sexta-feira, julho 31, 2009

MORTE É FELICIDADE XLIII


A PROBLEMÁTICA DA MORTE NO EVENGELHO

(Continuação)

g) a Cruz
A cruz é o momento poético da nossa morte. De facto, a espécie humana tem destas coisas, um instrumento de tortura é transformado em marco definitivo na nossa história da mil e uma passagens pela Terra, dos mil e um desencarnes a que esta nos expõe.
Porque o Espírito é uma realidade épica, protagonista de uma epopeia cuja história é dedicada a Deus nas alturas, repleta de fracassos, desaires e lágrimas, o clímax da sua experiência é mostrado ao mundo no calvário para que todos vejam e percebam “Homem, vê o que te espera, vê quem tu és, afinal!”
Tem morte e não é um rito fúnebre, tem um caminhar doloroso e não é uma tortura. A cruz é um grito de dor na profunda alegria de uma adeus à Terra, nem que seja por um intervalo de um punhado de anos, ou uns largos milhares, ou até nunca mais. Inumando o sofrimento, ela é esperança para todos os crentes que estão a aprender a viver com a sua realidade muito própria.
Ou se aceita, e vivemos na alegria do sofrimento, ou se rejeita e se vive a felicidade da besta. Ninguém foge à cruz que lhe está destinada, ninguém vive sem cruz. Todos carregamos o madeiro das nossas incongruências. Por isso, a cruz é apenas isto, um binómio inseparável: dor e morte. Daí a linguagem e experiência plásticas que ela concretiza. Porque atrai, porque seduz, porque é bela ela não permite palcos fictícios onde cada um representaria o melhor possível a personagem que reencarna. A cruz é um surrealismo espiritual que não permite luzes, cores, brilho, mas tão somente a humildade. Ora, eis-nos chegados ao papel que ainda não representámos.
Até a nossa mediunidade faz parte da cruz. Muitos são os que pensam que os médiuns não sofrem porque tudo adivinham e, naturalmente, sabem evitar erros e fracassos. Não é assim. A experiência mediúnica é um agir que expõe o médium às mais duras provas a fim de preseverar na sua caminhada. Mediunidade é arranjo, ajuste com a vida e não existe para adivinhar, mas tão somente, e já não é pouco, colaborar com a vida, ser uma espécie de suporte a quando de situações mais dolorosas.
O médium é uma porta aberta ao bom e ao mau. Cabe-lhe saber discernir. Quando não sabe, cai em sofrimento profundo. Jesus foi o médium directo de Deus, comunicava com frequência com as Entidades superiores e, de uma natureza espiritual muito para além da nossa, sofreu mais que todos nós. É esta a leitura espírita da Cruz de Cristo. Ele veio ensinar-nos a sermos médiuns apesar de todos os contratempos.
A cruz é uma mãe que acolhe o filho sempre que este fracassa, isto é, algo que penetrou com profunda intensidade no nosso inconsciente e por isso dele dependemos como raiz causal, princípio e fim das nossas vidas. Foi esse o exemplo de Jesus. Também Ele foi recebido nos braços de Sua Mãe, também esta sofreu a dor da humilhação, da incompreensão, o peso do ódio.
No entanto, percebendo a natureza transcendente dessa alma tão nobre, Maria limitou-se a tratar as chagas da humanidade no corpo de Seu filho muito amado, a fim de que este fosse depositado no túmulo dos insultos, mas também do arrependimento.
Complementemos a nossa análise com uma breve abordagem ao simbólico da cruz.

