JESUS,MESSIAS PARA OS CRISTÃOS,NÃO PARA OS JUDEUS II
Fazer de Jesus o Messias é atribuir-lhe uma
identidade dependente de uma função sobre a qual jamais houve consenso entre os
autores dos evangelhos, e simultaneamente onde coexistem uma multiplicidade de
aspectos em confluência, vindos das diversas comunidades, nomeadamente pagãs. Trata-se
de uma identidade construída sobre o quadro simbólico das doutrinas vigentes,
com os seus interesses próprios; ergue-se igualmente enquanto processo
interpretativo baseado em fé de raízes ancestrais.
O que são, na verdade, os quatro evangelhos?
Não são obras narrativas em directo, mas textos interpretativos, construídos para
as respectivas comunidades, utilizados nas suas liturgias, póstumos, isto é,
tardios face à crucificação, e que traçavam uma imagem de Jesus segundo as
necessidades dessas mesmas comunidades.
Assim,
dentro e fora do Judaísmo e do Cristianismo, o Messianismo levanta grandes
questões existenciais: Para onde caminhamos, talvez a mais incisiva; por ouro
lado, crer no messianismo o que acrescenta à nossa condição existencial de
humanos finitos, limitados, dependentes da intervenção de forças superiores na
nossa vida? De que forma o messianismo dispõe uma resposta ao dramático quão misterioso
viver humano? Estamos no universo profundo da fundura antropológica,
existencial, ontológica.
Para
o crente judeu, abre brechas, desvenda qualquer coisa; maximizado, ele é voz da
eternidade que desce para pôr fim ao jugo pesado da escravidão. O Messias, o
seu agente directo, portador da força de Deus, faz parte de um processo
escatológico. Por isso, a Páscoa tem uma dimensão muito profunda, responsável
pela construção de um universo de esperança sem precedentes (ao tempo de Jesus,
o grande episódio marcante da saída do Egipto tinha acontecido há mil anos). Do
Egipto para o Monte Sinai constrói-se uma geografia teológica baseada numa libertação
total, que, embora na Terra, é eterna, o que aconteceu não vai voltar; o conceito de Terra Prometida
impõe-se escatologicamente na medida em que o plano terreal é elevado ao
estatuto e pertença de eternidade; o Messias virá quebrar o ciclo da vida; fim
da História.
Para
o crente cristão, o Messias é um Salvador. Mas de onde vem esta nova
característica? O Messias Salvador não é judaico, mas pagão, de influências
siríacas, gregas e egípcias: das religiões de mistérios, do helenismo; é libertador,
o que lhe vem directamente do Judaísmo; tem características essénias, na
crítica a determinadas práticas do Judaísmo, sobretudo do essenismo siríaco de
Damasco, (cidade onde Paulo será convertido a Jesus), de essénios helenizados;
influência de filosofias platónicas, como é o caso da escola de Fílon de
Alexandria. A estes mistérios estão ligadas doutrinas de imortalidade e da vida
eterna, isto é, ser iniciado, por exemplo, é garantir a eternidade numa
felicidade sem fim, para a qual é fundamental a prática da virtude. O
Cristianismo emergente da confluência destes grupos é uma religião sincrética.
Porém, não é demais lembrar, não confundir o judeu Jesus com a religião que
surgirá mais tarde.
Por
outro lado, do mundo pagão faziam parte também os judeus da diáspora,
helenizados, influenciados pelas teorias gnósticas e de mistérios e
consequentes vivências. Só em Jerusalém vamos encontrar um Judaísmo puro, que
se opunha vementemente às influências externas, sobretudo pela mão dos zelotas.
Assim,
longe de anulada, a questão do mito está sempre presente nas influências e
contágios religiosos, e hoje já poucos restam que persistam no contrário,
felizmente, sejam elas judaicas, pagãs ou cristãs. O mito não é uma fraqueza,
uma negatividade nem um mal a abater. O mito é uma narrativa que conta uma
história das origens que de outra forma não se consegue contar. A mitologia
pagã está tão viva nos primórdios do Cristianismo como hoje.
