sábado, agosto 10, 2024

RACISMO E ESPIRITISMO IV

 



“Para todas as coisas <há> um tempo;

E <há> um tempo para todo o assunto debaixo do céu.”

Eclesiastes*

Temos muita dificuldade em compreender, definir ou dizer qual é o nosso tempo. Traçar  um caminho, rumar a um objectivo, desenhar linhas de conduta é um desafio e tanto. Estamos embrenhados no modo como nos organizamos, não nos damos conta das influências que recebemos, que vão interferir no que rejeitamos, bem como na forma como reflectimos as grandes questões.

Efectivamente, vivemos o dramatismo das questões sem resposta: Como definir a nossa era? Para onde caminha a História? Para onde é que eu vou? E na incerteza que se faz ao largo, a nossa grande companheira de todos os dias, sentimo-nos encurralados numa apocalíptica desconfortável que, no receio de perdermos identidade, nos faz dissidentes.

Para alguns, essa dissidência está a construir discursos de ódio que, impulsiva e irreflectidamente, pretende dar ao passado um aspecto denso e soturno, do tipo eu quero libertar-me da vergonha de que me acusam, ou, vamos deitar abaixo estes tipos que nos exploraram. Com isto se pretende um conceito de eternidade sem passado, como se o eterno fosse algo do domínio do aparecente, sem referencial, em que cada vida é qualquer coisa que surge por acaso. Ora, todos os povos, toda e qualquer pessoa, qualquer animal ou planta está marcado por uma anterioridade que lhe dá sentido. Temos a História Humana como temos a História Natural. A Vida é um curriculum evolucionista em que tudo e todos estão fatalmente implicados.

Ninguém pensaria que no século XXI estivéssemos a viver fracassos, desilusões como as que vivemos. Aquilo de que o ser humano precisa é de uma mudança de mentalidade, de uma conversão à vida. Como diriam os Gregos, uma metanoia. Não é a Deus que temos primeiro que nos converter, mas à nossa História, onde Ele, naturalmente, se manifesta. Ir contra a arquê, fundamentos, raízes, fundura, é o mesmo que rejeitar o pó de que somos feitos. Não podemos permitir que se condene o passado à pena capital. Tribunais não faltam, falta a justiça, a qual deve começar no cerne de nós mesmos.

Levar o passado ao banco dos réus, e com ele os povos brancos, abafando todo o tipo de benfeitorias, como educação e progresso tecnológico-científico, é o mais escandaloso e o pior dos racismos. É cultivar o puro ódio. É justificar e cimentar a ideia de que a corrupção de hoje, que impera por toda a parte, sempre existiu, abafando a infelicidade em que os povos mergulharam, muitos com grande saudade do colonizador.

Com quem é que eu sou feliz? Quem é que me dá melhores condições de vida? Onde é a minha terra? Quem é a minha família? Eu sou feliz com quem me trata bem, quem se importa comigo; a minha terra é a terra que me dá de comer, e a minha família é quem me estima e respeita.

Racismo? Então o dos ciganos contra os negros, dos indianos contra as outras raças, dos negros entre si e para com os brancos? Desses ninguém fala, é politicamente incorrecto. Racismo, só os brancos, com o seu Cristianismo nefasto.  

Devemo-nos mutuamente a gratidão dos contágios culturais. “Um ingrato é um caloteiro moral”, dizia Eduardo Fernandes de Matos (Casa Espírita, Associação de Beneficência Fraternidade). Não concordo com o modo como o Cristianismo se expandiu, menos ainda com a ingratidão de que esta a ser alvo. Porém, ele próprio evoluiu mediante as influências que recebeu dos povos por onde se difundiu. A nossa vida caracteriza-se por um sistema de trocas, e o factor religioso não lhe está imune. Daí os tão falados, e sempre discutíveis, sincretismos religiosos, de que hoje nem nos apercebemos.

A Espiritualidade adverte para a falta de fé e de oração. Ora, quando as religiões forem organizações de paz, acima de todas as coisas, de fé e crentes em Deus, ao invés de organizações político-económicas; quando assentarem os pés na terra e abandonarem o milagroso, o sobrenatural, e a exclusividade de alguns face a uma massa de gente supostamente desfavorecida; quando abandonarem a ideia de que os preceitos ritualísticos exteriores são os caminhos únicos e verdadeiros para Deus; quando acabarem com os heróis e os mártires, e que o céu é para os que melhor conseguirem impor as suas ideias como o supra-sumo da verdade; quando acabarem com a falsidade de que crer em Deus é estar investido de super-poderes, tipo salvo-conduto para fazer o que quiser dando o direito de destruir tudo o que se lhe opuser; quando as religiões deixarem de ser discursos amargos e forem discursos doces, bebendo no cálice da tolerância, do sorriso, da sinceridade, e sobretudo na pedagogia da partilha da existência com todos, percebendo que a coisa mais feliz é estar na vida, que é sagrada porque é de Deus, então iniciaremos uma nova era espiritual.