2. O que significa ou simboliza a cruz, para o Espiritismo?
Composta por quatro ângulos rectos, ela simboliza a justiça, a solidez do carácter, a perseverança, mas também o muito sofrimento como a única força libertadora.
Já alguém viu algum homem sem cruz? Há porventura alguém sem sofrimento à face deste planeta azul? Haverá alguém que ainda não tenha derramado uma lágrima, por mais ligeira, por mais disfarçada que fosse?
Todos carregamos a nossa cruz, que mais não é que o nosso sofrimento, a nossa libertação, a nossa morte. Ricos e pobres, deficientes e não deficientes, nacionais e estrangeiros, apátrios, todos sem excepção sofremos e transportamos a nossa cruz.
Quantas vezes nos queixamos de que nada fizemos para a merecer, que um mero acaso nos trouxe aquele tão grande sofrimento, ou um surto intempestivo de ingenuidade, o nosso “Quem mal não pensa, mal não julga”. São tantas as vezes em que dizemos ser a nossa presença no Universo um esquecimento de Deus, que parece que todos os problemas do mundo nos caíram em cima.
A cruz, muito embora para a maioria o não pareça, é um encontro com a justiça na sua máxima expressividade, a eloquência de um ajuste de contas com o que fizemos, aguçando-nos o sentido para que, num futuro não longínquo, tenhamos a tão ambicionada paz no coração.
O amor é um filho muito querido desses quatro ângulos rectos. O amor é a justa medida entre todas as coisas, visíveis e invisíveis. Filho de uma dor muito profunda, para os orientais ele é o lótus que nasce no lodo das nossas fraquezas, na opacidade da nossa cegueira para florir, lindíssimo, no Espírito; para os ocidentais ele é a rosa vermelha do sangue que quantas vezes ele exige que derramemos, que entreguemos a vida pelo que muito sentimos, pela representação que nos fazemos de um equilíbrio que nos faz vibrar o íntimo das nossas almas, garantindo-nos a libertação e, consequentemente, a felicidade para sempre.
Sem cruz, como garantir a felicidade, o sorriso, o gosto doce da vitória? Como alcançar a noção da nossa urgência em nos modificarmos? Como saber que a dor que causámos magoou, ofendeu, perturbou? Como saber que o nosso não gostar de alguém porque diz, faz ou pensa de forma oposta à nossa, ou simplesmente diferente, não é um modo nem modelo correcto de vida? Que é, no fim de contas, a cruz?
O ódio, o rancor, a maledicência, a inveja, o ciúme que, no seu conjunto, matam mais que qualquer doença física, são parte da cruz; a outra parte são as nossas doenças do corpo, as complicações de que a vida se reveste, o inesperado doloroso que nos entra portas dentro; o falso amigo, o excesso de confiança em alguém que não merecia, as desilusões, uma ligação amorosa que terminou de forma intempestiva; a solidão, o sentir-se incompreendido, desprezado, estrangeiro no seu próprio país, a falta de partilha de ideias e ideais, a luta incansável mas sem frutos, o sentir-se controlado por algo que não sabe explicar, e tudo o mais que a vida nos traz, é a nossa cruz.
Mas é este o sentido de cruz que nos advém do Evangelho? É esta a imagem que Jesus nos legou ao ser crucificado, a saber, a vitória dos maus sobre os bons, ou a de um sofrer por sofrer? Não, não é essa a mensagem do Mestre.
Com Jesus nós aprendemos que a dor é doce bálsamo que eleva o Espírito às mais altas falanges do Universo magnífico, que o sofrimento não é igual para todos, mas que todos sofremos e que, por isso mesmo, devemo-nos mutuamente a ajuda para carregar as nossas dívidas até ao calvário, que nos transportará à sublimidade do amor eterno.
Se conseguíssemos perceber, ainda que ao de leve, o que Jesus sofreu ao dar a vida por nós de forma tão incisiva, tão crua e tão objectiva. Se conseguíssemos compreender como deve ter sido dolorosa aquela experiência espiritual, mostrando-nos que a vida se prolonga, reinante para os que não vacilarem, os que tiverem coragem e souberem dizer não à negatividade.
Mas não compreendemos nem sentimos nem imaginamos, sequer, como terá sido aquela manifestação de um tal amor tão grande. Somos tão egoístas, queremos tanto só para nós, lemos tão mal o Evangelho, sentimo-lo tão pouco, estamos tão mais preocupados com as opiniões dos outros (sempre inferiores ás nossas), que nos colocamos em pedestal de tola vaidade pensando que somos alguma coisa, que a nossa vontade é soberana.
Estamos tão longe dessa capacidade de amar, estamos tão infinitamente noutro lado do universo, que não temos, ainda que ao de leve, uma noçãozinha da mais ténue sombra da grandiosidade da alma de Jesus.
Para os espíritas, a advertência do codificador envolve-se perfeitamente nesta problemática quando apela “Espíritas, em primeiro lugar amai-vos, mas em segundo instruí-vos.” A que amor e a que instrução se refere Kardec? Ao esclarecimento, no seu conjunto. Na ignorância não há amor sincero, não há instrução válida. Na ignorância a cruz é um erro de Deus. Por isso, não faltam os leitores de sina, os adivinhos da boa fortuna que, usando e abusado da credulidade alheia, mexem no sagrado de forma desonrosa.
Os espíritas sabem que só o amor e depois a instrução garantem a noção de verdade, tão necessária para compreendermos o sofrimento que nos acompanha do nascer ao morrer. Somos humanos na medida em que nos acompanhamos nesse sofrimento, nos amparamos e deixamos tudo para acudir a um amigo, a um necessitado qualquer. E tudo o que fizermos a esses é ao Mestre que o fazemos, porque nada fica esquecido, nada está perdido. Fazer o bem, sempre, seja a quem for.
O verdadeiro espírita é um cristão na máxima autenticidade, como todos os que pretendem apenas fazer o bem. Esses são o que suportam sem revolta, sem queixume, sem tristeza. A cruz é para eles o símbolo da evolução do Espírito, a assunção deste a Jesus e daí ao Pai Supremo.
É no sofrimento que tomamos a noção de que as nossas teorias nada valem, a nossa racionalidade é mínima e entra em colapso, as sensações, advindas numa multitude de direcções, tomam-nos e, caso não tenhamos uma fé fortalecida no Evangelho, vacilamos e entramos em colisão connosco mesmos.
É nessa altura que se cometem as maiores loucuras, praticam as acções mais irreverentes e impensadas, em que se dizem muitas coisas que, mais tarde, trazem amargos arrependimentos. Todavia, em sua sabedoria feita de luz, o Pai Supremo absorve esse arrependimento e converte-o em força para o Espírito sedento de amor. É quando a cruz se torna mais incisiva. Senão, como contrair uma dívida e não a pagar? Mais, a perfeição é tão grande que, na directa proporção das nossas capacidades cognoscitivas, assim nós sentimos a necessidade de pagar o nosso erro repondo a ordem que afinal não se perdeu, apenas mostrou o seu lado ainda primário.
Neste sentido, a morte nunca poderia ser um fracasso, mas uma viagem ao mundo dos sonhos, a magnificência dos príncipes e princesas, das fadas-madrinhas que preenchem o nosso universo espiritual e alentam-nos a vida, entidades que não são mais que a pluralidade dos Espíritos que vivem e povoam o cosmos, a volta à simplicidade representada nas crianças, o menino que somos mau grado a representação que nos fazemos de nós mesmos. Morrer é ingressar noutro reino, expor-se a outras leis, enfrentar-se e perder temeridades.
Morrer na cruz é ingressar no palácio da nossa consciência que, se for pesada, apenas nos conduzirá às masmorras nas caves profundas e tenebrosas. Há que estar vigilante, há que cuidar dos pensamentos para que estes não sejam porta aberta ao lobo mau ou às feiticeiras e bruxas más. Há que lutar sempre e com força e coragem, perseverança para que a cruz não se repita e, em cada vida que se vai seguindo, ela seja progressivamente mais leve.
A cruz de Jesus não foi ingresso no vazio desconhecido e incerto. Jesus veio acalmar a humanidade assustada dizendo-lhe "Eu também estou sujeito à passagem!" Sendo o nosso maior conflito o dos nossos mesmos valores, Jesus veio mostrar que a cruz é a todos indispensável, porque todos expostos a idênticas provas, capazes dos mesmos anseios, mas também e por isso mesmo companheiros da mesma viagem, da qual Jesus é esse companheiro maior.
Um dia, dessa cruz nascerá rosa que nós somos, por agora em embrião, perfumada e bela, macia e cheia de viço. Será quando o nosso Espírito tiver superado este fado reencarnacionista, quebrado todas as ansiedades, todo o sofrimento e, leves e belos, povoaremos o Universo de agradáveis perfumes.