Do
lado dos judeus, o Messias vinha da linha directa da casa de David, não era
Deus em carne e osso porque Deus é uma transcendência, não se materializa, não
pode descer à condição humana. Dos grupos zelota, farizaico, essénio, escriba,
sobressaem os farizeus, grupo a que Jesus pertencia, desempenhando um
importante papel cultural e de apoio social. É o Judaísmo que vai sobreviver ao
dramático ano de 70, que se estendeu até aos nossos dias, sem terra (hoje já
não), sem sacerdotes ( o rabino não é um sacerdote mas um mestre de doutrina,
professor) e sem rei,
Do
lado dos cristãos, a nova concepção de Messias sintetiza um novo sincretismo, a
saber, a fusão do Judaísmo, um Libertador, quer
no sentido religioso como político (inseparáveis), e o do
Paganismo, um ser imaterial, filho de um
deus e de uma virgem, um Salvador. Por outras palavras, estabelece-se uma
relação de contiguidade, ou complementaridade, parceria, talvez mais
correctamente, entre o monoteísmo e o politeísmo, o que não era nada bem visto
pela comunidade de Jerusalém (principalmente Zelotas).
O
Messias judeu não vem para santificar. Isso é trabalho dos crentes, o que
significa que vem para os que se demarcarem na luta por um mundo melhor, à luz
do cumprimento da Lei. Terá que haver uma melhoria das condições materiais de
existência, progresso científico, literário, artístico e religioso.
Mas
a História é a sequência de eras, tempos, momentos que se encadeiam numa trama
que parece não ter fim. Em todas a humanidade espera uma mudança radical. Dito
de outro modo, o humano vive apocalipticamente: a fé, os profetas, a Lei, a
História, Deus, enfim, são apocalípticos; todos são portadores de um fim: da fé,
dos profetas, da Lei, da História, de Deus. Apocalípticos porque há uma nova
era messiânica esperada há muito: uma nova fé, uma releitura dos profetas, um
outro entendimento da Lei, da História, um sentido novo de Deus, e isso só o
Messias possui. Como chegar a esta nova vida, nova fé, novo Deus? O mesmo é
perguntar: Como chegar ao fim?
Na
continuidade da linha sapiencial, o Messias será alguém que fará descer algo
para que algo suba. Quanto aos cristãos, vão introduzir a novidade de um Messias
sofredor, um crucificado, impensável e inaceitável para os Judeus. Por outro
lado, as comunidades grego-judaicas vão aderindo á nova religião, ressaltando o
importante papel de Antioquia, de forma que os judaizantes, pagãos a quem era
permitida a entrada nos meios judaicos, e que traziam consigo os conceitos
poderosos de divindade e de espírito, de características universais, logo mais
abertos que o Deus bíblico. Porém, as influências foram mútuas: as questões
pagãs, filosóficas, passaram a fazer parte da abordagem teológica judaica; a
retórica a grande disciplina, numa valoração da linguagem como mecanismo de fé,
não apenas filosófico.
Assim, segundo o
que foi dito anteriormente, é impensável que Jesus tenha vindo para remissão
dos pecados do mundo, porque somos nós os responsáveis pelos nossos actos; que
tenha encarnado segundo uma concepção virginal e que Maria tenha permanecido
virgem após o parto (o que vai ser introduzido muito tardiamente). É igualmente
impensável que Jesus seja o próprio Deus encarnado. Logo, nesta perspectiva, não
é o Messias. Mas não só. Jesus não veio liderar politicamente, não se impôs
incentivando os ouvintes a uma revolta contra a potência invasora, Roma; era
leigo; recusou-se a ser encarado como líder religioso; não foi uma espécie de
guru com resposta pronta para todos os problemas. Desta forma, a grande questão
impõe-se veementemente: Quem é Jesus? Esta é que é a grande questão.
(continua)
Margarida Azevedo
Bibliografia
consultada
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