O QUE É A MORTE! (Continuação)
e) morte não é perda de individualidade
“Que pensar da opinião de que a alma, após a morte, retorna ao todo universal?
_ O conjunto dos Espíritos não constitui um todo? Quando estás numa assembleia, fazes parte integrante da mesma, e não obstante conservas a tua individualidade. (ibid., p. 116, questão n.º 151).
Os que pensam que a alma, com a morte, volta ao todo universal, estarão errados, se por isso entendem que ela perda a sua individualidade como uma gota dágua que caísse no oceano. Estarão certos, entretanto, se entenderem pelo todo universal o conjunto dos seres incorpóreos de que cada alma ou Espírito é um elemento.”(ibid., p. 117).
Se ao desencarnarmos voltássemos ao todo universal, para quê esta luta incessante em nos separarmos do que nos causa sofrimento, esta luta pela evolução, pelo saber e pelo conhecer? Certamente estaríamos a malhar em ferro frio.
O homem está preparado para travar lutas, não só pela sua sobrevivência, mas e por acréscimo vencer na adversidade, superar as vicissitudes, pois nisso consiste o seu desenvolvimento intelectual e moral.
Banhados pela noção de que perdemos o paraíso onde tudo nos aparecia sem esforço, há quem creia que o trabalho é um castigo de Deus face à ambição do homem. Assim, trabalho e ambição andam a par na boca dos preguiçosos e dos avaros. Não sendo possível viver sem trabalhar, crêem que a morte é ponto final nas labutas profissionais e um começo de vida sem preocupações. Para isso, nada melhor que escapar a um encontro com a sua mesma essência, e cair na amálgama incontrolada do todo, onde nada nem ninguém se distingue, onde tudo é tudo.
Se assim fosse, para quê lutar, para quê aprender? Como justificar a diferença, não só de apetências, mas de gostos, vocações? Se todos somos o mesmo, porque não sabemos todos o mesmo, não falamos todos a mesma língua, não prestamos culto a Deus do mesmo modo?
Para o egoísta, a perda de individualidade seria a solução, mas não só para ele. Muitos dos doentes mentais, a quem alguns chamam loucos, vivem uma realidade sem individualidade. Essa a-individualidade é kármica e reduzida à reencarnação que estão a vivenciar, pois certamente contraíram débitos que o justificam. Por isso, a associalização que os caracteriza faz todo o sentido, na medida em que não há precisamente nada para socializar. Vivem uma realidade à parte, uma realidade que não se molda, não se altera, não se justifica. Só o individual se integra, se socializa, se evidencia. Por isso se diz em Espiritismo que crescer é desenvolver a individualidade.
Após a morte, seja em que situação for, quadro de perturbação mental ou outro, desencarne por acidente, ou por doença, idoso ou jovem, todos se encontram com a sua consciência, todos sentem liberdade e bem estar, todos vivem o seu eu.
Essa individualidade significa que cada inteligência é um ser diferenciado. É certo que é parte integrante do todo, mas enquanto um dos seus elementos constituintes, e não como algo perdido entre iguais. O lugar natural de cada coisa faz dessa mesma coisa um ser de características distintas, irrepetíveis, singulares.
Desta forma, morrer não acrescenta nem reduz capacidades. A morte não é uma forma de castigo, mas uma passagem absolutamente necessária em todos os mundos.
3. O prazer de morrer
“No momento da morte a alma tem às vezes uma aspiração ou êxtase, que lhe faz entrever o mundo para o qual regressa?
_ A alma sente, muitas vezes, que se desatam os liames que a prendem ao corpo, e então emprega todos os seus esforços para se desligar de uma vez. Já parcialmente separado da matéria, vê o futuro desenrolar-se ante ela e goza por antecipação do estado de Espírito. (ibid., p. 119).
Para o Espírito que está prestes a deixar o corpo físico, o momento da morte é o mais esperado da vida. É o mesmo que abrir-se uma gaiola e soltar a ave desejosa de liberdade; coroação de uma encarnação cheia de lutas, sofrimento, decepções; terminus de um ciclo desgastante de quem ainda tem um longo caminho por diante ruma à plenitude.