Queridos Amigos, como é habitual, nesta altura do ano fazemos uma interrupção de um mês. Umas boas férias, para aqueles que vão de férias e que vos Deus abençoe a todos.

Barbara Diller

segunda-feira, julho 27, 2009

MORTE É FELICIDADE XLII

A PROBLEMÁTICA DA MORTE NO EVANGELHO
(Continuação)

f) bem-aventuranças

São bem-aventurados todos os que sabem amar, ainda que aflitos nas suas dores profundas.
Os pais que desesperam vendo seus filhos mergulhados nas teias da droga.
Os pais que visitam seus filhos nas grades das prisões.
Os órfãos que pernoitam nas ruas.
Os mendigos ao sabor das intempéries, do desprezo dos que tudo têm e esbanjam para mostrar que são ricos e poderosos.
Os que vêem seus bens perdidos de uma hora para a outra num cataclismo que tudo levou.
Os que vivem horas amargas na solidão.
São bem-aventurados todos os que sabem amar, ainda que pobres de espírito aos olhos da humanidade.
São os olhos de infinita bondade que fazem dos corações portas escancaradas ao perdão.
São os ouvidos sempre prontos para a voz dos que choram de saudade.
É a doce e suave carícia dos que, sem mácula, em tudo vêem representação divina.
É a palavra calma e segura que alenta na fraqueza e traz o sorriso ao mais fraco.
São os que, entregues ao muito bem quererem fazer, muito amam, ajudando com suas preces o caminhar de todos para a salvação.
São bem-aventurados todos os que sabem amar, mesmo que o vulgo não veja como são puros de coração.
Eles são cegos ao infortúnio.
Sorriem na dor mais profunda.
Perdoam na situação mais caluniosa.
Calam o testemunho que condena.
Sorriem àquele que os entrega.
São bem-aventurados são todos os que sabem amar, mesmo que o vulgo não veja como são mansos e pacíficos.
Não sabem erguer a voz, porque a verdade é silenciosa.
Não sabem pegar em armas, porque a verdade é pacífica.
Não sabem dominar, porque a verdade é livre.
Não sabem desconfiar, porque a verdade é transparente.
Não sabem invejar, porque a verdade é de todos.
Não sabem caluniar, porque a verdade é perfeita.
São bem-aventurados todos os que sabem amar, mesmo que o vulgo não sinta a sua misericórdia.
Não têm com que se reconciliar, porque de ninguém se afastam.
Não têm que perdoar, porque nada os ofende.
Não têm por que chorar, porque nada os entristece.
Não têm com que se sacrificar, porque tudo é prazer.
Não têm palavras para julgar, porque tudo para eles é justo.
Não têm nada para repreender, porque tudo é representação de uma justiça perfeita.

