O PERDÃO DE JESUS II
O psicologismo calculista do sofrimento como mola
evolutiva é revelador de que há um aperto na alma, na fé e na racionalidade,
enfim, por dificuldade em aceitar que é tão difícil explicar o sofrimento como
o perdão. A maior parte das vezes desculpamos em vez de perdoar, o que já não é
mau, tudo depende da intenção com que o fazemos. Por exemplo, em espiritismo,
desculpam-se os actos do outro por pena, porque ainda vive na ignorância,
pobrezinho/a, quanto às suas raízes, os tais fundamentos perdidos na noite dos
tempos e que ninguém sabe, mas que os espíritas sabem.
Com isto se tem desenvolvido a desculpa da desculpa:
desculpei-o/a porque é um/uma ignorante do passado. Ora isso não é perdão, mas
o seu oposto. Tolentino Mendonça lembra: “O
perdão não é desculpar. A desculpa é uma coisa, o perdão outra. A desculpa é
uma coisa racional; é olharmos para uma pessoa que nos ofendeu e tentar
compreender as razões e as condicionantes que ela tinha…(teve problemas graves
na infância, não lhe foram dadas possibilidades que outros tiveram, sofre o
abandono e falta de um contexto estável e protetor…). Isto é uma desculpa. É a
procura racional das razões que, certa maneira, podem iluminar o ato de ofensa.
Mas ainda não é o perdão.” (1)
Ele/ela
sofre porque ignora totalmente que é o/a construtor/a do seu viver. De facto,
somos nós os construtores do nosso percurso, mas com as características do
humano e muito humano. Tudo o que nos acontece não poderia ser de outro modo
porque somos como somos, porque é esta a nossa natureza, é este o nosso nível
evolutivo, quer biológico quer espiritual. Temos que conseguir, se quisermos
passar a um patamar superior, ultrapassar a desculpa, laica, pagã, ateia, e
lutar por conseguir alcançar o perdão, a que só uma fé emancipada e livre pode
subir. É aí que se situa o perdão de Jesus. Os perdoados não são escolhidos,
mas são eles que se escolhem mediante uma fé inabalável em Deus e na prática do
“vai e não tornes a pecar”.
Contrariamente,
generalizando o que muitos afirmam, é por falta de conhecimentos do que
chamaria arqueologia espiritual que o
mundo está como está. Esquecem-se que se hoje somos de um país amanhã seremos
de outro, se somos de uma cultura numa vida seremos de outra noutra, raça,
etnia, língua, gostos, tendências, aptidões, etc. Isto é, uma pessoa pode
encarnar em um país com leis, práticas sociais e culturais que nada têm a ver
com aquele/s em que viveu anteriormente. Até podem ser totalmente incompatíveis
com a sua ancestralidade, apenas é uma nova vida que vai começar. Por outro
lado, mesmo que reencarne onde já viveu, isso não significa que se identifique
com esse lugar, em todos os aspectos ou parcialmente. Esse lugar pode ter mudado
de tal forma que já nada, ou muito pouco, será o mesmo. Há uma explicação, tem
que haver, para os nossos passos na vida, só que nós não sabemos qual, e isso é
uma graça divina, eu diria mesmo uma forma de seguir em frente sem pesadelos,
sem sobressaltos, sem passagens bruscas e inconsequentes. Conhecer o passado
seria viver artificialmente. Uma Entidade responde claramente a Kardec:
“Por
que o espírito encarnado perde a lembrança do seu passado?
O
homem não pode nem deve saber tudo; Deus assim o quer na sua sabedoria. Sem o
véu que lhe oculta certas coisas, o homem ficaria ofuscado, como quem, sem
transição, passa da obscuridade para a luz. Pelo esquecimento do passado ele é
mais ele mesmo.” (2)
A vida não pode
ser encarada como uma perseguição de algo que corre atrás de nós. Isso é uma
autêntica obsessão. O que se passou há centenas ou milhares de anos está-nos
vedado. Esse natural oculto é o maior perdão de Deus, perdão que caracteriza a
vida como um conjunto de possibilidades e de possíveis. Temos possibilidades na
medida em que somo dotados de dispositivos e mecanismos que nos permitem
sobreviver em condições adversas, físicas e espirituais numa simbiose perfeita.