Até agora, religião e ditadura têm estado inter-ligadas. No século XXI, com raras excepções, nada parece demover os seus líderes das suas moralidades podres, desumanas e, nalguns casos, mortíferas. A destruição jamais os assustou, porque a morte homicida é para eles uma missão libertadora.

É urgente acabar de vez com dicotomias de que somos herdeiros: puro/impuro, bom/mau, santo/pecador, céu/inferno. Somos todos impuros, maus e pecadores, e por isso a nossa experiência existencial de hoje não pode anular a de outrora, não tem autoridade para o fazer. A nossa sociedade não serve de modelo. Há que perceber que o tempo cronológico do nosso passado está prenhe de momentos avassaladores. Muitos dos erros de ontem foram portas que se abriram, tal como os erros de hoje são portas abertas para amanhã. De momentos de grande loucura nasceram inesquecíveis surpresas da razão. Afinal, há erros não são erros, mas possibilidades, portas escancaradas à aventura.

Levar o Cristianismo ao mundo é transportar uma fé mundivivente, transmissora de uma espiritualidade que não cabe num coração só. Cristianismo significa viagem. E o que é a viagem? É caminho, que não se faz só. Há sempre companheiros de viagem, pessoas com quem se conversa, se troca impressões, se fala da vida, enfim. Viajar significa partir. O mesmo é dizer que o Cristianismo está sempre de partida, ou seja, exposto às mais diversas influências. Impossível separar os oceanos, os caminhos mais ou menos poeirentos, os impulsos da curiosidade desta força que ninguém define. Jesus deu-nos o exemplo de itinerância, assim como Paulo de Tarso, no sentido de que o sedentarismo é impróprio da fé no Deus único. Ser cristão é sair, aventurar-se, descobrir (tirar a cobertura).

O Espiritismo diz-nos que o Espírito viaja pelo universo à procura da fusão com Deus. Em cada estação da sua viagem ele fica marcado por novas experiências. E que experiências: raciais, étnicas, folclóricas; viaja pelos cinco continentes, aprende os seus cantares, a força das palavras novas, pinta quadros, ergue monumentos, descobre a força das plantas, descobre formas diferentes. Mas Deus é sempre o mesmo.

Procura-se, hoje, uma força desmedida que acabe de vez com o passado. Há quem acredite que tem essa força, como um génio que saiu de uma lâmpada para satisfazer todos os desejos. Pobre humanidade que está tão perdida.

Os rótulos aprisionam, são próprios de uma sociedade doente, tão doente que só vê doenças. Tolerar, perdoar e ter boa-fé têm que se despojar do peso religioso e assumirem a sua natural laicidade (os próprios evangelhos são laicos; Jesus não fala de si mesmo religiosamente). Não podemos continuar a fazer da religião o lugar privilegiado dos nossos caprichos, instintos de vingança, milagres, que nos aceite como vítimas. Religião não significa ocultação.

Já perdemos muito tempo. É urgente acabar com o esconderijo atrás das vestes dos santos, dos discursos dos Espíritos, ou das doutrinas. Não podemos travar o futuro com as nossas vãs teorias, bizarras e primárias. Não podemos condenar o passado ao exílio, fazendo da ignorância de hoje uma virtude. A fé é liberdade, e a Espiritualidade é trabalho.

Reinterpretar textos, factos históricos, momentos singularíssimos (não anular o kairós, momentos que quebraram os tempos na sua sucessão interminavel) é abrir horizontes. “Sem a reinterpretação do passado, tornamo-nos infiéis do presente”, dizia o pastor Dimas de Almeida. Ver-se racismo em tudo é falar de nós mesmos como apenas problema. Apagar um texto é assassinar a existência de realidades que fazem parte do nosso crescimento. Reinterpretar as nossas raízes não implica anular o que quer que seja. É tornarmo-nos receptivos ao que a vida nos ofereceu.