São estes os que se têm como os mais culpados, os mais ingratos. São estes os portadores da trave no seu ver sempre limitado, porque a ânsia de chegar até Deus dirige de tal modo as suas vidas que tudo neles é força amarga de um caminho que, embora perto quando comparado com o dos outros homens, é ainda muito distante se comparado com o dos anjos.
Encontramo-los nas lides mais escondidas e preservadas da exuberância que ilude e afasta do verdadeiro sentido da vida terrena, no aconchego espiritual da humildade, na alegria dos que ao amor se entregam de alma e coração. São estas sementes que um dia darão flor entre os cardos que se extinguirão, assim como a glória derrubará o sofrimento.
(Continua)


Barbara Diller

domingo, julho 19, 2009

MORTE É FELICIDADE XLI


A PROBLEMÁTICA DA MORTE NO EVANGELHO

(Continuação)

d) qual é o valor mais alto?

A transcendência. Que sentido teria o Evangelho sem o apelo constante ao mundo invisível? Por mais que cada um o interprete a seu contento, teremos que entrar nesse mundo via Jesus, ainda que muitos o ironizem, apelidem de loucos os que nesse mundo acreditam. Não é que esses que assim procedem não o aceitem no âmago de seus pensamentos mais recônditos. Apenas temem ser enfrentados no seu orgulho, denunciados nas suas fraquezas.
A morte, compreenda-se, é causa de desassossego da vida, reflexão sobre a nossa postura quotidiana nas coisas mais aparentemente banais. É desses desarranjos que a sociedade se ergue com seus mecanismos de culto colectivo, tentando, pela força psicomagnética do grupo, impor regras que cheguem mais alto. Assim se construíram imagens, mais ou menos amenas, mais ou menos terríficas, se implementaram reacções que, na sua exuberância excessiva tocavam a loucura, o desapossado de si mesmo mas possuído por outro ou outros. Foram os cultos do deus Dionísio, foram os mistérios de Eleusis, foram os costumes pitagóricos, os funerais de raiz visigótica, etc.
Mas este desejo de infinito, apelativo à presença dos mortos na vida dos vivos, ou à presença dos vivos na vida dos mortos, não ensina nem explica as causas reais desse convívio tão estranho. O mundo precisou então de um profeta do Além que mostrasse a verdade do outro lado da vida. Jesus Cristo encarna, o Grande Espírito mostra-se como Homem e diz ao homem que ele mesmo é capaz de grandes feitos espirituais, maiores que os dos próprios Espíritos se para tanto souber amar.
Desta forma, a infinitude do amor torna-se espaço limitado, tangível, convivente mas não pactuante com todos os que tinham actos duvidosos, a todos ensina que a salvação do Espírito é possível quando este é tocado de arrependimento. Porém, não é imperativo que se diga “Senhor, Senhor”, apenas basta que se cumpra, isto é, se tenha interiorizado as máximas de Deus através dos Dez Mandamentos.
Seguir esses preceitos é um estado de alma, como por exemplo conseguir a felicidade mesmo nos momentos que pareçam mais adversos. Ser cristão é, assim, ter consciência de que nada existe de doloroso quando comparado com a graça e a felicidade que espera o homem de fé ao partir para o outro lado.
Vejamos que a hostilidade e a angústia definem parte considerável das nossas intimidades para com a morte. São os nossos delírios afectivos, tais como a perda do prazer em todas as suas nuanças, o culto narcísico da auto-imagem perante o outro, a representação social de modelos de vida completamente desfasados em relação ao Espírito e face ao modelo ditado por Jesus Cristo.
De facto, não é fácil seguir um rei que governa noutro mundo, que apesar disso nos quer encaminhar para ele, que nos diz que a vida cá deste lado é uma passagem, uma aventura dolorosa. Não é nada fácil ser profeta da dor, da humilhação, da fraqueza ou do calar social de injustiças. Como perdoar ao violador os seus actos cruéis, ao assassino que ceifou com suas armas vidas a este mundo; como aceitar os maus tratos a idosos e mesmo a crianças? Por que padecem uns nas mãos de outros ficando os maus sempre impunes, ou quase sempre? Onde vão alguns buscar a força para dominar tantos? Por que são uns tão fortes e poderosos, e outros fracos, obedientes e submissos? Deus parece que dorme, que se esquece de muitos dos Seus filhos abandonando-os aos seus dissabores.
Jesus passou por tudo isso e muito mais, e nisso consistiu a Sua lição à humanidade sofredora. O Seu exemplo é o do clímax do sofrimento, aceitação incondicional da dor como forma de superação da morte.
(Continua)

