sábado, julho 29, 2023

RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO III


 

“E vieram os fariseus e os saduceus que, testando-o, lhe pediram que lhes mostrasse um sinal do céu. Jesus, respondendo, disse-lhes: “Ao entardecer vós dizeis: “Fará bom tempo, pois o céu está vermelho.” E de manhã:” Hoje vai estar mau tempo, pois o céu está vermelho e carregado.” Sabeis avaliar o aspeto do céu, mas não conseguis <fazer o mesmo em relação a> os sinais dos tempos? Uma raça iníqua e adúltera procura um sinal, mas o sinal não lhe é dado, a não ser o sinal de Jonas.” E deixando-os, foi-se embora.”* (Mt 16: 1-4)

            Nos nossos momentos de recolhimento, e passando os olhos por esta perícopa, que sinais pediríamos nós hoje a Jesus? Como cristãos, a que sinais nos referiríamos, ou de que sinais somos transportadores? Já não sabemos ler os sinais do tempo, vamos à internet; também já não perguntamos a ninguém opinião sobre o que quer que seja, é mais fácil e seguro clicar sobre uma tecla e ter o mundo a opinar num segundo.  

Este teste transporta-nos inevitavelmente para outro mundo. Lembremo-nos de que naquela altura não bastava dizer-se profeta, havia que dar provas disso. Porém, e porque a intenção não era saber mas de fazer um teste de má-fé, as provas milagrosas ou espectaculares que esperavam não aconteceram. Pelo contrário, foram os inquiridores os testados e confrontados com uma crítica contundente por não entenderem nada dos assuntos do céu. Hoje, colocando inevitavelmente a mesma questão, que resposta nos daria Jesus? Se calhar, é melhor nem pensar.

Estamos a ser uma humanidade cheia de vulnerabilidades: afectivas, de fé, familiares, profissionais, civilizacionais, e muitas mais. A procura do religioso, seja por quais destes motivos for, é sempre uma procura pelo mundo, prisioneira do nosso universo caracterizado pela problematicidade. Continuamos sem saber de onde viemos, porque estamos aqui e para onde iremos. Continuamos a ser os grandes desconhecidos à procura de uma explicação que nos satisfaça, não propriamente a curiosidade, mas que, de alguma forma, nos garanta estabilidade e nos permita continuar a viver de uma forma sofrível, aceitável, com uma nesga de momentos de alguma alegria.

Dito de outro modo, a vulnerabilidade abre-nos caminhos, não nos encerra. Isto é, cada momento da vida, por mais doloroso que seja, o cristão vê-o como uma possibilidade. A cruz é um móbil poderoso, que não desejamos, que repelimos, que se nos impõe mediante propósitos que nos escapam, não aquela a que, karmicamente ou não, nos propomos submeter para pagar um débito qualquer de um passado mais ou menos remoto. “A verdadeira cruz é aquela que nós não queremos…caso contrário, de cruz pouco teria.” (1) E James Martin acrescenta “a cruz não é consequência do pecado.” (idem, ibidem) A cruz ainda faz parte da natureza de um animal irreverente, para o qual a fé é uma força que acorre em seu auxílio nos momentos mais sequazes. Cruz e Homem fundem-se existencialmente, por isso o pecado fala uma outra linguagem que não a da cruz. É bom lembrar que “Mesmo aquele que não tinha pecado sofreu.” (idem, ibidem)

Como enquadra o Cristianismo a problemática do sinal, do teste, do pecado e da cruz nos dias de hoje? Inevitavelmente, somos levados numa onda descontrolada, fora do âmbito do religioso, muito impulsiva, que se baseia na mudança, só que ninguém sabe qual. Por isso, não esclarece nem parece em conformidade com uma noção de equilíbrio que não se é capaz de definir mas que defende como uma virtude. Por outras palavras, esta onda que só tem gerado insegurança porque filha da insensatez, dá um sinal do Cristianismo como uma força política mais que religiosa. O Cristianismo anseia, voraz, por marcar território, afirmar-se no mundo, conquistar espaço, dominar todos os quadrantes da vida. Porém, está cada vez mais distante de dar uma resposta satisfatória ao momento actual. Por isso surgem cada vez mais organizações cristãs procurando, cada uma de per si, conquistar o lugar da resposta. Mas não está a ser fácil, ou porque se perdem na vaidade do discurso fácil e manipulador, ou porque ambicionam um lugar à sombra na sociedade. Falta-lhes Jesus.