Antes da oferta no altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão (Mt 5: 23-24). Antes do religioso está o outro, antes da oração está a reconciliação, a resolução de conflitos. Trocado por miúdos, antes do género, da etnia ou da raça está uma coisa intransponível: a Humanidade.

O mesmo é dizer: Nem tu que és racista és pior e vales menos; nem tu que não és racista és melhor e vales mais. O grande valor está na fé e no amor, que são os únicos que valem alguma coisa, porque são daltónicos. Tudo se resume a fases, períodos, momentos, vivências, transitoriedade. Sejamos como formos, não vamos ser sempre assim. Graças a Deus.

É tempo de nos comprometermos com o amor, com a verdade, com a luz, com a justiça, com a educação. Não é de templos que precisamos, nem de mais centros espíritas, nem de mais rituais. Já temos que chegue. É de uma fé renovada o que verdadeiramente mais falta nos faz. Quanto ao Espiritismo, como fé cristã e sem uma moral própria, portanto, ecuménica, nunca foi, não é e jamais será um movimento racista.

 

Margarida Azevedo

 

 

Referências

* Antigo Testamento, vol. IV, Os Livros Sapienciais, Tomo 1, Quetzal Editores, Lisboa, Ec3:1, trad. F Lourenço.

sábado, agosto 03, 2024

RACISMO E ESPIRITISMO III

 

“Todos os homens são iguais perante Deus?

- Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez as suas leis para todos.”

“A desigualdade das condições sociais é uma lei natural?

- Não; é obra do homem e não de Deus.” *


O nosso planeta é composto por cinco continentes, o que corresponde a cinco grandes espiritualidades, que, por sua vez, se subdividem numa infinidade de apresentações de que fazem parte as diferentes mundivivências culturais, a que não são alheias as raças e as etnias.

Se é certo que a mediunidade é igual em todo o lado, isto é, vidência, capacidade de cura, de efeitos físicos, intuitiva, etc., (1) o modo como é exercida varia segundo essas mesmas culturas. Assim, nas religiões da natureza, cada qual usa os seus produtos, da época e da região. Se no Brasil usam cachaça, na Alemanha será schnaps, em Portugal aguardente. Até num mesmo país, face à diversidade dos produtos da natureza, assim os materiais do rito. Por exemplo, se no norte de Portugal abunda o milho e no sul o trigo, é natural que esses produtos marquem a tradição identitária da relação com o mundo espiritual, tanto colectiva quanto relativamente a cultos domésticos. E isto é assim em toda a parte.

Na China há, na tradição ancestral, uma grande diferença entre as práticas de cura feitas na zona banhada pelo rio Yangtzé, (“importante para origens culturais do sul da China”) (2), e as do rio Amarelo, a norte, de terras férteis e alto teor de sedimentos amarelados. (3) Quando falamos de digitopunctura, acupunctura, do-in, tão divulgados no mundo ocidental, nem nos apercebemos de que estão aí as suas verdadeiras raízes.

As diferentes raças acompanham e representam essas espiritualidades, que não têm só que ver com o mundo invisível mas, e principalmente, com a nossa vida social, fazendo deste planeta um mosaico onde a diversidade não falta. Temos o privilégio da pluralidade de apresentações, com os seus rituais, os seus mitos, as suas explicações para os mistérios de que somos acometidos, como a origem da vida, do Homem, do Bem e do Mal, do sofrimento, a morte, a imortalidade, a relação do mundo material com o mundo espiritual, etc. Neste aspecto, a hierarquização racial que é feita não mais é do que o resultado da confusão entre progresso tecnológico-científico com as espiritualidades.

Não se sabe como nem porquê, mas há uma natural tendência para sobrevalorar o científico em detrimento do etnográfico. Ora, nem a Ciência tem resposta para tudo, tendo em conta os limites da razão e a sua falibilidade, nem o etnográfico é totalmente falho de verdade. As almas que habitam este mundo, todos nós, têm missões específicas. Assim, “Os espíritos de ciência não são necessariamente superiores aos outros (…). Portanto, um espírito pode ser muito avançado em ciência, mas ainda precisar desenvolver outras qualidades para alcançar um grau mais elevado de perfeição.”**

O que verdadeiramente difere em cada ser humano reside no modo como aplica os seus conhecimentos, sejam eles de que âmbito forem. Um cérebro que se dedique a criar armas cada vez mais sofisticadas não é da mesma linha de outro que se dedique ao progresso da Medicina; tal como um médium que se dedique à adivinhação não está ao mesmo nível de outro que recebe mensagens a convidar à oração. Seja na Ciência, na Tecnologia ou na Fé, é de espiritualidades que falamos. Cada um de nós é representante de uma casa muito antiga, uma vontade própria, uma natureza singular.