Barbara Diller

quinta-feira, julho 09, 2009

MORTE É FELICIDADE XL


A PROBLEMÁTICA DA MORTE NO EVANGELHO

(CONTINUAÇÃO)

c) a matança dos inocentes

Este episódio é talvez dos mais problemáticos da temática em análise. Se o Evangelho é um corolário de perdão, se Jesus Cristo veio trazer uma noção de amor que passa pelo esquecimento das ofensas, por que não foram perdoados os que mataram tantas crianças, que provocaram tanta dor, tanto sofrimento àqueles pais que, de um momento para o outro, se viram sem os seus filhos de tenra idade?
Outra questão: Por que foi permitido, tendo como origem a realeza espiritual de Jesus, que fossem assassinadas tantas crianças? Como pode um ser que vem falar de amor, e ser o Filho de Deus muito amado, simultaneamente ser causador de tanto sofrimento, principalmente junto dos mais fracos, indefesos, pobres, isto é, aqueles que irão ser precisamente parte significativa do alvo da sua mensagem? Visto de outro modo, como é que para salvar Jesus, apenas uma criança entre muitas, se matam tantas outras? Isto não mancha a mensagem de amor? Isto não é uma forma de fazer justiça, duvidosa justiça, tendo como carrasco o poder do império romano na pessoa de Herodes? Não é uma forma de manipular a opinião do povo face ao grande império?
Vejamos como o Espiritismo responde a estas questões.
A vinda de Jesus envolve-se ela mesma nas teias do mistério, por meio dos próprios reis magos que seguiam uma hipotética estrela muito brilhante, a qual lhes indicava o caminho para o local onde Jesus nascera. Que estrela seria essa? É importante analisá-lo para melhor compreender a decisão de Herodes. Para isso, tomemos em atenção a seguinte passagem de Mateus:

“Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, chegaram a Jerusalém uns magos vindos do Oriente. ´ Onde está o rei dos Judeus que acaba de nascer ? _ perguntavam. Vimos a Sua estrela no Oriente e viemos adorá-Lo´. Ao ouvir tal notícia, o rei Herodes perturbou-se e toda a Jerusalém com ele.”(Mt 2, 1-3).