O Cristianismo sempre se debateu, e com isso se perdeu no tempo e muito na fé, com grandes questões internas desde a sua formação até aos nossos dias. Ora porque temia a fusão com o Paganismo, ou, numa vertente contrária, com o Judaísmo. Com isso foi perdendo o Cristo Jesus e impondo uma força fictícia que apagou parte significativa da sua herança judaica, do helenismo, bem como da força dos ensinamentos de Jesus, os quais deturpou a seu bel-prazer.

 A grande luta do Cristianismo como doutrina sumamente salvífica contra o Paganismo; com a Inquisição, contra os bruxos; com o Holocausto, contra os Judeus; com a política, contra a laicização; com os descrentes, contra os sinais dos tempos. E hoje, contra quem ou contra o quê está o Cristianismo? Haverá ainda mais alguma coisa contra a qual combater? As novas igrejas cristãs estão cada vez mais paganizadas. Há uma concorrência infernal entre elas, precisamente porque não significam esclarecimento de fé, mas nascem da revolta contra a instituição Cristianismo, crendo que inauguram uma nova era cristã. Envereda-se hoje por um cristianismo simpático, sorridente e poético, em ambiente de autêntica orgia de suposta fé libertadora. Se dantes era à espada, hoje é à mesa em grandes comeretes e beberetes. Quanto a servir desinteressadamente o próximo, servir o próprio Cristianismo, vestir o escândalo do Cristo Redentor Ressuscitado, isso é para outras núpcias. O escândalo da Cruz, concomitante com a nossa natureza essencialmente propensa ao escândalo também, mas rejeitando-o impiedosamente, é o rosto da própria fé ainda cambaleante.

Ora, ser cristão é, efectivamente, assumir uma apresentação diferente do religioso, não pela via da superioridade, mas pelo escândalo da Cruz, de uma condenação: o cristão prega um Crucificado.

Estamos longe da epopeia, dos heróis, dos soldados que se confundem com os deuses e dos deuses intriguistas e tendenciosos antropomórficos, desejando ser humanos, apenas, ou confundindo-se com eles. Estamos, pelo contrário, no cerne da própria fé, o mesmo é dizer, da natureza humana. A fé cristã vive com o escândalo da Cruz. Kierkegaard esclarece que “Porque tal é a lei: quem abolir a fé abole a possibilidade do escândalo (..); e quem abolir a possibilidade do escândalo abole a fé” (2). E mais à frente esclarece que” os dezoito séculos não contribuíram para um enriquecimento que provasse a verdade do cristianismo; pelo contrário, contribuíram com uma força cada vez maior para abolir o cristianismo.” (idem, ibidem) É este o sinal do cristão: o escândalo da Cruz.

A formatação mental que pretende alargar-se ao mundo inteiro, jamais permitirá explicar esta realidade: a Cruz. Fictícia porque baseada nos interesses comerciais e económicos, criando dependências perigosas, subjugação esclavagista a quem não cumprir com os requisitos da ambição avara de doentes mentais mal disfarçados, uma abordagem saudável da Cruz e do sofrimento é abafada porque ninguém quer falar deles. Como combatê-los, então?

Os cristãos, mais como resultado das aflições, que não são nem a Cruz nem o sofrimento, mas a ambição e ganância pelo poder, e mercê de uma consciência pesada, esperam por um novo cristianismo como uma forma renovada da fé que não é fé, mas avareza. Porém, a renovação não radica nos confessionários, nem vem por um processo milagroso. A renovação do Cristianismo jamais será uma limpeza mitológica. A mitologização nada tem a ver com os evangelhos. A mudança vem de dentro. E são chegados os tempos em que temos que mudar. Passarmos inevitavelmente a ser outros. Cortar com o abismo hermenêutico conducente ao maxismo de uns em prol do minismo de outros.

            Porém, a problemática da limpeza do Cristianismo não é nova e não começa só com os cristãos. O Cristianismo limpa-se também com a própria sociedade, porque está dentro dela. A sociedade civil também tem uma palavra a dizer, e a exigir, dos movimentos religiosos, e nomeadamente do Cristianismo, em qualquer ponto em que ele estiver implementado. E isto não é uma novidade. Constantino, por exemplo, que supostamente se converteu ao Cristianismo, trouxe para dentro deste o seu culto pagão ao Sol, bastante difundido pelo Mediterrâneo e Ásia Menor. Tudo se modifica na medida em que estiver ciente de que há sempre contágios. Vamos ver é se eles começam a ser para as coisas boas.