De facto, para o Espírito a morte é uma agradável sensação, pois é por seu intermédio que recupera o seu verdadeiro ser, mostrando-se tal qual é. Mas essa sensação não é idêntica em todos. Pelo contrário, ela é bem diferente, consoante o tipo de Entidade desencarnante. Uma Entidade revoltada não passa pela mesma experiência que uma outra calma e pacífica. A revolta ofusca a noção de que rejeitar a morte é uma incongruência e um absurdo, a maior das necessidades. O revoltado não percebe que desencarnar é retomar energias em um plano diferente, no qual predomina a justiça e a verdade. Ele teme perder o mundo do prazer imediato e mundano, teme encontrar um mundo de beatos intolerantes, vida de adoração permanente, uma espécie de eterno descanso segundo o pensamento católico.
Esta noção carnal da morte não extrai ao Espírito a sua vontade de sair daquilo que o prende e retomar uma vida de liberdade, de consciência, de aprendizado mais rápido, de toda uma desenvoltura moral que continua a aprender. O Espírito fala uma outra linguagem, muito embora desconhecida para o desencarnante inseguro, que é a da certeza de que, de facto “vai desta para melhor”.
Quanto à revolta propriamente dita, ela é tanto maior quanto a Entidade desencarnante é mais ou menos jovem. De um modo geral, todos abominamos com veemência a morte em pessoas muito jovens, e mais ainda em crianças. Não passa pela cabeça de muita gente que isso mais não significa que não foi necessário prolongar a estada de uma Entidade na Terra, dado o seu processo kármico. Há causas que desconhecemos, como por exemplo há uma vontade do Espírito que reencarnou em viver “tão pouco”, e deixar o envoltório físico mais cedo.
Mas a revolta tem uma raiz profunda no conceito de vida terrena, isto é, pensando que “isto aqui é o que temos de mais certo, e que do lado de lá ainda não houve quem viesse dar notícia” esta vida é que é real e verdadeira, a única. E assim se cria a infinidade de mitos descomunicantes e exclusivistas, retirando o prazer e a felicidade ao que por direito a possui.
Sendo a existência espiritual um sistema relacional e sequencial, predominantemente, tudo se encadeia, não faltando a confiança em Deus como suprema observância justíssima de nossos actos, direitos e deveres. No outro lado da vida, o noção de bem e de mal, de justo e injusto é muito clara. A consciência, voz de Deus dentro de nós, acede facilmente ao que lhe é transmitido. O desajuste, de que se queixam muitas Entidades, entre a noção do que é nosso e o que não nos pertence, advém de formas de estar completamente viradas para a experiência terrena, e como tal desenquadradas da magnitude do mundo espiritual. Isto significa que há uma noção de valor excessiva e predominantemente baseada em quantidades e não em qualidades. Vejamos este exemplo do Evangelho: “Dois homens acabavam de morrer. Deus havia dito: ‘ Enquanto esses dois homens viverem, serão postas as suas boas acções num saco para cada um, e quando morrerem, serão pesados esses sacos.’ Quando ambos chegaram à sua última hora, Deus mandou que lhe levassem os dois sacos. Um estava cheio, volumoso, estofado, e retinia o metal dentro dele. O outro era tão pequeno e fino, que se viam através do pano as poucas moedas que continha. Cada um dos homens reconheceu o que lhe pertencia: ‘Eis o meu, - disse o primeiro, - eu o conheço; fui rico e distribuí bastante!’ O outro disse: ‘Eis o meu. Fui sempre pobre, ah! Não tinha quase nada para distribuir.’ Mas, ó surpresa: postos na balança, o maior tornou-se leve, e o pequeno se fez pesado, tanto que elevou muito o outro prato da balança.” (KARDEC, A., o.c, p. 189)
Este é apenas um exemplo do muito quanto estamos em discrepância face ao verdadeiro peso dos nossos actos. O revoltado, ainda muito distante destes princípios, permanece muito tempo na sua renitência, pois sente que não pode levar a efeito a futilidade de actos estéreis, quantas vezes muito apreciados pelos de carne e osso, por demais ainda muito sensíveis às meras aparências.