Pergunta-se: Terá sido mesmo uma estrela o que efectivamente apareceu no firmamento? Holger Kersten responde: “(...) se tivesse realmente surgido alguma constelação especial naquela ocasião, seria hoje detectada facilmente pelos computadores.” (1989, p.99). E mais adiante acrescenta: De acordo com a crença popular da época, no momento em que nascia uma pessoa, nascia também uma estrela no céu.” (ibid., p. 101).
De facto, no texto de Mateus é dito “vimos a Sua estrela.”, o que dá a entender que há uma certa familiaridade entre o nascimento e as estrelas, entre certos fenómenos do firmamento e a encarnação, facto que se tem perpetuado até aos nossos dias. Repare-se que as expressões “a minha boa estrela”, “a minha estrela protectora”, “há sempre uma boa estrela na vida”, entre outras, continuam muito comuns na vida quotidiana, como representativas da crença entre o sujeito e a sua relação com os aconteceres celestiais.
Se alargarmos este facto à crença nos astros, então estamos perante um fenómeno tão antigo que se perde na noite dos tempos. Digamos que Jesus também tinha a Sua protecção dos astros, nasceu em determinado signo do zodíaco, num momento, do ponto de vista estelar, crucial para a história da humanidade. Desta forma, marcou decisivamente o calendário, a contagem do tempo entre antes e depois da Sua vinda, retratou atitudes morais, alargou o nosso aparelho conceptual baseado em sentimentos relativamente ao modo como nos colocamos perante Deus, definiu o amor como sentimento da máxima transcendência, introduziu no coração dos homens o conceito de perdão como algo infinito, cultivou a fé, a esperança e a caridade como as grandes alavancas do Espírito, as únicas capazes de superar o sofrimento.
Mas tudo isto, que só viria a ser feito muito mais tarde, careceu ou foi previsto através de uma estrela no céu, indicadora do caminha para o Messias, o Grande Salvador? Kardec, numa outra perspectiva que não a do teólogo Kersten, mas perfeitamente complementares entre si, afirma: “O certo é que, naquela circunstância, a luz não podia ser uma estrela. Na época em que o facto ocorreu, era possível acreditassem que fosse, porquanto então se cria serem as estrelas pontos luminosos pregados no firmamento e susceptíveis de cair sobre a Terra; (...)
Entretanto, por não ter como causa a que lhe atribuíram, não deixa de ser possível o fato da aparição de uma luz com o aspecto de uma estrela. Um Espírito pode aparecer sob forma luminosa, ou transformar uma parte do seu fluído perispirítico em foco luminoso. Muitos fatos deste género, modernos e perfeitamente autênticos, não procedem de outra causa, que nada apresenta de sobrenatural.” (1977, p.312).
O que é o fluido perispirítico?
Para isso, tomemos em atenção o fluido cósmico universal, isto é, a matéria elementar primitiva a qual tem a capacidade de se transformar e modificar. Ora, este tem a capacidade de se apresentar em dois estados distintos: o de eterização ou imponderabilidade e o de materialização ou ponderabilidade. Cada um destes estados é responsável pelos fenómenos espirituais, os do mundo invisível, e o segundo aos do nosso mundo terreno. Estes pertencem ao mundo da Ciência, os primeiros ao mundo psíquico, sobre os quais o Espiritismo se debruça uma vez que se envolvem na vida do Espírito.
Quando estamos encarnados, estes fenómenos psíquicos apresentam-se “materializados”, não querendo com isso dizer que percam capacidades, que estejam mais limitados, mas apenas que usam o fluido perispirítico segundo uma apresentação que passa pelas leis naturais relativas ou particulares ao nosso planeta, como por exemplo a nossa capacidade mental. Sendo as ondas mentais a maior de todas as forças, nada é maior que a força do pensamento, o fluido perispirítico apresenta-se segundo os parâmetros dessa mesma evolução. Por outras palavras, um Espírito primário não pode usar o perispírito como um Guia orientador de um grupo de Espíritos.
No entanto, a diversidade evolutiva dos encarnados é responsável pelo que habitualmente se chama de milagre ou fenómeno incomum. Desconhecendo as leis que lhe estão de base, são tidos como extraordinários os fenómenos que apresentam nuanças que fogem da alçada da leitura comum da Ciência, mas que são tão corriqueiros como quaisquer outros, sujeitos às mesmas leis, sujeitos a experimentação, colocação de hipóteses, matematizáveis.
De tudo o que o fluido cósmico universal produz, o mais importante é o fluido perispirítico, ou corpo dos Espíritos. Ele é matéria como o nosso corpo carnal, apenas se trata de uma variante ou um estado diferente de apresentação da mesma. Segundo os mundo em que o Espírito vive, assim ele extrai o perispírito (corpo semi-material), dependendo do seu progresso moral. Podemos dizer que o fluido perispirítico extrai daí, igualmente, os elementos necessários para tomar as diversas aparências de acordo com a sua vontade. E assim toma as mais diversas aparências, consoante as necessidades. No caso de Jesus, a Entidade tomou a aparência de estrela pois que, desse modo, seria mais facilmente percebida,· dada a mentalidade da época.
Temos assim a perspectiva espírita, que podemos sintetizar deste modo, não apenas como interpretação pessoal da passagem acima referida da obra A génese, mas também com base nas comunicações espirituais recebidas em Centros.