(cont.)

 

            Margarida Azevedo

Referências:

(*)Trad. Frederico Lourenço

(1) SJ. MARTIN, James, Jesus, Um Encontro Passo a Passo, Paulinas, Prior Velho, 2014, cap. 22, Ressuscitado, p.452.

(2)KIERKEGAARD,S., L´école du christianisme, Éditions de l´Oriente, Paris, 1982, 7. L´Homme-Dieu est objet de foi justement parce qu´il est la possibilite du scandale, pp.131. Trad. Azevedo, M

(3) _________idem, p. 132. Trad. Azevedo, M.

sábado, julho 22, 2023

RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO ii



“Primeiro levaram os comunistas,

Mas eu não falei, por não ser comunista.

Depois, perseguiram os judeus,

Nada disse então, por não ser judeu,

Em seguida, castigaram os sindicalistas

Decidi não falar, porque não sou sindicalista.

Mais tarde, foi a vez dos católicos,

Também me calei, por ser protestante.

Então, um dia, vieram buscar-me.

Nessa altura, já não restava nenhuma voz,

Que, em meu nome, se fizesse ouvir.”

                                      Martin Niemoller (1)


            Um dos grandes cancros da actualidade é a indiferença. Mas atenção, não uma indiferença qualquer. Falamos da indiferença perante o outro, o acontecer presente, o que lhe sucede de mau, porque se for de bom surge a vil inveja, e já ninguém é indiferente.

            Também não há indiferença quanto ao passado histórico. Aliás, quer-se fazer dele uma rememoração constante, um castigo do tipo pena de Talião, porque no passado foi tudo muito mau. E enquanto se anda às voltas com uma espécie de limpeza étnica do passado, ninguém se ocupa com o presente, e as decisões nefastas são mais fáceis de tomar e sedimentar. Ora, se fôssemos atrás desta loucura, a Europa, e o mundo inteiro, entrava em colapso, pois todos fomos guerreiros uns contra os outros, escravos uns dos outros.

            A indiferença também não é contra grupos perigosos que nos vão invadindo. Esses são os novos visitantes definitivos, necessitados de tudo. Ninguém é indiferente a quem chega, de uma forma ou de outra. A indiferença vem depois.

            Os perigos da indiferença têm a ver com uma sociedade fragmentada e estigmatizada, num esforço por manipular o passado para cair nas boas graças de um presente cada vez mais asfixiante.

            Assegurando o triunfo da máquina, o ser humano deixou de pretender, ou de perceber, a necessária companhia do outro, a pertença ao outro numa cumplicidade civilizacional, para o substituir por uma coisa. Ora, deambulando no meio de tantas coisas, o humano é mais uma coisa que está em estreita ligação às coisas, e é assim que se perspectiva a sedimentação da indiferença.

            A insensibilidade social e política por parte dos dirigentes das nações gerou débeis, meninos e meninas, não homens e mulheres. O avanço tecnológico criou brinquedos de tal forma importantes que há quem deixe de comprar o indispensável para adquirir, por exemplo, telemóveis de última geração, sob pena de ser rejeitado pelo grupo social, no emprego, etc. Questões como o mérito, o espírito de luta, misturam-se e confundem-se com as da ambição, da disponibilidade total, o que faz do ser humano um permanente insatisfeito, desvalorando-se e asseverando o triunfo da máquina sobre si próprio. E porquê? Porque a máquina sabe mais, é omnipresente, não tem dores de cabeça, não carece de licença de parto. Está sempre ali, para tudo.

            Podemos dizer, agora sim, vamos entrar na Era da Escravatura a valer, só que tecnológica: a pior de todas porque esta não vai ter quem dê a vida para a combater; desta vez não vai haver associações em prol da liberdade nem da libertação, porque a máquina criou a ilusão de que estão todos libertos, são todos homens, mulheres e dos demais géneros livres. O desemprego vai ser mais que muito, todos vão lutar sem escrúpulos por chegar a cargos de chefia; uma massa de imberbes, os novos eunucos, está-se a construir. Para onde nos leva esta nova ordem mundial? Para a já famosa e ofuscante vitória da inteligência artificial, que de inteligência não tem nada, que não pensa nem é sensível a coisa alguma, o triunfo do novo bezerro de oiro.

