele, naturalmente,
se manifesta. Ir contra a arquê, fundamentos, raízes, fundura, é o mesmo que
rejeitar o pó de que somos feitos. Não podemos permitir que se condene o
passado à pena capital. Tribunais não faltam, falta a justiça, a qual deve
começar no cerne de nós mesmos.
Levar
o passado ao banco dos réus, e com ele os povos brancos, abafando todo o tipo
de benfeitorias, como educação e progresso tecnológico-científico, é o mais
escandaloso e o pior dos racismos. É cultivar o puro ódio. É justificar e
cimentar a ideia de que a corrupção de hoje, que impera por toda a parte,
sempre existiu, abafando a infelicidade em que os povos mergulharam, muitos com
grande saudade do colonizador.
Com
quem é que eu sou feliz? Quem é que me dá melhores condições de vida? Onde é a
minha terra? Quem é a minha família? Eu sou feliz com quem me trata bem, quem
se importa comigo; a minha terra é a terra que me dá de comer, e a minha
família é quem me estima e respeita.
Racismo?
Então o dos ciganos contra os negros, dos indianos contra as outras raças, dos
negros entre si e para com os brancos? Desses ninguém fala, é politicamente
incorrecto. Racismo, só os brancos, com o seu Cristianismo nefasto.
Devemo-nos
mutuamente a gratidão dos contágios culturais. “Um ingrato é um caloteiro moral”, dizia Eduardo Fernandes de Matos
(Casa Espírita, Associação de Beneficência Fraternidade). Não concordo com o
modo como o Cristianismo se expandiu, menos ainda com a ingratidão de que esta
a ser alvo. Porém, ele próprio evoluiu mediante as influências que recebeu dos
povos por onde se difundiu. A nossa vida caracteriza-se por um sistema de
trocas, e o factor religioso não lhe está imune. Daí os tão falados, e sempre
discutíveis, sincretismos religiosos, de que hoje nem nos apercebemos.
A
Espiritualidade adverte para a falta de fé e de oração. Ora, quando as
religiões forem organizações de paz, acima de todas as coisas, de fé e crentes
em Deus, ao invés de organizações político-económicas; quando assentarem os pés
na terra e abandonarem o milagroso, o sobrenatural, e a exclusividade de alguns
face a uma massa de gente supostamente desfavorecida; quando abandonarem a
ideia de que os preceitos ritualísticos exteriores são os caminhos únicos e
verdadeiros para Deus; quando acabarem com os heróis e os mártires, e que o céu
é para os que melhor conseguirem impor as suas ideias como o supra-sumo da
verdade; quando acabarem com a falsidade de que crer em Deus é estar investido
de super-poderes, tipo salvo-conduto para fazer o que quiser dando o direito de
destruir tudo o que se lhe opuser; quando as religiões deixarem de ser
discursos amargos e forem discursos doces, bebendo no cálice da tolerância, do
sorriso, da sinceridade, e sobretudo na pedagogia da partilha da existência com
todos, percebendo que a coisa mais feliz é estar na vida, que é sagrada porque
é de Deus, então iniciaremos uma nova era espiritual.
Até
agora, religião e ditadura têm estado inter-ligadas. No século XXI, com raras
excepções, nada parece demover os seus líderes das suas moralidades podres,
desumanas e, nalguns casos, mortíferas. A destruição jamais os assustou, porque
a morte homicida é para eles uma missão libertadora.
É
urgente acabar de vez com dicotomias de que somos herdeiros: puro/impuro,
bom/mau, santo/pecador, céu/inferno. Somos todos impuros, maus e pecadores, e
por isso a nossa experiência existencial de hoje não pode anular a de outrora,
não tem autoridade para o fazer. A nossa sociedade não serve de modelo. Há que
perceber que o tempo cronológico do nosso passado está prenhe de momentos
avassaladores. Muitos dos erros de ontem foram portas que se abriram, tal como
os erros de hoje são portas abertas para amanhã. De momentos de grande loucura
nasceram inesquecíveis surpresas da razão. Afinal, há erros não são erros, mas
possibilidades, portas escancaradas à aventura.