Não houve qualquer fenómeno extraordinário no céu, a quando do nascimento de Jesus. É certo que, tratando-se de uma encarnação tão sublime, algo se supõe que deva acontecer para a receber. Todos nós, quando esperamos uma visita, preparamos as nossas casas o melhor que podemos. Compramos flores, preparamos uma refeição com mais aprumo, pomos sobre a mesa uma toalha mais bonita, no rosto um sorriso de felicidade.
O mesmo aconteceu com Jesus. Ele não veio à Terra por meio de alarido, nem com pompa. Preparou para nós a Sua casa de Amor, enfeitou-a com as Flores da Tolerância, convidou-nos para o Banquete da Palavra de Deus e sobre a Mesa da Paz dividiu o Pão e abençou-o. No rosto, o sorriso da Fé, Esperança e Caridade como os grandes estandartes do Espírito.
Quanto ao modo como foi recebido, nada tem a ver com fenomenologia mágica, apenas com o mais comum dos acontecimentos. Não foi o extraordinário que O marcou, mas o comum. Se por meio Dele o homem, tão fraco e tão ignorante, pode atingir Deus, de igual modo o comum que o caracteriza pode ser extraordinário. Numa simples manjedoura pode nascer um grande homem.
No entanto, a Sua vinda foi preparada como não foi a de mais nenhum dos grandes homens da Terra. Profetas houve que O antecederam e que tiveram como missão, entre outras, alertar para a vinda de um salvador, alguém verdadeiramente superior.
Por outro lado, a estrela a que se refere o texto mais não é que uma Entidade que tomou aquela forma. Todos temos os nossos Guias espirituais, as nossas companhias do Além. Jesus também as tinha. Aliás, a preparação para a Sua vinda, no Astral, foi exaustiva e demoradamente preparada. É natural que, ao encarnar, essa força permanecesse com Ele e se manifestasse, o que não choca a razão pois não são poucas as referências a manifestações de anjos, quer em sonhos, quer durante a vigília.
Todavia, sobre este ponto, cremos que não vale a pena perdermo-nos em questões sobre o modo como o Além se comportou face a esta encarnação tão sublime. Tudo o que disséssemos não passaria de mera conjectura. A sublimidade de Jesus é uma realidade que continua a escapar-nos. Apenas podemos falar do que se passou na Terra e para isso temos os magos. Sábios e versados em astrologia e matemática, eram igualmente exímios na magia. Foram eles que, na altura, melhor compreenderam a magnanimidade de Jesus. Saliente-se que a magia dos magos em nada tem a ver com o que entendemos hoje. Na altura, tratava-se de altos estudos através dos quais se conseguia prever acontecimentos, interpretar fenómenos, explicar ocorrências, isto é, ciência. Na época, os sábios eram chamados de magos, o que significava aqueles que detinham os conhecimentos profundas da Natureza. “No texto grego original, os sábios eram designados pelo nome de magoi ( magus refere-se a um sacerdote persa seguidor de Zoroastro; é aí que têm a sua origem os nossos termos mágico, magos).” (KERSTEN, H., o.c., p. 102. Sublinhado do autor).
Só por curiosidade, duvida-se que os magos tenham sido reis. Se hoje ainda chamamos bruxo a alguém que sabe muito, também chamamos rei ao que é detentor de alguma particularidade, nomeadamente artística: temos o rei da música rock, pop, etc. Desta forma, é natural que chamassem reis aos magos, isto é, àqueles que consideravam sábios. “Quem acrescentou, pela primeira vez, a palavra ´reis´ aos magos da história bíblica foi Cesário de Arles, no século VI.” (ibidem.)
Retomemos o fio da nossa reflexão. Diz o texto de Mateus que Herodes e toda a Jerusalém ficaram perturbados com a notícia dada pelos magos. Isto é indício de que ninguém sabia da natureza espiritual de Jesus e que, ao ouvir falar de um rei, o povo ficou incomodado e Herodes, segundo a lenda, sentiu receio que algum soberano lhe viesse tirar, ou disputar a coroa.
Do ponto de vista espírita, isto é mais complexo. Para o compreender temos de tomar como ponto de referência a seita judia, os essénios. Fundada no ano 150 a. C., no tempo dos Macabeus, era um movimento cujos membros viviam em mosteiros, tendo normas morais e religiosas muito precisas. Defendiam a imortalidade da alma, o amor eterno a Deus, criam na ressurreição, eram pacifistas e faziam votos de celibato.
De moral austera, eram o oposto ao comportamento e a tudo o que Herodes defendia Esperavam ansiosamente a vinda de um rei, isto é, um salvador para os libertar da tirania do rei. Este via-os como uma ameaça constante. “Hoje, sabemos que o mosteiro de Qumran, ao lado do Mar Morto, ficou abandonado durante dez anos, porque os seus habitantes foram banidos por Herodes, o Grande. Esta pode ser uma das causas do ódio do rei que o levou a ordenar a morte das crianças.” (KERSTEN, H., o.c., p.103)
Mas não só. Mandar matar as crianças até dois anos, concretamente, tem a ver com o facto de quando os magos chegaram a Jerusalém, Jesus deveria já ter uns dois anos de idade, “(...) Júpiter já deveria estar no segundo ano da sua conjunção com Saturno, e assim Jesus teria nascido provavelmente no ano 7 a. C.” (ibid, p. 101). Isto parece razão suficiente para que Herodes mandasse matar todos os meninos recém nascidos até à idade de Jesus idade.