O meu marido veio de Angola. Não se cansa de dizer que África tem uma espiritualidade que não se encontra por cá. Há uma química, uma fé, uma fundura espiritual que vem do interior da própria terra. Ora, se o mundo tribal característico de algumas zonas do planeta está muito distante, civilizacionalmente, do mundo científico e tecnológico, por outro lado está em estreita intimidade com uma vivência espiritual que esse mesmo mundo científico e tecnológico foi, gradualmente, perdendo. Há quem não saiba, mas a chefia numa tribo é uma coisa muito complexa. Tudo está perfeitamente definido. Em África, o Curandeiro ou Xamã “cura doenças, realiza rituais espirituais”; o Sacerdote/Sacerdotisa é o “intermediário entre os deuses e a comunidade” (3); o Adivinho faz previsões e “interpreta a vontade dos espíritos” (3); o Rei Sagrado, nalgumas tribos, acumula a função de líder político com funções espirituais. (3) Cada um transporta consigo o peso de uma ancestralidade, bem como a consciência objectiva das forças espirituais que governam a Natureza, o que o investe de autoridade. O mesmo nas tribos índias. Um cacique é um líder político-administrativo, organiza a tribo e faz cumprir a lei; o Pajé é o porta-voz do Grande Espírito: líder espiritual, curandeiro (cura doenças com plantas), realiza os rituais, entra em contacto com os Espíritos, é, portanto, um líder espiritual. (3) No Budismo Tibetano, a escolha do Dalai Lama consiste num processo espiritual muito singular. Os monges viajam pelo Tibete, e não só, à procura de crianças que tenham nascido um ano após o desencarne do Dalai Lama. Uma vez seleccionadas, são submetidas a testes rigorosos. (3)

Perguntamo-nos porque é que tudo isto ainda existe? Tribais ou não, todas estas práticas existem porque são suportes espirituais do planeta. A sua existência não está vocacionada para os altos voos da tecnologia ou da ciência. Um dia, irão naturalmente desaparecer, como já desapareceram espiritualidades politeístas, tais como da Roma Antiga (com raiz em crenças etruscas, gregas e orientais), da Grécia Antiga (caracterizada pelo antropomorfismo, ou seja, os helénicos acreditavam em deuses com características humanas; na cidade de Delfos temos as pitonisas, sacerdotisas do templo de Apolo), do Antigo Egipto (religião que durou três mil anos; mistura de espiritualidades, Mitologia, Medicina e Magia), da Mesopotâmia (politeísmo complexo, composto por um panteão de deuses e semi-deuses hierarquizados segundo o grau de importância), com as respectivas civilizações que lhes deram ser. O Cristianismo está, igualmente, em profunda mudança. Está a deslocar-se, sobretudo, para a África subsaariana e para a Ásia. Na Europa, está a tomar nova configuração, mercê das convulsões sociais e políticas, da globalização, bem como dos movimentos ecuménico e inter-religioso, que vão ganhando espaço. O mundo, na sua espiritualidade, não pára.

Tudo isto tem um nome: Espiritismo, comunicação do mundo invisível com o mundo terreno. Desde sempre. E isso vai muito para além da Codificação. Esta, não inventou a comunicação dos Espíritos, nem os médiuns. A Codificação “apenas” estabeleceu um código de conduta em que o nosso comportamento social está em estreita relação de contiguidade com o mundo espiritual: aprender a discernir dos Espíritos, soltar o pensamento humano dos grilhões dos talismãs, das fórmulas, no fundo, de representações figurativas; porém, tendo em consideração que há pessoas que, na sua espiritualidade, precisam de um suporte figurativo, há que respeitar; oferece-nos, ainda, um estudo aprofundado da mediunidade, objectivando a anulação da estranheza perante os factos mediúnicos, ora como actos diabólicos, ora como sobrenaturais.

Mas não é tudo. O mais importante é perceber que essas civilizações que passaram pelo planeta são marcos importantíssimos do nosso progresso espiritual. Muitos de nós, não todos porque não progredimos ao mesmo ritmo, somos os homens das cavernas que ainda não saíram daqui. Passámos pelas civilizações antigas, reencarnámos numas e noutras, passámos pelas diferentes raças, etnias, crenças, cultos, vivências sociais e políticas, vivemos em períodos de paz e de guerra, convulsões de toda a ordem, enfim, uma mundivivência bastante complexa até chegar aos nossos dias. É consciente desta realidade que o Espiritismo não faz qualquer diferença entre Trabalhadores homens ou mulheres, raças, etnias, nacionalidades. Poucas doutrinas se podem vangloriar de tal presunção. Em Portugal, qualquer pessoa pode ser Trabalhador da Casa Espírita.