Por exemplo, o Povo Escolhido viveu exilado no Egipto e não perdeu a sua
identidade, muito pelo contrário. Havia uma força unificadora e dinamizadora
que jamais o deixou cair, apesar das naturais vacilações. Mediante essas
possibilidades ofertadas por Deus, torna-se possível evoluir, possível
aprender, possível querer ser melhor, possível mudar de vida, possível amar,
possível mudar o rumo existencial. Enfim, é possível a esperança no dia de
amanhã, nem que seja centenas de anos mais tarde.
Há
que empurrar o passado para o esquecimento, caso contrário, viver tornar-se-ia numa
luta permanente contra uma forma de maldição, uma acção poderosa de um fantasma
voraz todo-poderoso. Se assim fosse, de nada serviria o arrependimento, falar
de perdão, de misericórdia, do poder da oração, e cair-se-ia inevitavelmente no
fatalismo. As possibilidades e os possíveis perderiam todo o sentido.
Há quem se queixe de que tem um obsessor desde nascença.
É possível. Mas ele só irá até onde Deus o permitir, e até onde vai a nossa fé,
a oração, a nossa prática social, o modo como estamos na vida. Um alcoólico ou
um mentiroso dificilmente se verão livres do seu obsessor pois que as suas
práticas de vida só o atraem. Mudando de vida, o obsessor enfraquece, e o
caminho abre-se ao divino. Nada existe maior que Deus.
A
maior barreira contra as negatividades será sempre o amor como força poderosa,
a única capaz de anular as crenças, tanto em penas eternas como em perseguições
ferozes. Até porque a protecção de Deus não faria qualquer sentido, uma vez que
há uma condenação de que é impossível escapar, aconteça o que acontecer.
Porém,
nós também somos obsessores, e mais vezes do que pensamos. São os juízos de
valor, os (pré) conceitos, as ideias feitas, a teimosia em permanecer na
inércia e opor-se à mudança evolutiva, o apego aos títulos, o ridículo da
ilusão de que tudo pode, tudo e mais alguma coisa, tendo-se por superior… Há
até quem viva como se não fosse morrer um dia. Nós somos os nossos
perseguidores, obsessores terríveis de nós mesmos, atraindo tudo o que de mais
negativo possa existir do plano espiritual. Quantas vezes somos demónios
portadores de outros demónios tão selvagens quanto nós?!
No séc. XIX pretendia-se combater a teoria católica do
fogo do inferno, hoje a das penas com data marcada; combatia-se a mediunidade
espectáculo de teatro, hoje combate-se o desconhecimento de que a mediunidade
pertence a toda a gente; combatia-se a pobreza como mau uso do dinheiro nos
tempos de outras vidas, hoje combate-se a pobreza como um problema nosso (como
já o disse Jesus), do presente, isto é, não há pobres porque há karma, há
pobres porque há egoísmo, cinismo e falsa fé em Deus.
O determinismo, negro e pessimista, existe nas cabeças de
cada um de nós; é característica de quem ainda não sabe amar. O que é o perdão
e para quê pedi-lo a Deus? Queremos ser perdoados de quê e para quê? Se o perdão
consiste em uma oportunidade dada por Deus para vir à terra pagar os nossos débitos
kármicos, confundindo-se com a pena de talião (dito de outro modo: Fizeste-as, hás-de pagá-las), em que o
nosso viver estás totalmente pré-determinado, então onde fica a necessidade de
melhoria do ser humano e do amor incondicional? A grande possibilidade de
voltar à terra é uma graça divina na medida em que se torna possível repor uma
ordem na desordem que nós criámos, ordem
que é toda amor. Vimos para aprender a amar. Pagar uma dívida não significa
purificação, pode significar um alívio para o devedor, mas não elevação espiritual.
A grande força ao arrepio do espírito de perseguição é o arrependimento sincero
e verdadeiro (Lc17: 3-4)
(continua)
Margarida Azevedo
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Referências
(1) MENDONÇA, J. T., Pai-Nosso que estais na Terra, Paulinas,
Prior Velho, 2014, XI, Uma Decisão Unilateral de Amor, “…ASSIM
COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS TEM OFENDIDO”, O que o Perdão não é, p.122.
(2) KARDEC, AL., Le Livre des Esprits, Les Éditions Philman,
Saint-Amand-Montrond, 2002, cap. VII, Retour à la vie corporelle, Oubli du passé, perg. 392, p, 151.
Trad. M. Azevedo.
(1)
Ver pergunta n.º459.