Porém, isto é uma forma relativamente simplista de apresentar o ódio do rei pela seita essénia, profundamente reservada nos seus estudos, discreta nos seus saberes, iniciada nos mistérios ocultos. Ansiando e prevendo a vinda de um messias, juntamente com o alarido em torno das palavras dos magos, a Entidade com aspecto de estrela, ou do que fosse, incomodaram profundamente Herodes, que assim se via ameaçado no seu poder, mas também a própria seita que, impaciente, desejava ver-se protegida por alguém vindo do outro mundo e que a defendesse da mão do rei.
De facto, não era propriamente apenas contra Jesus que Herodes se insurgiu, mas também contra a ameaça que Ele representava pela voz dos essénios. Em verdade, eram estes o seu alvo, era em sua direcção que estava apontado todo o seu ódio. Quanto a Jesus, “É muito provável que a criança de quase dois anos, ao ser encontrada e visitada, estivesse sob a guarda de pessoas que sabiam a origem divina do menino.” (ibid., p. 102).
Posto isto, já temos a linha condutora da nossa reflexão: Será ou não este um dos episódios que poderiam manchar a mensagem de Jesus? As crianças massacradas, seriam mesmo inocentes? Este é um dos pontos capitais da leitura espírita desta passagem do Evangelho. A mensagem de Jesus não sai manchada, uma vez que Ele é parte significativa do alvo de perseguição, e porque as crianças não podiam ser inocentes. Quem era, então?
Seres portadores de um forte peso kármico, extensível às respectivas famílias. Lembremos que as crianças em nada são crianças, a não ser no corpo. O Espírito não é criança. O sacrifício dos “inocentes” é uma forma de pagamento de débitos passados como outra qualquer. Ela aconteceu, foi narrada num documento da época, por essénios contemporâneos de Jesus.
Espiritualmente, sabemos que nada acontece que tenha a ver com injustiça, mas com situações pontuais oriundas de acções praticadas no presente ou no passado mais ou menos remoto. Desencarnar na infância choca-nos sempre, principalmente quando em situações de guerra ou tortura, massacre, etc. No entanto, para o Espírito desencarnante isso é um alívio.
O modo ou processo de desencarnação é sempre mais ou menos doloroso para o Espírito consoante o progresso moral do mesmo, e isso independe da idade carnal. Saliente-se ainda que este ponto de vista é defendido, não apenas pelo Espiritismo, mas também pelas doutrinas reencarnacionistas em geral, com idêntica aplicação na passagem sobre a morte dos inocentes, no Evangelho.
Por fim, “Morto Herodes, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egipto, e disse-lhe: ‘Levanta-te, toma o Menino e Sua mãe e vai para a terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a vida do Menino’.” (Mt 2, 19-20).
O modo como a ocorrência está descrita dá a entender que houve uma vingança do Astral sobre os que atentavam contra o Menino. É muito possível que isso dependa da sensibilidade do leitor, mas há que perceber a passagem segundo um ponto de vista espiritual.
Dizemos comummente que os bons morrem mais cedo e que os maus cá vão ficando por mais tempo. Sem nos darmos conta, proferimos uma verdade insofismável. Os bons são os que já ultrapassaram a craveira espiritual do planeta, como tal vão encarnar em mundos mais evoluídos. Os maus são os que precisam de permanecer mais tempo nas teias da matéria, como processo depurativo, a fim de lhes ser prolongada a oportunidade que tiveram para vir pagar suas dívidas kármicas. Não se modificando com isso, são “puxados” do planeta, uma vez que de nada vale continuarem aqui.
Depois, após muito sofrerem no mundo dos Espíritos, e então tocados pelo arrependimento, regressam após uma preparação exaustiva, a fim de continuarem o processo que interromperam. Isto não significa que seja taxativamente assim, mas é isto que compreendemos das mensagens recebidas.
Assim, “morreram os que atentavam contra o Menino” não implica nem significaria nunca um acto de vingança espiritual, apenas que chegou ao fim o cumprimento kármico de uma etapa da vida social da comunidade, bem como a acção dos respectivos protagonistas ou agentes de sofrimento.
Quando nós falamos de vingança, esquecemo-nos de que só vamos até onde nos é permitido ir e que, portanto, a sua acção só recai naqueles que com esse sentimento se identificam. Os Espíritos superiores desconhecem a mesquinhez dos pensamentos turbulentos, e os inferiores só agem com a permissão dos superiores, segundo leis irrevogáveis. Podemos dizer que, em verdade, a vingança não é sua tarefa. São os seres encarnados que, na sua negatividade, afastam de si os bons Espíritos e chamam, com seus comportamentos e pensamentos trevosos, os de condição muito inferior, os quais, por sua vez, não querem por perto os superiores. No entanto, todas as acções e respectivas colheitas que implicam seguem sempre a lei dos afins e do merecimento.
Há que compreender que o Evangelho não é uma obra de magia, mas um texto cujo raciocínio é do foro do Espírito desencarnado e não do ser material que nós ainda somos. Percebê-lo na sua magnitude ainda não é para nós, muito embora os Espíritos estejam em contacto permanente com a Terra, no intuito de melhor nos esclarecerem quanto à profundidade de seus ensinamentos. Porém, não podem ir além das nossas capacidades cognitivas, ainda muito rudimentares.
· Ver: KARDEC, A., (1977), A génese, cap. XIV, pp. 273-288.

(Continua)

Barbara Diller