            Vamos ser escravos, já não no Egipto, nem em parte alguma do mundo; vamos ter um líder, já não Moisés, nem de nenhum outro profeta mensageiro do além, mas um aparelho sofisticado; iremos ser levados para uma nova terra, já não a Prometida, mas a das organizações de carne humana, mas para os confins de um recanto que parecia paradisíaco mas que se revelou agreste; receberemos novas ordens, novas leis, já não um Decálogo, mas regras de conduta que não firam a “sensibilidade” da máquina; quem dá as ordens já não será Deus, mas um robot super-potente, super-presente, super-poderoso. Porém, a História vai repetir-se. Passaremos novamente pelo desejo do servilismo à morte, porque a vida continuará a ser o bem mais precioso e nunca perderá o seu carácter divino.

            Pode ser muito giro um sacerdote robot. É muito moderno, até parece um filme de ficção científica tornado realidade mesmo em frente do nariz. Porém, há que perceber que o religioso é uma questão de corpo do tipo olhos nos olhos. É preciso sentir a respiração, ver o brilho dos olhos, sentir o coração do outro a bater. O religioso é um encontro corpo a corpo. Sem a presença física do outro não há religião alguma. Uma coisa é um desenrasca, assistir a uma sessão, uma cerimónia pela televisão para quem está doente, outra bem diferente é fazer do virtual uma realidade quotidiana, trancando as pessoas em casa, impedindo-as de conviver, e a orar pedindo aos deuses que, antes de tudo, não se vá a bateria do aparelho abaixo, senão lá teremos um sacerdote calado porque se lhe foi a carga.

Se o ser humano persistir em não mudar intrinsecamente, não é por pertencer a esta ou àquela religião que vai ser diferente. Se os homens mudarem, as fés mudarão também. O cristianismo tem que humanizar e humanizar-se. Como?

Quando se repensar; quando assumir que não é superior a ninguém; quando reflectir em que medida o seu profeta principal, Jesus, foi humano e muito humano, e que não é um deus à semelhança dos deuses do Paganismo; quando assumir que espalhar o Evangelho é sinónimo de ressurreição e vida; quando se aperceber que Jesus não veio criar nenhuma nova religião, que não era, portanto, cristão, mas um profeta que nasceu, viveu e morreu judeu; quando se assumir como um igual à humanidade inteira; quando aprender, se quiser, que todos os profetas são igualmente importantes, apenas cada um escolhe o da sua preferência, o Cristianismo será renovado.

            Não se trata do cristianismo das congregações, mas do dos corações, sede dos comportamentos e dos pensamentos que a mente não consegue decifrar. Precisamos de um Cristianismo sem receio de nada, porque se sente caminho para Deus; um Cristianismo que não tema a verdade, outras formas de fé, outras filosofias de vida, outras formas de evolucionismo.

O bom seria que os tempos que correm fossem tempos novos, em que esta conversa já não fizesse sentido, que todos tentássemos, ao menos uma vez, uma única vez, colocarmo-nos no lugar do outro. Não tentarmos ser o outro, o que é naturalmente uma impossibilidade, mas sentirmos, pela força do amor e da dádiva, a dor que não nos dói nem nos pertence. Não na natural impossibilidade ontológica com que a filosofia nos confronta, mas na possibilidade teológica no corpo de uma fé livre, própria daqueles que fazem do outro um fim em si mesmo e não meios para fins alheios.

            Podemos avançar algumas explicações, nomeadamente: que estão a reencarnar espíritos mais ignorantes e belicosos; que os que aprenderam alguma coisa e com isso evoluíram já cá não estão; que o materialismo se impôs à espiritualidade, etc. Mas nada disso explica o dramático silêncio dos relativamente bons (“Ninguém é bom senão um só: Deus.” Mc10:18), da impotência generalizada em mudar alguma coisa. Continua a ser tão bom o aconchego do lugarzinho ao sol, das influências, da sobreposição a tudo e a todos. Um cristão só o é verdadeiramente quando virar as costas a tudo isso, quando a vida espiritual se sobrepuser à vida material. Não num desprezo pela terra, mas por muito a amar como obra divina. Pisamos solo sagrado.