Levar
o Cristianismo ao mundo é transportar uma fé mundivivente, transmissora de uma
espiritualidade que não cabe num coração só. Cristianismo significa viagem. E o
que é a viagem? É caminho, que não se faz só. Há sempre companheiros de viagem,
pessoas com quem se conversa, se troca impressões, se fala da vida, enfim.
Viajar significa partir. O mesmo é dizer que o Cristianismo está sempre de
partida, ou seja, exposto às mais diversas influências. Impossível separar os
oceanos, os caminhos mais ou menos poeirentos, os impulsos da curiosidade desta
força que ninguém define. Jesus deu-nos o exemplo de itinerância, assim como
Paulo de Tarso, no sentido de que o sedentarismo é impróprio da fé no Deus
único. Ser cristão é sair, aventurar-se, descobrir (tirar a cobertura).
O
Espiritismo diz-nos que o Espírito viaja pelo universo à procura da fusão com
Deus. Em cada estação da sua viagem ele fica marcado por novas experiências. E
que experiências: raciais, étnicas, folclóricas; viaja pelos cinco continentes,
aprende os seus cantares, a força das palavras novas, pinta quadros, ergue
monumentos, descobre a força das plantas, descobre formas diferentes. Mas Deus
é sempre o mesmo.
Procura-se,
hoje, uma força desmedida que acabe de vez com o passado. Há quem acredite que
tem essa força, como um génio que saiu de uma lâmpada para satisfazer todos os desejos.
Pobre humanidade que está tão perdida.
Os
rótulos aprisionam, são próprios de uma sociedade doente, tão doente que só vê
doenças. Tolerar, perdoar e ter boa-fé têm que se despojar do peso religioso e
assumirem a sua natural laicidade (os próprios evangelhos são laicos; Jesus não
fala de si mesmo religiosamente). Não podemos continuar a fazer da religião o
lugar privilegiado dos nossos caprichos, instintos de vingança, milagres, que
nos aceite como vítimas. Religião não significa ocultação.
Já
perdemos muito tempo. É urgente acabar com o esconderijo atrás das vestes dos
santos, dos discursos dos Espíritos, ou das doutrinas. Não podemos travar o
futuro com as nossas vãs teorias, bizarras e primárias. Não podemos condenar o
passado ao exílio, fazendo da ignorância de hoje uma virtude. A fé é liberdade,
e a Espiritualidade é trabalho.
Reinterpretar
textos, factos históricos, momentos singularíssimos (não anular o kairós, momentos que quebraram os tempos na
sua sucessão interminavel) é
abrir horizontes. “Sem a reinterpretação
do passado, tornamo-nos infiéis do presente”, dizia o pastor Dimas de
Almeida. Ver-se racismo em tudo é falar de nós mesmos como apenas problema.
Apagar um texto é assassinar a existência de realidades que fazem parte do
nosso crescimento. Reinterpretar as nossas raízes não implica anular o que quer
que seja. É tornarmo-nos receptivos ao que a vida nos ofereceu.
Antes da oferta no
altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão (Mt 5: 23-24).
Antes do religioso está o outro, antes da oração está a reconciliação, a
resolução de conflitos. Trocado por miúdos, antes do género, da etnia ou da
raça está uma coisa intransponível: a Humanidade.
O
mesmo é dizer: Nem tu que és racista és pior e vales menos; nem tu que não és
racista és melhor e vales mais. O grande valor está na fé e no amor, que são os
únicos que valem alguma coisa, porque são daltónicos. Tudo se resume a fases,
períodos, momentos, vivências, transitoriedade. Sejamos como formos, não vamos
ser sempre assim. Graças a Deus.
É
tempo de nos comprometermos com o amor, com a verdade, com a luz, com a
justiça, com a educação. Não é de
templos que precisamos, nem de mais centros espíritas, nem de mais rituais. Já
temos que chegue. É de uma fé renovada o que verdadeiramente mais falta nos
faz. Quanto ao Espiritismo, como fé cristã e sem uma moral própria, portanto, ecuménica,
nunca foi, não é e jamais será um movimento racista.
Margarida
Azevedo
Referências
* Antigo Testamento, vol. IV, Os Livros
Sapienciais, Tomo 1, Quetzal Editores, Lisboa, Ec3:1, trad. F Lourenço.