Mas se a Entidade desencarnante tiver algum esclarecimento, o que não significa de modo nenhum pertença a uma escola espiritualista, mas apenas uma entrega incondicional às coisas divinas, nomeadamente cumprimento dos seus deveres profissionais e colaboração em acções de solidariedade social, agradecendo a Deus o facto de lhe permitir usá-lo como instrumento do bem, essa Entidade percebe, já em vida terrena, que desencarnar é mais agradável que reencarnar. Mais, ela percebe que reencarnar é doloroso, e desencarnar é curar-se, tratar a dor anulando-a.
O homem, esquecendo-se de que é construtor de mortes, forma radical de exclusão, anulação, expele para bem longe tudo o que não quer a fim de se transformar em algo que ainda não compreende. Por isso, dado que tudo são formas de vida muito elaboradas e das quais nós não temos um verdadeiro sentido, falar de morte ou desencarne é, neste trabalho, sinónimo.
O morto sobrevive, quantas vezes se manifesta à família a fim de dizer “Eu estou bem” ou “Estou melhor que vocês”. Em trabalho de doutrinação, quantas foram as Entidades que até hoje nos disseram: “Se tu visses como isto é belo e complexo, justo e perfeito. Nós conseguimos ver os pensamentos dos encarnados e dos desencarnados, perceber-lhes as intenções, ver o que nem vocês sobre vós mesmos sonham. São os vossos mistérios vãos, vãs filosofias, vãos princípios.
Que sabem vocês do Além com que enchem as vossas bocas? São tão ridículas as nossas preocupações quando estamos aí. Falta o sentido aguçado do bem e do mal que só o amor pode investir. Só o amor garante ao ser encarnado a certeza da felicidade cá deste lado da vida.
O meu maior prazer, mau grado as minhas dúvidas, foi o desencarne. É certo que passei um tempo que me parecia infindo no mundo do desamor, mas não era desamor. Ele foi gratificante bálsamo do Espírito de quem se limitou a viver, não direi de forma totalmente material, mas pouco dedicada às lides espirituais.
Depois saí. Foi como se desencarnasse de novo. Foi uma segunda morte, esta ainda mais agradável. A saída de um plano inferior é sempre muito agradável, é uma festa, uma grande alegria para os que trabalham connosco. É um momento de vitória, um momento muito importante. Ingressei depois em um mundo espiritual ligeiramente mais leve, no qual ainda permaneço. Foi um alívio.”
Embora não sendo textualmente por estas palavras, foi mais ou menos isto que nos ensinaram muitos dos arrependidos que já deixaram o nosso mundo terreno. Através dos seus depoimentos, aprendemos que a morte é exame necessário, ingresso na eternidade.
É nesses mundos que experimentam as mais belas sensações de felicidade, o convívio são e perfeito com toda uma irmandade dos filhos de Deus, reunida em ambiente fraterno. Aí, tudo é perfeito, tudo é sublime, tudo é luz e bem. ”O homem moral, que se elevou acima das necessidades criadas pelas paixões, tem, desde este mundo, prazeres desconhecidos do homem material.” (KARDEC, A., o.c., pp. 376-377. Nota e sublinhado do autor). Por outras palavras, o homem de bem vive, já neste mundo, uma realidade que antecipa esse ambiente perfeito conquistado após uma morte venturosa. É isto que vamos encontrar nos contos de fadas, é o que encontramos na morte de Cristo, é a estrutura da passagem bíblica da Matança dos Inocentes (ver capítulo seguinte).
A morte é um regresso ao mundo-escola por excelência, onde o contacto com o Além é o fiel da balança do saber sem reservas, sem interjeições, sem mescla. É um saber articulado, de tal modo encadeado que os diversos níveis de materialidade são apenas passagens de uma estação a outra no nosso calvário rumo à libertação.
Posto isto, a morte não pode ser de modo algum lágrimas, dor, agonia, tristeza, despedida, fraqueza, etc., mas a vitória do Espírito sobre tudo. De nada vale preocuparmo-nos com a morte, mas sim como vivemos a vida, porque é esta que, efectivamente, é eterna. É o sentido de que a investimos e o mundo espiritual em que a contextualizamos que nos garantem o ingresso, mais cedo ou mais tarde, no ambiente luxuriante da espiritualidade maior.
Barbara Diller