 Quanto à mediunidade, as práticas são bastante diversificadas, para idênticos objectivos. Assim: no Budismo, são inseparáveis das técnicas de meditação as técnicas respiratórias. Quem não sabe respirar convenientemente não sabe orar nem meditar; nalguns casos temos um vegetarianismo rigoroso, noutros não. Nas religiões da Natureza, temos a dança, o bater de palmas, o toque dos atabaques e muita alegria. Nas igrejas católicas, temos o órgão, o canto lírico e o vinho/hóstia; noutras igrejas, os espirituais negros, etc. No Espiritismo impera o silêncio, ouve-se música relaxante e meditativa e bebe-se água fluidificada (semelhante à água benta na igreja Católica) no fim dos trabalhos; quando se faz necessário realizar algum trabalho mediúnico de grande especificidade, dias antes há abstinência de carne, peixe, álcool, sexo.

Posto isto, esta é a única visão objectiva e certa para explicar o progresso espiritual? Não. É apenas a que funciona para os que estão abrangidos por esta fé. A nossa maior vigilância deve ir no sentido de analisar muito bem aquilo em que acreditamos. Por muito bom que seja, se cairmos no totalitarismo, aquilo em que acreditamos é aquilo que não raro nos condena. O mundo transborda de gente condenada por aquilo em que acredita. Por vezes, entrar em ruptura é um grande acontecimento. A ruptura, habitualmente, abre as portas à possibilidade…

As religiões não estão acima da crítica, da interrogação, do estudo livre e aberto. Nós dizemos que são caminhos para Deus. É verdade. Mas é mais verdade ainda que são essencialmente caminhos para nós. Quanto aos Espíritos que nelas se manifestam, é muito chato para algumas pessoas, são os mesmos em toda a parte. Manifestam-se de formas diferentes, segundo as crenças: adaptam-se desde o silêncio mais profundo, à exuberância mais ruidosa. Dizem as mesmas coisas, mas com uma linguagem adaptada às circunstâncias, ao meio, ao entendimento do auditório. Uns identificam-se mais com uns locais do que outros, mas sempre em função das suas missões. Não são seres superiores, mas são gente de bem, e é isso o mais importante. Kardec adverte: “ Os Espíritos que se ligam a locais ou coisas materiais nunca são superiores, mas por não serem superiores não têm de ser maus ou de alimentar más intenções. São mesmo, algumas vezes, companheiros mais úteis do que prejudiciais, pois caso se interessem pelas pessoas podem protege-las.” (4) Isto para que não sejamos acometidos, irreflectidamente, de ideias disparatadas de que a ausência de luz resplandecente significa treva pura. Não temos acesso nem a uma coisa nem a outra. Os Espíritos de mundos inferiores ao nosso não entram em contacto connosco: “Há Espíritos que nunca podem comunicar-se: os que, por sua natureza, ainda pertencem a mundos inferiores à Terra.” (5) Quanto aos Espíritos puros, que “ São às vezes designados pelos nomes de anjos, arcanjos ou serafins(6), bem vaidoso seria quem se julgasse com capacidade de comunicar com eles.

No fundo, sermos mais tribais ou menos tribais, citadinos ou campesinos, as Entidades que se manifestam estão em níveis idênticos. Por exemplo, um Mentor de um grupo em Portugal pode trabalhar numa tribo qualquer, num país europeu ou asiático. Não são as raças ou etnias que definem a maior ou menor assertividade quanto ao fundamento e ao ensino das Entidades. A seriedade e o respeito, a qualidade de vida social, profissional e familiar do médium são determinantes para a qualidade do trabalho. Porém, mesmo através de médiuns mais imperfeitos podem vir mensagens de grande interesse. Perguntou Kardec: “É absolutamente impossível receber boas comunicações por um médium imperfeito?