(cont.)

 

            Margarida Azevedo

 

 

Referências:

(1)Imagens de martin niemoller, e vieram os católicos, e eu …

(2)Trad. Frederico Lourenço. Ver também Lc18:19.

 

sábado, julho 08, 2023

RUMO A UM NOVO CRISTIANISMO I

“ A cristandade aboliu o cristianismo sem se dar conta; desta forma, é preciso fazer alguma coisa; é preciso tentar reintroduzi-lo na cristandade.”

Kierkegaard (1)

 

            Numa tentativa de esconder o passado e de reescrever a história, à mercê dos gostos e conveniências do momento, porque de repente o passado tornou-se redutível a classificações fétidas tais como racismo, xenofobia e homofobia, terrível colonização e afins, a temática do novo cristianismo está cada vez mais na ordem do dia, seguindo a triste onda de modernança.

Ser-se cristão hoje, defensor de uma herança e um processo histórico tão vasto quão rico, é fazer parte de um movimento que urge abater. O bem que fez, e que a história perfeitamente relembra, é abafado em prol de um punhado de malfeitorias que, face ao bem praticado, nem deviam ter, nem têm, a maior expressão. Se tomarmos como exemplo a Inquisição, ela estendeu-se por um período bem curto, embora de vergonhosas e terríveis práticas, nestes vastos dois mil anos de cristianização, e digo cristianização, não de cristianismo, porque o Cristianismo é um movimento e, como tal, está sempre inacabado. Porém, hoje, há outras inquisições, nomeadamente a luta pela imposição de uma igreja decadente sobre todas as restantes, fora do tempo, estagnada, perdida entre falsas noções de pecado, tão falsas quanto as da modernidade a que pretende dar expressão.

A história é a narrativa do nosso vasto quão complexo e moroso processo evolutivo, num jogo de vitórias e derrotas num passado sangrento, mas também com bastantes virtudes. Abordá-la implica, portanto, uma posição de tolerância face aos nossos comportamentos pretéritos, o que nos tempos que correm é encontrar uma agulha num palheiro, porque se vive precisamente a intolerância face ao passado.

Não se trata de desculpar o erro, mas de o enfrentar e transformar em lição valorosa, para que o presente seja mais feliz e o futuro mais sólido na fraternidade, quer para a vida material, quer espiritual. Se cada país colonizado, que os são todos, de uma forma ou de outra, fizesse uma avaliação séria do papel desempenhado pelo colonizador, certamente encontraria uma imensidade de aspectos positivos. Uma coisa é a independência a que todos têm direito, outra, bem diferente, que marcas o colonizador por lá deixou e que melhorias trouxeram as descolonizações, no contexto em que foram feitas.

Ninguém o diz, é politicamente incorrecto (expressão cínica que significa travagem ao progresso e à construção do processo de paz social e política; fascização das sociedades), que parte das descolonizações foram uma entrega dos povos a genocídios, à miséria nunca dantes vista, à fome e à deslocação em massa de milhões de pessoas à procura de dignidade, que os deles não lhes dão.

Há que perceber que descolonizar não significa abandonar, mas que implica um período de transição visando uma maturação política, que habitualmente não se faz porque interesses mais altos se levantam de parte a parte.

            Com isso, os povos receptores das massas que fogem dos seus, os tais racistas e intolerantes, sentem-se ameaçados, perdidos em realidades que não construíram, de que até são contra, mas das quais se sentem prisioneiros. A onda de medo destas novas formas de invasão, que não são colonialistas, assenta no facto de que arrastam consigo complexos sociais, raciais e políticos. Há um sentimento generalizado de ameaça constante, o que faz perigar a paz social, transformando, por exemplo, bairros seguros e tranquilos em lugares perigosos. Sair de casa à noite para tomar um simples café entre amigos tornou-se numa aventura em muitas cidades.

Mas a questão é ainda mais vasta. Os povos receptores estão sobrecarregados de impostos. Cada vez mais se vive a contar os tostões na ânsia de que chegue depressa o fim do mês. É que parte significativa dos receptores são pobres também ou para lá caminham a passos largos. Entre famílias desmoronadas, cada vez mais monoparentais (mais uma expressão filha da modernança), universo de esperança quase nulo e caídos na oca expressão um dia atrás do outro, sem afectos de espécie alguma e perdidos no álcool, droga e sensualismo, consumismo e simulacro de riqueza, qual expressão de quem não tem quase o indispensável para viver, de colarinhos brancos às portas das instituições de caridade, etc. etc., veem os seus escassos direitos ameaçados todos os dias, imagem contrária àquela que os políticos dão aos donos dos que chegam nus, famintos e doentes.

Estes recém-chegados, por sua vez, trazem o rancor contra os seus e os complexos raciais contra os que os recebem, confusos e manipulados, fechando-se à aceitação de novos modos de vida, sob receio de perda de identidade e fusão com o ex-colonizador agora receptor. Dito de outro modo, quem chega não se vê livre daquele a quem chama colonizador, agora numa versão contrária, a saber, é o colonizado que é expulso pelos seus da sua própria terra/casa, procurando o colonizador que em muitos casos odeia, como o único refúgio, apenas porque bem manipulado.

Nunca o mundo passara por uma experiência tão dramática, de tamanho número de deslocados como hoje, maltratados, sem direitos, mão-de-obra esclavagista a troco de se manter vivo, porque se ficarem nas suas terras não sobrevivem, se partirem caiem nas redes mafiosas de mão-de-obra escrava, sem dignidade, mas vendidos primeiramente pelos seus.

A amizade entre os povos está cada vez mais frágil, e a pouca que há é baseada em interesses perversos. O mundo está a ser conduzido a que cada um de per si objective viver uma vida que destrua o passado onde tudo foi mau, o que é manifestamente falso. Por outro lado, quem não puder ou não quiser fugir da sua terra corre o risco de ficar à mercê da caridadezinha dos antigos exploradores/colonizadores. É a política do pião: com capa não anda e sem ela não pode andar.

Perceber o papel do Cristianismo na história passa por aqui. Ninguém diz que lhe devemos a cultura e respectivo combate ao analfabetismo. Ninguém diz que devemos ao mundo cristão estradas, fábricas, serviços, arte, ciência e cultura. Ninguém diz o que se transportou, apenas se fala de escravatura, tal como ninguém diz que a sociedade ocidental europeia era esclavagista. Nós fomos escravos de nós mesmos. Não podíamos transportar o que não éramos. Além disso, as lutas anti-esclavagistas são nossas também. Custaram a vida a muitos de nós. O Cristianismo nunca foi esclavagista, separatista, divisionista, dualista. Paulo esclarece-o peremptoriamente: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem pessoa livre, não há macho e fêmea: todos vós sois um em Cristo Jesus.” (Gl 3: 28) (2). As políticas assim o fizeram, os falsos religiosos também, os interesses e a perversidade sempre falaram mais alto; porque o desconhecimento do homem perante si mesmo tem sido uma constante, e está cada vez mais longe de ser definitivamente erradicado. Para isso, as novas tecnologias estão a sedimentar o fosso. Fala-se melhor através da máquina do que olhos nos olhos.

O Papa Francisco afirma: “ Às vezes deixa-me triste o facto de, (…), a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência.” (3) É verdade. Porém, violência e Religião têm sido inseparáveis ao longo da História. Não apenas dentro do Cristianismo, mas no geral. Ora esta questão levanta uma problemática complexa, a saber, até que ponto a religião se impõe à nossa natureza; será ela capaz de o fazer; em que medida a religião não é uma forma de camuflar, ou lutar, contra a nossa natural propensão para cairmos em desgraça? Numa palavra, o que é que a religião munda no mundo? Somos mais felizes por sermos crentes? Somos crentes para quê? (Este parêntesis cheio de interrogações pertinentes deve fazer parte de toda a reflexão teológica).

O que nos envergonha não é a nossa natureza, mas o papel do ser humano que se encostou ao religioso para justificar a sua avareza, o que tem feito das religiões organizações perigosas. Todas. Religião e natureza humana tem sido um binómio devastador, não apenas em termos de fé, mas da razão também, muito especialmente nas religiões monoteístas, arrastando consigo incompatibilidades onde, de facto, o que há é complementaridade.

Assim, a humanidade parece mais um bando de condenados a prisão perpétua, a tentar fugir a todo o custo de uma prisão de alta segurança, mas infrutiferamente.