- Um médium imperfeito pode às vezes obter boas coisas, porque, se tem uma boa faculdade, os bons Espíritos podem servir-se dele na falta de outro, em determinada circunstância. Mas não o fazem sempre, pois quando encontram outro que melhor lhes convém, dão-lhe preferência. (7) Este reparo é sempre bem-vindo para desempoeirar as mentes que só aceitam e acreditam nas mensagens recebidas por gente perfeita e de grande moral, que escreve ao kilo ou que fala pelos cotovelos, inspirados por Entidades que só eles recebem. Sobre esse preconceito, a Entidade acrescenta: “Perfeito? É pena, mas bem sabes que não há perfeição sobre a terra. (…) Digamos antes bom médium, e já é muito, pois são raros.” (8)

O mesmo se verifica quando desencarna alguém que foi um sábio na Terra. “Geralmente, pensa-se que interrogado o Espírito de um homem que foi sábio na Terra, em certa especialidade, obtém-se a verdade com mais segurança: Isso é lógico e, não obstante, nem sempre é certo. A experiência demonstra que os sábios, tanto quanto os outros homens, sobretudo os que deixaram a Terra há pouco, estão ainda sob o domínio dos preconceitos da vida corpórea, não se livrando imediatamente do espírito de sistema.” (9) Isto significa que, contrariamente ao que se pensa, nem sempre são as Entidades que enganam, mas os médiuns que se enganam a si mesmos ao endeusarem pessoas que mais não são que simples e comuns mortais.

A época de Kardec viveu essa situação. Fascinados pelo deus ciência e pela super-poderosa razão, tudo o que estivesse fora do conhecimento científico era desvalorado. No entanto, perante este filho da sua época, a Entidade comunicante apelou à coerência, como sempre: “O conhecimento científico de um Espírito é sempre uma prova da sua elevação?

- Não, porque se ainda estiver sob a influência da matéria pode ter os vossos vícios e preconceitos.” (10)

É tempo de começar a ler Kardec com outros olhos. Todas as diferentes espiritualidades do mundo têm uma razão de ser. A Codificação dá-nos, com toda a clareza, essa noção. Por isso, o Espiritismo jamais foi uma doutrina racista, não é nem será; nem enquanto doutrina, nem enquanto comunicação com os Espíritos.

           

            (cont.)

 

Margarida Azevedo

           

Referências

*KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, CEPC, Lisboa, 1984, Livro Terceiro, As Leis Morais, cap. IX, LEI DE IGUALDADE, I – IGUALDADE NATURAL, 803, p.325.

**Copilot (Vide: O Livro dos Espíritos, VI, Escala Espírita, 100-113)

______________idem, III – DESIGUALDADES SOCIAIS, 806, p.326.

(1)“Ao seguirdes caminho, anunciai dizendo que “ficou próximo o reino dos céus!” Curai os doentes, despertai os mortos, curai os leprosos, expulsai os demónios.” Mt10: 7-8. Trad. F.Lourenço.

Curai: tratamento do corpo

Despertai - gr. ἐγείρω (egeirō) “despertar da morte”; sentido literal: “despertar do sono”, “levantar-se”, “acordar”. In: Copilot.

Expulsai: tratamento espiritual

As 3 principais mediunidades do cristão: de cura física e espiritual; de fala. Em comum têm a força curativa do Verbo/Palavra. Há sentidos divinos para as palavras.

(2)https://pt.wikipedia.org./wiki/Rio-Yangtzé

(3) Copilot

(4) KARDEC, A., O Livro dos Médiuns, CEPC, Lisboa, 2001, SEGUNDA PARTE – DAS MANIFESTAÇÕES ESPÍRITAS, cap. IX, LOCAIS ASSOMBRADOS, 14, p.147.

(5) ____________, O Livro dos Médiuns, FEB, RJ, 1977, SEGUNDA PARTE – DAS MANIFESTAÇÕES ESPÍRITAS, cap. XXV, DAS EVOCAÇÕES, 282, Questões sobre as Evocações, 3ª, p. 349.

(6)____________, o.c. 1984, Livro Segundo, Mundo Espírita ou dos Espíritos, cap. I, DOS ESPÍRITOS, PRIMEIRA ORDEM – ESPÍRITOS PUROS, 113, Primeira Classe, p.102.

(7)____________, o.c., 2001, idem, cap. XX, INFLUÊNCIA MORAL DOS ESPÍRITOS, Questões diversas – Dissertações de um espírito sobre a influência moral, 8, p.241.

(8)____________, idem, ibidem.

(9)_____________ o.c., 2001, idem, cap. XXIV, IDENTIDADE DOS ESPÍRITOS, Distinção entre os Espíritos bons e maus, 265, p. 281.

(10) ____________, idem, ibidem, 268, Perguntas sobre a natureza e a identidade dos Espíritos, 2, p. 287