Só em conjunto, só a humanidade no seu todo, ecuménica, na aceitação do seu natural pluralismo cultural, racial, étnico, poderá levar a nossa existência terrena a bom porto e alcançar o que tanto deseja, a felicidade. Só juntos no amor universal conduziremos este mundo à felicidade que todos perseguimos, ou devíamos perseguir, e que Aristóteles tão bem abordou “porque a felicidade é uma actividade da alma em conformidade com uma virtude realizada.” (4) Dito de numa forma cristã: precisamos de querer ser virtuosos, lutar por realizar uma só virtude que seja, que a felicidade se tornará uma realidade estável e não uma quimera.

Não podemos continuar a calarmo-nos perante o ridículo do politicamente correcto, silenciar verdades, sejam elas cruéis ou felizes. A paz e a concórdia não se coadunam com o calar da verdade factual. É tempo de aprender a viver na base da aceitação da nossa natureza, natureza que é por si própria evolutiva. Não podemos matar a História, como não podemos dar azo à loucura de só nós possuirmos a verdade e tornarmo-nos numa espécie de salvadores do mundo, destruindo tudo à nossa volta, tão simplesmente porque há alguém que não é ou não pensa ou não crê como nós.

            No presente, os nossos comportamentos são em tudo idênticos aos do passado mais ou menos remoto, e esse é que é o problema. O que é que nós evoluímos até hoje? Descontextualizados face ao tempo e à inevitável emergência de um avanço espiritual que não pára, ou não devia parar, agudizaram-se as diferenças de tal forma que o fosso entre os seres humanos é cada vez maior. Dito de outro modo, aprendeu-se nada com a História, e por isso ela se repete. Como diz o Papa Francisco, na obra supra-citada: “10. Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração. (…) 11. Mas a história dá sinais de regressão.” (5) Isto significa que não evoluir já é regredir, o que advém do facto de não se perceber que ninguém é bom, mas que todos devemos ser lutadores pelo bem.

A ignorância parece ser a mãe de todos os males, mas não está só. A teimosia e a vaidade são preciosas aliadas. Assim, hoje, toda a gente se sente muito sábia, porém tudo continua na mesma. Os conhecimentos deviam ser libertadores, mas se a nossa natureza se mantiver intacta de pouco ou nada nos servem. Realmente, o Papa Francisco salienta, ainda a propósito da escravatura e da violência, que, “Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e da teologia, não temos desculpas.” (ibidem, p.53) pois é, mas é isso que se verifica: há avanço intelectual, mas há-o espiritual? A violência crescente o que é que significa, em que moldes e em que contexto ela existe?

            Vive-se o sem sentido, a infantilização dos comportamentos que toca a ingenuidade de quem está permanentemente a começar, num autêntico elogio da estupidez. A TV tornou-se numa máquina manipuladora perigosa na medida em que constrói ideologias, opiniões, culpas e desculpas, tal como aceitação e revolta irreflectidas, fabrica gostos e desgostos, prazeres e desprazeres. Há que promover o não pensar, a euforia exuberante esquizofrénica do ridículo.

Quando se pensava que tudo iria tomar o rumo certo num crescendo civilizacional, de repente, tudo se desmorona. A História tornou-se o grande alvo desse abate: “vamos enterrar o passado como se a nossa existência tivesse começado hoje”. E, como ninguém quer assumir a sua quota-parte de culpa, há que arranjar um bode expiatório: o Colonialismo, o homem Branco, os Judeus, o Ocidente, e, é claro, o próprio Cristianismo.

            O mundo caiu redondo nas binaridades, uma cultura do 2, tipo Eu/Tu, branco/preto, bom/mau. Só que o mundo não é assim. Nunca foi nem nunca será. Um jardim, se não tiver múltiplas flores de cores diferentes, não é um jardim, mas outra coisa qualquer.

(cont.)

Margarida Azevedo

 

Referências:

(1)S. Kierkegaard, L´école du christianisme, Éditions de l´Orante, Paris, 1982, cap. I, p. 36. trad. M. Azevedo.

(2)Trad. Frederico Lourenço

(3) PAPA FRANCISCO, Fratelli Tutti, Carta Encíclica sobre a Fraternidade e a Amizade Social, Paulinas, Prior Velho, 2020, 86, p.53.

 (4)ARISTOTE, Éthique de Nicomaque, Garnier Flammarion, Paris, 1965, p.39.

(5)_________10, 11, pp.11-12.